Onde acaba o espaço da representação? O que limita as imagens e os espaços que conhecemos através da pintura, da fotografia e do cinema? Como o teatro e a dança enquadram corpos e os colocam em cena? Para o cinema, a fotografia, o teatro, a dança e a pintura ocidentais, enquadrar tem sido uma das condições fundantes para sua própria experiência. Mesmo os mais subversivos experimentos lidam com a definição e a percepção do quadro como um dos pactos entre público e artistas na realização dessas linguagens. Diante disso, Quadro, Desquadro, Requadro, segunda edição do Arte Atual Festival, realizada em parceria com o Festival Path 2016, problematiza a ideia da cena e do quadro em múltiplas frentes.
Ana Mazzei e Renata De Bonis encontram na história da pintura referências para os seus trabalhos. Por um lado, os mobiliários de Mazzei evidenciam as estruturas formais, semânticas, gestuais e simbólicas que sustentam as composições pictóricas de Jacques Louis David e Giotto. Por outro, De Bonis resgata a sonoridade das localidades correspondentes às pinturas de David Caspar Friedrich e as confronta com o imaginário construído em torno das paisagens sublimes emblemáticas do romantismo alemão.
Manuela Eichner e Patrícia Araujo aproximam a ideia de embate de um corpo com outros corpos e/ou com a paisagem e o tecido urbano. Eichner o faz se valendo da fragmentação própria da colagem, que mescla imagens e elementos de procedências diversas, mas extrapola o plano bidimensional para investir o espaço em assemblages tridimensionais. Já Patrícia Araujo propõe, em uma instalação híbrida, uma reflexão sobre a reação dos corpos diante da destruição – seja ela provocada por desastres naturais ou, ainda, resultado da especulação imobiliária.
Por fim, as estratégias de enquadramento e encenação nas obras de Márcia Beatriz Granero e Claudia Briza fazem alusão direta à sintaxe do cinema narrativo tradicional. Dando continuidade a uma pesquisa acerca dos espaços expositivos da cidade, Márcia Beatriz Granero faz do Instituto Tomie Ohtake o novo cenário de investigação de sua personagem Jaque Jolene. Também interpretando personagens para si, Claudia Briza interage com trechos de filmes escolhidos, em vídeos nos quais ao mesmo tempo excede e reitera o caráter selado do quadro da ficção.
As reflexões entonadas pelas artistas convidadas para a exposição são ampliadas por uma programação com convidadas a trazerem colaborações de outras linguagens e campos de pesquisa, sempre comprometidas diretamente com a questão da encenação e do colocar-se em quadro. A partir dos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Dalila Martins realizará uma palestra sobre enquadramento no cinema experimental. Interessada nas relações entre texto e dança, entre a escrita da coreografia e as formulações gestuais decorrentes, a coreógrafa Clarice Lima propõe a composição de uma coreografia ao vivo a partir do movimento do público do hall do Instituto. O público também pode tomar parte do processo na oficina Manifesto de um Corpo Delirante, proposta por Carolina Bianchi, que consiste em uma vivência centrada nas relações do corpo na e com a cena, assim como as possibilidades de enquadrar, exibir e provar o desejo.
Mais do que propor respostas definitivas, Quadro, Desquadro, Requadro sublinha a ambiguidade e a dificuldade de discernir o limite da cena e a delimitação do campo da imagem como fronteiras definitivas. As obras, performances, palestras e oficinas que integram esta edição do Arte Atual Festival apontam para o espaço da representação como um meio de contenção que segue uma lógica de inclusão e exclusão sempre viva, como membrana entre os espaços da arte e da vida.
Paulo Miyada e Olivia Ardui
Texto curatorial - "Arte Atual Festival - Quadro, Desquadro, Requadro"
Núcleo de Pesquisa e Curadoria
Instituto Tomie Ohtake
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Sobre as artistas e as obras
Renata De Bonis
Em muitos de seus projetos, Renata De Bonis (São Paulo, 1984) evoca lugares que visitou em viagens. Atenta ao que há nos ambientes naturais e remotos, procura restituir ou traduzir algo de sua singular presença em instalações sonoras, desenhos e coleções de objetos. A série Anotações a partir de Caspar David Friedrich é a primeira materialização de uma pesquisa acerca das paisagens sublimes consagradas por esse pintor romântico alemão da primeira metade do século XIX. De Bonis, que sempre o admirou, viajou à Europa para mapear, localizar e visitar diversos dos cenários em que ele tinha realizado as suas pinturas. Ao invés de focar-se na imensidão atemporal das paisagens, capturou a sonoridade dos ambientes, a parte que existia apenas como imaginação projetada sobre a visualidade enquadrada. As faixas de som gravadas nas locações de Friedrich, então, tornaram-se substrato para esta sinestésica instalação sonora.
De 13 a 22 de maio de 2016: Der Mönch am Meer / Monge Diante do Mar [da série Anotações a partir de Caspar David Friedrich], 2015/2016. Captação sonora realizada à beira mar na Ilha de Rügen em paisagem retratada pelo pintor alemão Caspar David Friedrich em Der Mönch am Meer [1808-1810], instalação sonora composta por dez canais e diversos elementos coletados no local.
Apoio: João Miguel Torres Galindo Projetos (sistema acústico e eletroacústico-Q Acustic) e Maison de La Musique (som, áudio e automação High End. Agradecimentos: Künstlerhaus Lukas, Caspar David Friedrich Zentrum e David Menezes
De 24 a 29 de maio de 2016: Klosterruine Eldena / Ruínas de Eldena [da série Anotações a partir de Caspar David Friedrich], 2015-2016
Captação sonora realizada em meio às ruínas do monastério de Eldena na cidade de Greifswald em paisagem retratada pelo pintor alemão Caspar David Friedrich em Klosterruine Eldena [1825], instalação sonora composta por dez canais e diversos elementos coletados no local. Apoio: João Miguel Torres Galindo Projetos (sistema acústico e eletroacústico-Q Acustic) e Maison de La Musique (som, áudio e automação High End). Agradecimentos: Künstlerhaus Lukas, Caspar David Friedrich Zentrum e David Menezes
Márcia Beatriz Granero
Desde 2010, Márcia Beatriz Granero (São Paulo, 1982) desenvolve videos que tecem curtas narrativas protagonizadas por Jaque Jolene, uma personagem fictícia interpretada por ela mesma. Essa figura anacrônica aparece em diversos contextos urbanos e, mais recentemente, tem sido vista em explorações dos espaços expositivos de São Paulo. Depois de repetidas visitas e uma pesquisa sobre o local, a artista elabora um roteiro de ações, sem falas, que assimila a sintaxe do cinema clássico – nos enquadramentos, trilhas sonoras e princípios de montagem; e nos gestos e expressões da encenação. A ficção é o meio que a artista encontrou para colidir elementos da história e do funcionamento das instituições com as obsessões de sua persona. Em Lacuna, é o Instituto Tomie Ohtake que recebe a visita de Jaque Jolene. Na narrativa fragmentária, o espaço sonoro é tão importante quanto as ações encenadas, e a presença imagética do edifício impõe-se sobre suas dinâmicas de uso.
Márcia Beatriz Granero, Lacuna, 2016
Vídeo,cor, estéreo, 9’
Cortesia da artista
Manuela Eichner
Múltipla, a produção de Manuela Eichner (Arroio do Tigre, 1984) abarca desde videos e performances até oficinas colaborativas, passando pelo desenvolvimento de estampas, peças de design gráfico e ilustrações. Nessas diferentes frentes, recorre sistematicamente a princípios de colagem, ruptura e embaralhamento da unidade espacial, contextual e semântica de imagens de procedências distintas. Ultrapassar as bordas de um suporte e ampliar o seu quadro até que ele coincida com o espaço inteiro é uma estratégia latente nas propostas mais recentes de Eichner. Os experimentos realizados em seus projetos monstera extrapolam o plano para invadir o espaço com colagens tridimensionais em que as imagens de corpos e objetos emaranhados ganham uma escala imersiva. A presença dessa massa híbrida, estranha e monstruosa em sua convergência de materiais impressos, plantas e objetos, interpela o espectador e suas presunções sobre corpo, espaço e natureza.
Manuela Eichner, Monstera Deliciosa, 2016.
Colagem tridimensional, dimensões variáveis.
Manuela Eichner, Brasileira, 2016
Mixed media, impressão e acrílica sobre tela
Manuela Eichner, Devastada, 2016
Mixed media, impressão e acrílica sobre tela
Claudia Briza
Nos seus videos e fotografias, Claudia Briza (São Paulo, 1965) atua em cenários incompletos, rearranjos de sobras de cenografias dos bastidores do meio audiovisual. Evidencia assim a artificialidade dos adereços cênicos, figurinos e efeitos de luz e movimento, enquanto descortina e desvia os mecanismos que viabilizam a projeção e a empatia do espectador por personagens e narrativas cinematográficas. Nos vídeos O ovo da serpente e A hora do lobo, a artista entra e sai de quadro, diante de projeções de trechos de clássicos do cineasta Ingmar Bergman, interagindo com os discursos e ações que estão se desenrolando no filme. Se, em princípio, há uma separação clara entre a projeção e seu corpo, no vídeo, a artista integra um mesmo campo imagético com o filme de que se apropria. Já em a alegria era sempre uma pressa, Briza imita os trejeitos de Carmen Miranda, encarnação aos olhos do mundo do Brasil tropical e alegre – que terminou por sucumbir à força imagética de sua personagem.
Claudia Briza, , a alegria era sempre uma pressa. , 2016
Vídeo, cor com áudio, 9’14”
Cortesia da artista
Claudia Briza
O ovo da serpente, 2015
Vídeo preto e branco com áudio, 1’57”
Claudia Briza
A hora do lobo, 2015
Vídeo preto e branco com áudio, 3’28”
Ana Mazzei
O trabalho de Ana Mazzei (São Paulo, 1980) reflete as estruturas que instituem e delimitam o espaço da representação e da encenação. A referência às artes do espetáculo é recorrente, emergindo em vídeos que evocam dispositivos cênicos e em pequenas maquetes de feltro que evocam teatros greco-romanos, por exemplo. Em outras obras, essa reflexão é transposta para o âmbito da pintura, analisando suas estruturas formais, semânticas e simbólicas, desde a perspectiva até o enquadramento. Recentemente, Mazzei se voltou para as atitudes dos corpos que habitam o espaço da representação. Garabandal, Marat e Ascensão compõem uma série de peças de mobiliário que permitem ao visitante escorar seu corpo de forma a aproximar-se das poses pouco naturais de célebres figuras pintadas por artistas como Jacques-Louis David ou Giotto. Os corpos sustentados pelos dispositivos congelam gestos, transpondo as convenções sociais e simbólicas da história da arte para a atualidade do espaço expositivo.
Ana Mazzei, Garabandal, 2015/2016
Madeira e feltro
Ana Mazzei, Marat, 2016
Madeira e feltro
Ana Mazzei, Ascensão, 2016
Madeira e feltro
Patrícia Araujo
O embate com outros indivíduos e com o seu entorno norteia diversas das intervenções filmadas, fotografadas ou performadas por Patrícia Araujo(Fortaleza, 1987). Em algumas ações, trata-se de um corpo vulnerável e passivo, que pena ao fundir-se com a paisagem. Noutras, tenta competir com o incomensurável ou procura sustentar um equilíbrio frágil quando são muitas as eventualidades que podem o derrubar. Em Abalo, a artista apresenta uma constelação de registros que desdobram seu projeto Resposta Selvagem, no qual ela fixa lambe-lambes com nomes de acidentes geológicos nas paredes de alguns estabelecimentos de Fortaleza ou São Paulo que estão prestes a ser destruídos. Nesta instalação inédita, o abalo que pode ser comparado às dinâmicas imobiliárias se associa também a ensaios de aguda aproximação e abrupto choque em ações performáticas e em materiais de arquivo.
Patrícia Araújo, Abalo, 2016
Instalação e ações em vídeo com colaboração de Filipe Acácio
Programação Paralela
Carolina Bianchi
Clarisse Lima
Dalila Martins