PERGUNTA N3: como as coisas ganham forma?
Ao adentrarmos à exposição, um amontoado de imagens no fundo sala nos saltam aos olhos. Não sabemos se nos aproximamos ou nos afastamos. Somos, ao mesmo tempo, convidados e intimidados pela sua presença. Intrigados, nos vemos tomados de assalto por inúmeras questões: Há alguma ordem que levou o artista a dispor desse modo seu trabalho? Por que alguns elementos estão no chão e outros na parede? Podemos pisar neles ao caminhar ou trocá-los de lugar? Como essas coisas ganharam essa forma?
Essas são perguntas para as quais não há respostas únicas. As coisas podem e não podem trocar de lugar; o artista decidiu e não decidiu colocá-las desse jeito; elas estão e não estão dispostas de forma definitiva. Podemos evitar pisar sobre suas imagens, porém muito provavelmente sem sucesso. Estamos convidados a habitar aquele espaço, mas podemos visá-lo de fora, à distância, como uma obra a ser preservada.
Ao que tudo indica, os painéis, impressões, posters e desenhos poderiam adotar outra forma. De fato isso aconteceu, inúmeras vezes. Pequenas transposições desencadearam uma sequência de permutações dando origem a novos conjuntos e novas formas de apreensão. A possibilidade de que as coisas encontrem outros lugares ainda permanece alta. Mas, antes de tratarmos das mudanças pelas quais passa o trabalho, vale retomarmos uma pergunta anterior: que coisas são essas?
Desde de 2013, o artista colabora com a Cia. Teatral UEINZZ. Além da participação em peças e da criação de elementos de cena, França iniciou uma série de registros dos integrantes do grupo em ação durante os ensaios e apresentações do espetáculo Cais (ou Caos) de Ovelhas. Manipulados digitalmente, esses registros originaram novas imagens, que receberam intervenções em grafite e tinta acrílica, aplicações em tecido e colagens de diversos tipos. De maneira análoga, o vídeo em exposição é o resultado de uma conjugação entre a filmagem da janela do quarto de hotel do artista e a narração feita pelo ator Colazzi na Escócia, onde o grupo se apresentava.
Um conjunto tão heterogêneo de coisas previa inicialmente a construção de um painel no espaço expositivo que pudesse recebê-lo. Tal plano se estendeu até poucas semanas antes da montagem, quando então um rearranjo das peças no ateliê implicou uma nova configuração: os painéis maiores se destacaram da parede, a presença física das peças criou percursos, os retratos passaram a fazer frente aos seus espectadores, a escala corpórea ressaltou as feições, frágeis apoios revelaram o verso dos desenhos.
O momento a seguir do trabalho se deu no primeiro dia de montagem. Com todas as peças e estruturas a mão, o artista reconfigurou a forma inicial encontrada no ateliê, em negociação com a grande curva no fim da sala. Dispondo as imagens no chão, nas paredes e no verso desses elementos autoportantes, o trabalho se estabilizou nos dois primeiros dias.
Porém, com a visita da Cia. Teatral UEINZZ no terceiro dia de montagem, tudo se transformou. Numa ação prolongada por horas de maneira improvisada – e tal como já ocorria em ensaios –, as coisas criadas por França foram manipuladas livremente pelos atores. Esse “uso” dos retratos deu nova vida ao trabalho: a partir da ação do grupo, problemas de ordem meramente compositiva deram lugar a uma experiência ainda inconclusa e indefinida.
Essa configuração, contudo, continuou passível de intervenção nos dias posteriores à abertura da exposição. Assim como o grupo, visitantes puderam ver, entrar e tocar nas coisas, até que, mais uma vez, a estabilidade do trabalho se perdeu. Novas configurações deram outro aspecto às estruturas criadas e, nesse processo de surgimento de uma nova forma, o trabalho de França permaneceu em aberto.
O público, entretanto, mesmo desavisado do histórico dessas mudanças, pode evidenciar diante de qualquer um desses estados a presença de alguma intencionalidade em meio ao caos. Essa evidência foi o que levou a série inicial de perguntas, que não pode ser ignorada. Como é possível essa percepção? Como o caos guarda ainda algum sinal de ordem e propósito?
O trabalho de Pedro França e da Cia. Teatral UEINZZ nos oferece a ocasião para refletir sobre como gestos e atitudes dão origem às formas, a despeito da preocupação com a autoria de cada movimento. Ao fim, os visitantes são levados ao mesmo impasse que animou e anima a ação dos artistas: as coisas como se encontram não poderiam ser simplesmente diferentes? O que nos impede de lhes dar uma nova forma?
Priscyla Gomes é membro da Curadoria do Instituto Tomie Ohtake
Felipe Kaizer é designer gráfico e pesquisador independente