PERGUNTA N2: O que é uma 'coisa sem nome'?
Coisas sem nome nos levam a pensar que existam aquelas que são nomeadas. Mais ainda: chamamos de “coisas” tudo aquilo que normalmente não conseguimos nomear. Deduzimos que há aquelas que, nomeadas, deixam de ser simplesmente “coisas”, para se tornarem, por exemplo, “carro”, “pintura”, “instalação” ou “buraco”. Então, a pergunta por uma coisa sem nome só pode ser feita com a devida propriedade se retrocedermos a um problema anterior: o que é uma coisa?
Essa pergunta é um problema central para a filosofia. No contexto da exposição Arte
Atual Festival, cujo subtítulo neste ano é “Coisas sem nomes”, ela está em relação ao que comumente definimos como obra de arte. Vale dizer que, em geral, chamar algo de “coisa” equivale a rebaixar seu status; mas não pretendemos aqui fazer esse julgamento de valor.
O que se diz com esse subtítulo é que a exposição é composta de coisas, como no geral as exposições o são, porém com uma diferença: diz-se que as coisas foram despojadas dos nomes que já tiveram ou são inomináveis. Isso significa que faltam nomes que lhes sejam próprios ou mesmo um nome geral, sob o qual todas as coisas poderiam ser reunidas.
Na falta desse nome, as chamamos “coisas”. De outro modo, poderíamos chamá-las de “obras”, na esperança de que isso dissesse o que elas são. O título, no entanto, não pede que pensemos em obras, mas em coisas. Pensamos, então, não apenas no que seriam as coisas que aqui encontramos, mas também no que aconteceria se as chamássemos de “obras”: afinal, uma coisa é uma coisa antes de ser obra? Ou será que uma coisa é uma obra desprovida do seu caráter de obra?
Qualquer que seja o caso, dessas coisas não podemos falar senão de maneira vaga. Ainda assim, nos dispomos a falar de coisas sem nome; falamos porque ao menos estamos na sua presença. Confiamos que, falando ou silenciando, as coisas permanecem as mesmas, nos seus lugares. E, por uma estranha analogia, vemos que as coisas se fazem assim presentes independentemente da nossa vontade. Assim é que, na medida em que desafiam nossa capacidade de falar e se impõem à nossa presença, as coisas ganham vida. Vemos que são elas, as coisas, que falam ou silenciam; que são elas quem nos olham em primeiro lugar.
Logo, como permanecemos sob o olhar das coisas? O que nos resta fazer se ficamos sem nomes para lhes dar? Encontramo-nos em um impasse: reconhecemos ao nosso redor coisas que diferem das coisas cotidianas, sem que possamos sequer identificar o estatuto dessa diferença. Invocamos assim, inadvertidamente, um critério quando queremos distinguir as meras coisas (sem nomes) das coisas “normais”: dizemos que as coisas no geral têm ou não alguma utilidade; que são úteis ou inúteis. Para o senso comum, as coisas normais (que têm seus devidos nomes) são normais enquanto simplesmente funcionam, em meio às nossas atividades ordinárias, sem despertar nossa atenção para o que realmente são.
Esse paradoxo – de que as coisas “normais” são aquelas das quais mais dependemos para fazer o que fazemos e, no entanto, as que menos se fazem notar – é recorrente nos escritos do filósofo alemão Martin Heidegger. Sob a denominação “o utensílio”, é possível conceituar a simultânea proximidade e imperceptibilidade dessas coisas. A determinação do que seja utensílio aparece também em um dos textos centrais ao desenvolvimento do pensamento de Heidegger, A origem da obra de arte, publicado em 1950.
No desenrolar desse texto há uma alternância entre as ideias de “coisa”, “utensílio” e “obra”, do qual aproveitamos para a nossa breve investigação somente a dificuldade para determinar o que seja a mera coisa. Após uma longa digressão em torno dessa tríade, Heidegger conclui que o conceito de coisa obstrui o entendimento do que é uma obra de arte. Como prosseguir, portanto, se “o caráter de coisa na obra não deve ser negado nem deixado de lado”? Talvez uma exposição como esta, na qual as coisas se expõem imediatamente, ofereça uma saída a esse impasse.
O que a pergunta pelo sentido do título propõe é que se pense que as coisas aqui não são coisas por estarem fora ou à margem dos gêneros (como pintura, escultura ou performance), mas sim por serem meras coisas antes de serem obras. Dizemos com isso que “obras” são apenas casos especiais das coisas; casos aos quais, na falta de nomes que coloquem as coisas sob controle, damos a alcunha genérica de “obra de arte”. O acontecimento da obra, por assim dizer, nada mais é do que um acontecimento possível da coisa. O caráter de coisa que antecede a própria obra é o que nos permite experimentar a abertura vertiginosa que por raras vezes experimentamos junto às coisas. Pois não é na proximidade de qualquer obra que estamos “repentinamente em outro lugar diferente do que habitualmente costumamos estar”.
Não é à toa que uma pergunta tão simples ofereça tantas dificuldades. Se queremos nos demorar junto àquilo para o qual não podemos dar nome, à espera de que algo se apresente a nós em seus próprios termos, precisamos nos desvencilhar das forças que nos encerram à cega habitualidade.
Priscyla Gomes é membro da Curadoria do Instituto Tomie Ohtake
Felipe Kaizer é designer gráfico e pesquisador independente