Arte Atual Festival - Coisas Sem Nomes
Carolina De Angelis e Juliano Casimiro
 

“No princípio era o VERBO”. Que princípio? No início daquilo que se pode compartilhar com mais segurança? Ou, no início daquilo que a partir de então se pode compartilhar min- imamente? Talvez a perspectiva cosmológica mais popular no Brasil já aponte para nossa carência por nomear (Verbo). Deixar as coisas sem nome seria como tirá-las do mundo em que você e eu, e todos os que são como nós, compartilhamos. Compartilhamento ordinário vem do nome das coisas e nos leva ao nome das coisas.

 

Nomear é método no compartilhamento. É um modo de afetação. Um assunto quando passa a ter um nome encerra-se num conjunto de possíveis entendimentos e seus usos se limitam a determinadas ocasiões e circunstâncias. Mas e o inominável? Ele mesmo recebeu nome, INOMINÁVEL, e uma belíssima figura de linguagem que o sustenta enquanto possibilidade, a METÁFORA.

Pois bem, pela metáfora do inominável, você e eu e tantos outros, do alto da nossa autor- idade em linguagem, permitimos que ele, o inominável, ganhe pleno direito de existência.

 

O que muitas vezes não percebemos é que se atribuirmos nome à coisa (até então sem nome), nós a profanamos; ela, a coisa, deixa de ter a mesma essência de antes. Não é mais a coisa, mas o outro da coisa-inominável.

 

A arte é a metáfora de uma parte da nossa busca por nomeação. Ela é o presente de um passado inominável, mas ela mesma já é nomeável. Passado do artista e de si mesma. Passado de uma busca por definição “que sempre me [nos] afligi muito”. O artista vai se te- cendo de inomináveis que tentam nascer NOMES em sua obra. E ele nos dá, como o faz Ju Bernardo, cada um deles de presente, com o cuidado e a devoção de um criador. O histórico das criações do artista configura o tecido (mapa) dos seus ex-inomináveis. “A relação afetiva que se tem com os materiais de certa maneira ensaiam um poética”, que, se permitissem que o corpo fosse aberto, “revelariam que eu mesma [nós mesmos] sou feita desses fios que estão na obra”; fios que certamente sustentam novos inomináveis, que nos movimentam.

A composição da trama desse tecido é que nos seduz. Mas ao nos depararmos com um título que indica que uma exposição trata de coisas que não têm nome, é automático, pelas nossas experiências na vida, intuirmos que os elementos que a compõem são inomináveis. E talvez isso nos gere grande curiosidade. A tentativa de domínio nos toma em um rompante e logo confrontamos: Como algo pode existir sem que eu tenha lhe atribuído nome?

 

Ao adentrar o espaço, imediatamente, somos lançados a uma enxurrada de objetos que são definíveis. De televisões a pedaços de madeira, de vídeos a escultura, de papel a grafite, de som a performance, tudo que aqui há recebe nomes, ou, quem sabe, categorias. São mate- riais conhecidos, materialidades que podem ser qualificadas, técnicas comuns à arte. E tudo isso tem um nome, de que você e eu podemos falar e falar e calar. Nesses e desses nomes a metáfora do inominável se constitui. Ela precisa de uma zona de compartilhamento para se fazer presente. No fundo, o inominável em arte é uma constante que opera como presença de uma ou várias ausências (inomináveis, muitas vezes).

 

Essa CONSTANTE é a manutenção de duas naturezas de INQUIETAÇÃO: pessoal do artis- ta e coletiva de uma época. Inquietações dele e nossas em fricção, pela nossa implicação na obra por dividir com ela o espaço e o tempo do agora. “Hoje, uma inquietação que envolve o processo de habitar um espaço no mundo, conhecer o mundo pela materialidade do de- slocamento do meu ser [do nosso ser] nele; (...) um modo de ampliar, estender os lugares habitados e percebidos pelo corpo, que não é corpo.” Um convite de Bianca Zechinato para que a ajudemos a pertencer a lugares; a descobrirmos como nós pertencemos com ela e se pertencemos juntos. Friccionar nossos mundos para que nos sensibilizemos a única verda- deira maneira de existir: sempre situados.

 

Se pensarmos que a linguagem surge a partir da vontade de comunicar algo, de expressar por meio de códigos – sejam eles verbais, corporais, virtuais etc. –, de vivermos o mundo em comunicação, temos à mão um extenso conjunto de palavras e sinais que permitem essa ação, mas que nem sempre dão conta da construção de metáforas que façam ver no com- partilhável em arte o inominável das inquietações que movem o artista e nos movem até ele, até sua obra. Criamos, e ainda bem que o fazemos, vínculos não nomeáveis.

 

Quando Gabirante Souza nos convida a frequentar com ele “pintura sem pintura”, parece estar nos instigando a permitir que a metáfora das suas inquietações ainda sem nome ganhe atualidade. “Vestir essas armações de madeira com panos sobrepostos” é a metáfora do ar- tista para nos apresentar certo outro daquilo que temos pelo nome PINTURA. A necessidade de instaurarmos o outro de algo na linguagem, e nisso, até mesmo outra linguagem, é ur- gente porque “talvez não seja possível resolver tudo no mundo real [da linguagem ordinária] e então fugimos para o campo da linguagem [artística].” Fuga do nome para a metáfora e dali para o direito de não nomear.

 

Fazer emergir em obra de arte nova forma de compartilhamento (linguagem) está próximo da noção de assemblagem, em que elementos vindos de outros modos de se comunicar unem-se, ou sobrepõe-se, e compõe algo novo. Esse novo não tem a ver com ineditismo, mas com diferentes experiências quanto à aplicação de métodos e meios de comunicação. É comum atribuirmos ao artista, a partir de suas obras, “linguagem”, quando se trata de um procedimento constante que aparece em sua produção ou de uma temática reiterada em diversos trabalhos, particularizando-o.

A linguagem do artista, aquela que nós reconhecemos, e não ele (muitas vezes), como intrusos à obra, fruidores, pesquisadores, curiosos, diz respeito ao campo incerto das metá- foras que por ele seletivamente (consciente disso ou não) iluminam um “mais para lá” do nomeável; aquilo da obra que acolhe os nossos sentidos, mas falha na relação pensamen- to-linguagem. O nosso inominável, nós atribuímos ao artista, e esquecemo-nos do nosso dever de mantê-lo conosco, para que o artista tenha seus próprios inomináveis. Os nossos e os dele (inomináveis) bebem e dançam juntos, mas no fim da noite retornam cada qual para seu canto de origem, com esperanças de outros “vir a ser”. Distintos.

 

Mas de que emerge a linguagem do artista? Talvez seja esta também uma das áreas re- pletas de inomináveis. E espero que você, tanto quanto eu, não queria tirar a graça que há em manter certas coisas nebulosas. Não raro podemos deslizar pela sensação de que aquilo que não possui um nome não existe, porque se real fosse com certeza já teria uma definição, ou minha, ou sua, ou de alguém antes de nós. Não sejamos tão prepotentes!

 

O que aqui está apresentado é resultado de diálogos e negociações entre três agentes: artis- tas, curadora e professor/pesquisador - instigados a investigar nuances de como o processo criativo se constitui e como se dá seu amadurecimento a partir de experiências e vontades. Esse estudo será desdobrado ao longo da exposição e não pretende chegar a conclusões, senão se estabelecer como um contexto inesgotável, inacabável e, por isso, sem uma única denominação possível.

Entre os muitos “vir a ser” de artistas e obras, o caminho percorrido por estudante de arte até sua consolidação como artista – e, por conseguinte, em mostras e no circuito institucional e mercadológico – pareceu fazer favorecer um contexto em que as mudanças e vicissitudes na busca pela LINGUAGEM-PRÓPRIA são permitidas e muito bem-vindas e que a experimen- tação é válida e precede qualquer categorização.

 

Desse modo, artistas em seus inícios de carreira e recém saídos do ambiente acadêmico ou ainda presentes nele, foram convidados a conversar sobre esse momento de suas pro- duções. Se por um lado a universidade parece oferecer materiais e métodos para a experi- mentação, ou seja, nomear, em um sentido oposto e complementar, ela intuitivamente lança o artista-estudante em um mar de instabilidades da linguagem (inomináveis) – desestabili- dade necessária à criação; é exatamente na tentativa de se construir um mínimo de calmaria de identidade (operar por ausências e metáforas) que surgem as obras desta exposição; portanto, tenhamos paciência, e não se sintam obrigados a nomear essa experiência.



Carolina De Angelis é membro da Curadoria do Instituto Tomie Ohtake. 

Juliano Casimiro é professor da Universidade Federal do Tocantins e professor convidado da UNESP. Sua pesquisa entre as áreas das artes cênicas e psicologia pautasse na construção dos processos criativos.