NAS QUINAS DA CENA
ou
SIMULANDO O ACASO
[Hall de um instituto, finissage de uma exposição. Dois artistas se encontram por acaso na beira das escadas que levam ao primeiro piso, na entrada da sala expositiva. Os artistas não haviam se encontrado desde a abertura da mostra.]
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ARTISTA 1
Muito curioso rever a exposição depois da abertura! Eu só havia revisto a exposição pelas fotose, sabe de uma coisa, eu achei ela muito... limpa, apesar de tudo! Nunca dá pra imaginar o que é a exposição quando ela está sendo montada. E depois era a abertura,era aquela confusão toda, estava lotada de gente e você não conseguia ver um pedaço de parede branca. Nas fotos começei a achar que tava tudo organizado, e ali que tava a cara da exposição, mais bem formatada. Continuo com essa impressão...
ARTISTA 2
Nem todo mundo teve essa impressão. Ouvi uma anedota interessante em relação ao trabalho de um artista que suscitou tanto desconforto por parte de um visitante que ele deslocou todas as peças que estavam posicionadas no chão e reorganizou por tamanho crescente.
ARTISTA 1
Que maravilha! Alguém com toc talvez? Mas a pessoa ficou horas mexendo no trabalho?
ARTISTA 2
Isso não sei, mas o artista voltou para reorganizar o conjunto, deixá-lo mais próximo ao que havia ficado na montagem.Que forte isso: o trabalho incomodou tanto pela sua disposição aparentemente caótica que provocou essa reação no visitante que teve o tempo, o empenho e a disposição para organizar de outro jeito, mesmo que de um jeito careta, racional.
ARTISTA 1
Acho que isso diz muito sobre como projetamos a figura do artista, essa pessoa que dá uma perspectiva e ordem diferente pras coisas e que tenta fugir do senso comum.
ARTISTA 2
Na verdade é a voz do senso comum que não aprova tal disposição de elementos imbricados um no outro por dar uma sensação de vertigem, de bagunça, uma espécie de arquitetura precária, um quase cenário com imagens muito impactantes. As imagens são fragmentadas e formadas por uma junção de várias técnicas de reprodução, das mais precárias às tecnológicas, então o conjunto tem esse ruído e granulado, que ainda por cima é marcado com rasuras e rabiscos: uma estética suja mesmo.
ARTISTA 1
Será que se trata realmente de fugir do senso comum? Talvez de uma maneira geral sim, mas no meio da arte contemporânea, será que o senso comum não seria fazer caótico e confuso,criar narrativas herméticas ou ainda lançar enigmas no mundo?
ARTISTA 2
Ou melhor, um simulacro de acaso, de caos composto minuciosamente. Uma encenação pautada pela idéia de confusão.
ARTISTA 1
Mas continuando nesse lugar insípido que é o cubo branco. Sujando-o...
quase que encenando a sujeira no cubo branco.
ARTISTA 2
De uma maneira muito distinta, tenho a impressão que o artista do giz suja também esse cubo branco.Tem uma subversão no gesto de riscar com o giz toda a supercífice entre os trabalhos expostos, nesse lugar obliterado, destinado a permanecer na condição de vazio e que, ao lado das obras expostas, desaparece Mas a radicalidade de ressaltaras bordas dos trabalhos some, se dissimula, só se vê aquele rastro no chão. O acumulo de giz ficou algumas semanas, até que foi limpado por se confundir com uma sujeira.. ou talvez, mais uma vez, por incomodar.
ARTISTA 1
Que paradoxo a exposição parece tensionar: ela ao mesmo tempo revela um fetiche e uma aspiração por uma sujeira e uma falta de ordem, mas principalmente, parece que para testar o pontencialdessa dita sujeira emperturbar e chatear.
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ARTISTA 3
[Olhando para uma série de pinturas de grande porte] É engraçado como a obra de arte continua tendo uma aura que acaba sempre se impondo né.
ARTISTA 4
Ou será que ela é imposta?
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ARTISTA 5
É ótimo quando você participa de uma exposição onde não precisa demandar demais dos técnicos, quando você consegue se resolver sozinho no meio da bagunça. Ainda mais com quinze artistas potenciais solicitadores dos serviços da equipe de montagem. Eu ficava ali observando no meu canto, como se assistisse a um filme em 3d, enquanto calmamente ajustava detalhes dos meus objetos que rimam. Numa dessas presenciei um diálogo de alguém que pedia aos artistas para assinar um documento atestando que estava ciente e que concordava com o fato daquela ser uma exposição experimental, onde era possível que algum artista interviria no trabalho do outro. Se estivesse de acordo, que assinasse. Enfim, dessas burocracias clássicas ainda mais numa instituição endurecida como essa onde a exposição chegou a assustar de tão “experimental”. Na cena que eu via, achei bem paradoxal, um artista que mostrava um dos trabalhos mais abertos, que necessitava de intervenção, se recusava a assinar tal termo. Parecia que o que ele queria era não formalizar, evitar a criação de muita cerimônia em torno de se intervir no trabalho dele.
ARTISTA 6
É, como quem quer manter uma espontaneidade.
ARTISTA 5
Isso, ele tava falando que não precisava de assinar um documento pra isso… se quiser fazer alguma coisa me fala. Novamente eu via despojamento que na verdade era um cálculo minucioso. Uma espontaneidade concentrada na palavra (autoridade) dele.
ARTISTA 6
Claro, pra seguir sendo o roteirista daquela intervenção, né. Não podendo deixar de ser protagonista.
ARTISTA 5
Acabo suspeitando que a característica mais marcante da “radicalidade” desse experimento curatorial é a quantidade de protagonistas.
*
[A todo momento passam transeuntes: Gente saindo para fumar um cigarro, comer, funcionários chegando de alguma tarefa externa, visitantes (sempre um pouco perdidos), estudantes, etc. Todo o diálogo de fato é permeado por pequenas interrupções onde os artistas acenam com a cabeça, com a mão, ou mesmo dizem um olá para alguns que chegam ou saem. Não vem ao caso reproduzir em texto sempre esses detalhes, esse gestual, esses ruídos que passam aqui despercebidos, mas que não devem se ausentar na cena. ELENCO DE APOIO 1 interrompe amigavelmente a conversa entre artista 7 e 8]
ELENCO DE APOIO 1
Ei gente, tudo bom? Sabem que até agora não entendi porque nessa exposição há rastros de performance em alguns cantos, em outros não. Há partes tão limpas quanto um laboratório de produção de alta tecnologia. Já pensei em traduzir isso como notação musical, ou então esses rastros como uma espécie de marca-texto, como que sublinhando determinadas passagens da exposição.
ARTISTA 8
Será que aqui algo realmente sujou, e o sujo seria essa coisa mais experimental, independente, uma coisa mais anárquica? Se de fato houve, né, uma sujeira. Ou se isso já virou uma característica obrigatória de uma arte mais jovem e descolada.
ELENCO DE APOIO 1
Mas e as performances, os rastros?
ARTISTA 7
Sim, o que chegou a cair no chão.
ARTISTA 8
Ah, então. Tem obra segurada aí, que não pode encostar.
ARTISTA 7
Então, não seria o supostamente experimental uma espécie de academicismo?
[Toca o telefone de ELENCO DE APOIO 1 que se despede e vai embora]
ARTISTA 1
Ou ainda: não seria o experimentalismo uma disciplina obrigatória na formação do artista?
ARTISTA 2
Atuando direitinho aqui nessa nossa cena. Uma intenção de barbarizar, de esticar os limites institucionais. E até que isso aconteceu, né. Disseram que algumas pessoas do instituto ficaram horrorizadas. Mas parece que em comentários externos, alguns parceiros adoraram e querem uma exposição parecida quando rolar o evento deles no ano que vem. Depois dessa legitimação externa, talvez o projeto passou a ser mais bem visto de dentro. Engraçado como as vezes é preciso uma legitimação de fora pra se poder aprovar algo que vem de dentro.
ARTISTA 1
Até pensei, depois dos comentários, eu até senti mesmo que algumas pessoas ficaram incomodadas. Só que com ocorrências tão codificadas e sedimentadas no vocabulário das artes contemporâneas… Não sei como isso ainda assusta.
ARTISTA 2
No final talvez essa intenção talvez prevalecesse em alguns trabalhos, mais do que os trabalhos em si... De que maneira talvez as obras que menos se faziam, se pretendiam uma crítica institucional, um rompimento de barreiras, que menos se pretendiam como algo que fosse chocar, tensionar, provocar algumas estruturas, em que medida talvez essas fossem as obras que realmente estivessem numa posição mais ousada. Não sei, é uma pergunta que me faço.
ARTISTA 1
As vezes isso já chega para os artistas quase como uma obrigação, ter alguma coisa que se encaixasse nessa ideia de ser algo processual experimental. Ah, que legal, então vou por uma mesa aqui e uns pedestais ali, a cada semana eu venho e troco essas coisas de lugar. Ou então: vou trazer aqui esses trabalhos, inacabados, durante a exposição virei, com hora marcada, retrabalhar cada um destruindo, adicionando material, reconstruindo…
ARTISTA 2
Mas até que ponto isso é inerente ao trabalho? O seria uma fantasia inventada para preencher uma agenda proposta pelo curador?
ARTISTA 1
Exatamente vamos brincar aqui de ser processuais!
ARTISTA 2
Sim, aquela performance por exemplo em que a artista lê no microfone, reproduzido no último volume repetindo por várias vezes, os e-mails que trocou com a produção do projeto. Até que ponto isso não se torna um fetiche de um silenciamento. Teve artista que jogou completamente esse jogo, a partir do momento que soube que ia ter algum tipo de impedimento, aí que se obstinou: tarjaram minha nudez!
ARTISTA 1
Nessa hora perigosa em que o artista se coloca como vítima… Obviamente não estou defendendo instituição nenhuma, tenho uma dose boa de anarquismo que carrego comigo até. Realmente é muito precário, tudo. Imagina, ter que ficar brigando por cada parafuso! Às vezes a instituição não compra a ideia do artista, mas é ela quem o convida. Não é fácil. Lembro da bienal, que até dez, doze anos atrás não pagava cachê para os artistas, como se eles não estivessem trabalhando, ou como se fosse um favor dar espaço e visibilidade. Isso mudou depois de um grupo de artistas se organizar e exigir uma relação mais profissional por parte da produção. É um território de conflito mesmo. Masbater de frente com a instituição só pelo embate, aí vira o playground dos oprimidos
ARTISTA 2
Chega a serconfortável essa posição né?
ARTISTA 1
Afinal de contas, crítica institucional já é uma categoria, um modo de fazer, uma linguagem conhecida, compartilhada. E cheias de perversidades! O mesmo motivo que faz os chefões do instituto desconfiarem desse projeto, se incomodarem e chegarem a reclamar, é o que inspira outros a respeitara instituição, por haver uma ousadia, um arrojo… O próprio instituto ganha com essa possível autocrítica, entre todas as aspas, que parece se fazer. Vi uma outra instituição que já faz algum tempo começou a denominar alguns de seus projetos de ocupação. Agora você imagina de onde vem esse vocabulário e onde ele acaba parando, apropriado por instituições como essa, financiada por bancos! É uma verdadeira [interrupção abrupta]
ARTISTA 9 [chega afobado]
Ah não, gente. Vocês viram aquele artista que criou pautas musicais a partir da posição dos passarinhos nos fios dos postes? Quem deixou ele colocar? Muito parecido com a minha ideia pra exposição, eu falei primeiro! Vários dos meus amigos disseram que vem ver só por causa desse meu trabalho!
ARTISTA 2
Pois falávamos disso, da precariedade das relações entre artista, curador e instituição, das apropriações indébitas de vocabulários e de ideias… tudo tão frágil…
*
[ARTISTAS 1 e 2 agora precisam se despedir. Para isso vão juntos até a fachada do instituto, onde há o banner que divulga a exposição, onde estampam-se seus nomes em caixa alta]
ARTISTA 1
Não podíamos ir embora sem esse registro!
ARTISTA 2
Não mesmo, arrasamos! Qual é mesmo a senha do wifi do instituto?
[Os dois só vão embora depois de fazerem algumas selfies ali, publicando em suas contas de instagram com uma escolha minuciosa de hashtags]