O mar revolto e o tempo nublado que figuram na capa do disco Caymmi e o mar prenunciam o tom do terceiro LP de Dorival Caymmi, lançado pela Odeon em 1957.O álbum enfatiza desde sua introdução a grandeza do mar e a efemeridade da vida dos homens que dele dependem. O formato solo de “voz e violão”, tão característico do LP Canções praieiras, conservou-se em faixas como Promessa de pescador, O Vento ou Noite de Temporal, enquanto outras canções contaram com acompanhamento orquestral do maestro Leo Peracchi, além da participação de cantoras como Lenita Bruno e Silvinha Telles.
É o caso da primeira faixa do disco, especialmente longa (15’24” do total de 39’02”), intitulada História de pescadores. Ela começa com efeitos sonoros que mimetizam elementos da natureza: as ondas do mar, o vento, vozes que sugerem o canto das sereias. Entre essas sonorizações, é possível distinguir alusões melódicas da canção O Mar, que encerra esse LP. Após esse introito, a voz grave de Caymmi entoa uma narração da rotina dos pescadores, relato pontuado por seis canções que formam um conjunto narrativo coerente sobre a vida pesqueira (Canção da Partida— Adeus da Esposa— Temporal— Cantiga de Noiva — Velório Val— Na Manhã Seguinte).Apesar da dimensão trágica da história, a primeira (Canção da Partida) e a sexta (Na Manhã Seguinte) têm semelhanças e paralelismos que sugerem a dimensão cíclica da vida regida pelo mar.
Além de sintetizar o drama dos pescadores da Bahia aludido em canções praieiras anteriores, Caymmi e o Mar apresentou muitas inovações nas harmonias. O compositor baiano introduziu, por exemplo, notas de sexta e sétima maiores nos acordes menores, modulações de meio tom inusuais na época, que logo seriam assimiladas pela bossa nova. Há quem sublinhe no conjunto semelhanças harmônicas com o jazz e, ao mesmo tempo, identifique sonoridades próximas às da música erudita de Ravel ou Debussy, cujas composições – mais do que descrever narrativas ou emular emoções – sugerem impressões e atmosferas.
Em paralelo, músicas como Festa de Rua também revelam como o compositor, no intervalo entre Canções praieiras, de 1954, e este LP, se apropriou de referências do samba, como a batida do pandeiro, presente em algumas das orquestras do Rio de Janeiro. Caymmi reforçaria essa vertente em seu quarto LP, Eu vou p’ra Maracangalha, lançado alguns meses depois de Caymmi e o mar.
DORIVAL CAYMMI
Caymmi e o mar, 1957
Vinil
Coleção Pedro Pinhel
Algum mobiliário para os trópicos
Conta a anedota que certa feita Caymmi recebeu com grande entusiasmo Caetano Veloso em sua casa na Bahia, chamando-o para subir e ver sua mais nova e brilhante invenção. Ali chegando, Caetano surpreendeu-se com o motivo da empolgação: Caymmi tinha virado sua poltrona em direção à janela com vista para o mar e instalado diante dela um ventilador, aliando o repouso à contemplação e ao conforto.
Por um lado, a anedota combina com a imagem de Caymmi como criador preguiçoso, mitologia que ele mesmo gostava de alimentar no seu jeito moroso de contar histórias. Por outro, o arranjo dos móveis “inventado” por Caymmi é um singelo ensaio de mobiliário para os trópicos e, especialmente, para o calor e a paisagem praieira. A combinação de volumes arquitetônicos hermeticamente fechados com sistemas de condicionamento do ar não é – apesar do que se acredita em certos bairros de nossas cidades litorâneas – a única maneira de lidar com o clima tropical. A sombra, o repouso, o vento e o refestelar-se podem ser ótimos ingredientes para encontrar conforto nesses ambientes.
Em todo caso, a relação entre o mobiliário e os trópicos tanto já motivou engenhosas adaptações e invenções no âmbito popular quanto integrou o horizonte de interesses dos principais designers brasileiros de móveis. Especificamente, a adequação do mobiliário à paisagem praieira, amparada por uma arquitetura moderna, foi motor dos anos de amadurecimento de Sergio Rodrigues como designer e empreendedor. Dedicado a instalar no Rio de Janeiro da década de 1950 uma loja de móveis de alto padrão que se distinguisse da mera reprodução de clichês estilísticos dos móveis europeus, Rodrigues quis combinar o desenho moderno com a referência às raízes brasileiras, reeditando, no campo do design, uma abordagem modernista.
Imaginou a loja Oca com o apelo do nome de habitação indígena, e fundou seus projetos autorais na utilização de madeiras e materiais nativos. Chegou a imaginar que a sede da loja poderia ocupar um pavilhão leve feito sobre as areias da praia do Leblon. Se tivesse conseguido, a Oca, na praia, com móveis de madeiras de lei brasileiras seria um caso único de retórica do tropical. Não foi possível exibir os móveis de Rodrigues assim, com os pés na areia, mas esse desejo ecoou no primeiro ensaio fotográfico do Sofá Mole, cujo protótipo foi fotografado por Otto Stupakoff sobre as areias (e as ondas) do Leblon. Desse ensaio, restou a imagem do homem de camisa branca dobrada e pés descalços caminhando em direção ao sofá alcançado pela subida da maré.
Inusitada, essa imagem faz pensar na abrangência e significado da aproximação do mobiliário de Rodrigues ao clima tropical. É evidente que seus móveis não são, na verdade, “de praia”, no mesmo sentido com que o termo se aplica aos guarda-sóis e às cadeiras plásticas reclináveis. Tampouco são móveis à prova das forças da maresia, da incidência do sol ou da água salgada, pois decididamente adaptam-se melhor a ambientes interiores. O mais preciso seria dizer que esses móveis pertencem aos ambientes interiores da arquitetura moderna brasileira, com sua tendência aos pisos livres com poucas divisórias, em que predominam as transparências e aberturas de vistas privilegiadas para a paisagem ao redor. Ali, nesses espaços permeáveis, despojados e debruçados sobre a natureza, o mobiliário de Rodrigues se implanta como um móvel moderno capaz de colocar o corpo de quem o usa em uma instantânea postura praieira.
Ao invés de enfatizar o caráter produtivo e eficiente da arquitetura moderna, uma Poltrona Mole – da mesma família do sofá – cria oportunidade para a preguiçosa malemolência do sentar quase deitado com o delicado balanço das tiras esticadas no respaldar da estrutura, envolto pelo couro acolchoado. A cadeira transforma a sombra da arquitetura em extensão da vontade de passar o dia a contemplar o mar e a paisagem. Como metáfora, sugere que a edificação designe nobre assento para a preguiça, seu phármakon, remédio e veneno para a modernidade dos trópicos.
OTTO STUPAKOFF
São Paulo, 1935 / São Paulo, 2009
Ensaio fotográfico do sofá Mole realizado na praia do Leblon, 1958
Fac-símile
Otto Stupakoff/Acervo Instituto Moreira Salles
OTTO STUPAKOFF
Jorge Amado e Dorival Caymmi, 1975
Ampliação fotográfica
20 x 30 cm
Otto Stupakoff/Acervo Instituto Moreira Salles
OTTO STUPAKOFF
Pierre Verger e Otto Stupakoff, 1978
Ampliação fotográfica
20 x 30 cm
Otto Stupakoff/Acervo Instituto Moreira Salles
A relação do paulistano Otto Stupakoff com a fotografia aprofundou-se precocemente ingressando no Art Center College of Design em Los Angeles (EUA), já em 1953. Enquanto se formava como fotógrafo profissional, mudavam os padrões de consumo no Brasil e, consequentemente, abriam-se novos rumos à fotografia publicitária. Ao final da década de 1950, Stupakoff colaborou com campanhas publicitárias para a Rhodia e trouxe a fotografia de moda para as revistas de grande circulação nacional – que à época ainda eram ilustradas com desenhos a bico de pena. O fotógrafo foi também correspondente da revista Manchete, para a qual fotografou personalidades como Carmen Miranda, Manabu Mabe, Oscar Niemeyer e Tom Jobim, entre muitos outros.
Nesse período, Stupakoff ampliou sua atuação realizando capas de discos para a gravadora Odeon, destacando-se Caymmi e o mar, de 1957. Segundo o fotógrafo, ele sugeriu a Dorival Caymmi um de seus locais favoritos no Rio de Janeiro: o início da Avenida Niemeyer, onde atualmente há um mirante para o bairro do Leblon. Posicionou o cantor sentado defronte ao mar e fotografou em longa exposição o movimento das ondas e sua colisão com as pedras. A fotografia explicita uma correlação entre os cabelos brancos de Caymmi e a massa difusa da quebra das ondas. Inusitadamente, Stupakoff posicionou o cantor de costas para a câmera, burlando as convenções das capas sempre frontais e com destaque aos rostos de seus artistas.
Entre 1965 e 1976, Stupakoff consolidou-se como colaborador de revistas internacionais como Harper’s Bazaar, Vogue, Elle e Marie Claire. Enquanto vivia em Nova York e Paris, obteve reconhecimento internacional como fotógrafo de moda, em uma trajetória repleta de viagens (Nova Déli, Ilhas Maurício, Líbia, Hong Kong, Macau e Sri Lanka), episódios e aproximações com nomes como Coco Chanel e Yves Saint Laurent, expoentes do cinema e da política. Em 1976 retornou ao Rio de Janeiro, onde produziu a edição especial da Vogue dedicada a Jorge Amado. Suas viagens ao Brasil se intensificaram e Stupakoff retornou definitivamente ao país em 2005, ano em que realizou sua última exposição – uma grande retrospectiva de seu trabalho na São Paulo Fashion Week / Fundação Bienal de São Paulo.
Propaganda da Oca com foto de Otto Stupakoff na Revista Módulo nº 10, 1968
Fac-símile
Acervo da Biblioteca da FAUUSP
SERGIO RODRIGUES
Rio de Janeiro, RJ, 1927 / 2014
Primeiros croquis da Poltrona Mole, 1957
Fac-símile
Em 1957, o fotógrafo Otto Stupakoff encomendou a Sergio Rodrigues um sofá. Seu pedido era que o móvel o acolhesse generosamente quando quisesse se esparramar para recuperar-se de uma jornada de trabalho; além disso, deveria caber em um canto de seu acanhado estúdio e também em seu módico orçamento.
Com essas condições, Sergio Rodrigues realizou diversos estudos que avaliavam o melhor custo-benefício entre os materiais disponíveis. Ao apostar no exagero das partes estofadas, que deveriam transbordar para além da estrutura conformadora do móvel, Rodrigues acabou por criar o item de mobília que seria sua marca registrada, a Poltrona Mole. Com almofadões de couro soltos sobre cintas de mesmo material presas a uma estrutura feita em jacarandá maciço com encaixes manuais, a poltrona foi desenhada para ser um ícone de conforto, pensada justamente para o momento do descanso, abraçando o corpo de quem se aconchega com os macios avolumados de seu assento e encosto.
Sem poder pagar pelo projeto, Stupakoff retribuiu com um ensaio fotográfico na praia – frustrado pela rápida subida da maré, mas que acabou atraindo a curiosidade dos jornais. Ao longo da década seguinte, produzida e distribuída pela loja Oca, a peça ganhou visibilidade em outras partes do mundo, ganhando o prêmio de expressão de regionalidade no Concorso Internazionale del Mobile, na Itália. A estrutura bruta da poltrona, combinada com seu perfil corpulento e abundante, dedicado ao repouso relaxado, contrastava com o design moderno que prezava prioritariamente leveza, limpeza e praticidade – tanto na facilidade de transporte, quanto na adaptação para diversos ambientes.
Enquanto a maior parte da indústria da época valorizava a ergonomia (a adequação produtiva ao trabalho) de peças replicadas em série milhares de vezes, a Mole fartava-se em volúpia, sensualidade e preguiça, levando consigo ainda a referência ao móvel colonial brasileiro, sua forte presença, seu trabalho virtuoso com a madeira nativa. Ao longo dos anos, o designer ainda se preocupou em aprimorar e fazer alterações ao seu projeto original. Segundo Fernando Mendes, um dos principais colaboradores de Rodrigues, as maiores mudanças puderam ser verificadas no início dos anos 2000, quando adotou a solução das travessas de outra de suas poltronas, a Sheriff – versão da Mole produzida na Itália durante os anos 1960 –, em que as linhas retas foram substituídas pelos contornos curvos e os pés torneados tiveram sua espessura ainda mais aumentada.
SERGIO RODRIGUES
Primeiros croquis da Poltrona Mole, 1957
Fac-símile
SERGIO RODRIGUES
Primeiros croquis da Poltrona Mole, 1957
Fac-símile
SERGIO RODRIGUES
Croqui das cunhas da Poltrona Moleca, 1963
Fac-símile
SERGIO RODRIGUES
Poltrona Mole, desenho de Sergio Rodrigues
Fac-símile
SERGIO RODRIGUES
Ilustração de Sergio Rodrigues para a exposição "Falando de Cadeira, retrospectiva 1954/1991" (MAM/RJ), 1992
Fac-símile
SERGIO RODRIGUES
Logo da loja Oca,
Fac-símile
Desenho de Millôr Fernandes da Poltrona Mole para o catálogo da Oca, 1965
Fac-símile
Vitrine criada por Millôr Fernandes da loja Oca, situada na Rua dos Jangadeiros nº14 – loja c, Ipanema – Rio de Janeiro, 1965
Fac-símile
Arquiteto de formação, Sergio Rodrigues demonstrou grande interesse pelo desenho de móveis quando ainda estudava na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). Desde a graduação, entre 1947 e 1952, iniciou pesquisas relacionadas à história do mobiliário brasileiro, procurando aproximar-se desse campo de atuação como monitor da disciplina de Planejamento de Interiores. Foi nesse mesmo período que cursou Decoração do Lar – área nova e, à época, muito voltada ao público feminino – e conseguiu seu primeiro emprego já como desenhista de decoração.
Aproveitando-se dessas experiências e, ao mesmo tempo, observando criticamente os clichês e fragilidades de seu incipiente campo de atuação, passou a investigar como uma decoração moderna poderia abordar o mobiliário com o mesmo nível de elaboração, originalidade e precisão dedicados à arquitetura. Aquela era a época de consolidação da arquitetura modernista brasileira, reconhecida em âmbito nacional e internacional, com vínculos nas esferas midiáticas, governamentais, artísticas e produtivas; faltava ao design de mobiliário estar à altura da intensidade desse processo.
Tendo como principais referências Joaquim Tenreiro e Zanine Caldas, conhecidos por suas maneiras próprias de interpretar a tradição e os materiais do mobiliário brasileiro, Sergio Rodrigues inaugurou em 1955, no Rio de Janeiro, sua própria loja, a Oca. Propositadamente curto, o nome de origem tupi ecoava o desejo de um espaço de trabalho e convívio coletivo, além de associar a referência à cultura brasileira ao emprego de materiais nativos e à simplicidade do desenho moderno.
Concebida como representação no Rio da loja paulistana Forma e como espaço para venda de móveis originais desenhados por Rodrigues e outros arquitetos, a Oca foi inicialmente proposta como uma ocupação da areia da praia do Leblon, enfatizando a ideia de ambientação criada para o clima tropical. Uma vez que esse plano provou-se impossível, o empreendimento foi instalado em um espaço comercial na Praça General Osório, em Ipanema, combinando móveis trazidos de São Paulo, com as criações próprias de Rodrigues e outros arquitetos jovens, além de exposições e eventos de arte. A partir de 1956, com o crescimento das encomendas dos móveis originais, a Oca passou a ter sua própria fábrica – a Taba – e começou a ganhar mercados diversos. Em 1968, Rodrigues desligou-se da empresa que criara, a qual, como negócio, nunca chegou a ter um volume de produção realmente voltado ao consumo de massas. De todo modo, a Oca conquistou seu lugar na história do design e da cultura brasileira por ter combinado o pioneirismo do empreendimento com a excelência dos projetos de Rodrigues, além da capacidade de catalisar a loja como local de encontro da cena cultural carioca e assunto recorrente na imprensa.
Sergio Rodrigues, princípios e fins. E alguns meios.
"Duas ou três coisas que seu dele.
Trabalhei com Nelson Rodrigues, tio de Sérgio, mais de 10 anos, lado a lado, diariamente, na revista O Cruzeiro. Por isso conheço Sergio talvez mais do que ele pense. Através de Nelson tive contato com toda a família, no tempo em que esta morava numa bela casa em Laranjeiras, junto ao campo do Fluminense, e o Fluminense era um time da primeira divisão. O clã Rodrigues era metade homem, metade mulher, metade de cabelo negro, metade de cabelo vermelho – onde foram os cabelos ruivos, os ruços, de antigamente? Jornalistas, (Mário, Paulo, Augusto), jornalista, dramaturgo (Nelson), desenhista (Irene), atriz (Dulce), cineasta (Milton), quase todos intelectuais realizados. Conheci, de ver, o famoso e diatríbico jornal do avô de Sergio, Crítica, em que Roberto, seu pai – já excelente desenhista quando morreu, tragicamente, aos 24 anos - trabalhava. Vi toda a coleção do jornal. O que mais me ficou foi a paginação audaciosa e o destaque dado ao esporte – páginas inteiras –, atividade pouco importante, na época, mas já intensamente apreciada pelos Rodrigues. Não é à toa que o nome oficial do Maracanã é Mário (Rodrigues) Filho, irmão de Nelson, tio de Sergio. Quer dizer, Sergio Rodrigues não é um cístron (corrida ao dicionário!) solitário, surgido a esmo no limbo da criatividade. Pegou de um o talento visual, de outro a capacidade de formalizar, de um terceiro a tara da individualização – roubou toda a família. Deu no que deu. Me vejo, junto com Juarez Machado, recém- chegado de Santa Catarina (atualmente, voila!, é pintor parisiense), pintando as montras (vitrines) da elegante OCA, aqui na praça Gozório. Loja de Primeiro Mundo, da qual Sergio Rodrigues era proprietário. Ainda não estava em moda falar de transparência mas, através do vidro, víamos o Sergio, em meio aos móveis prafrentex (expressão da época) da loja, fazendo gestos de aprovação ao nosso trabalho, acompanhado de outros não aprováveis pelo gestual surdo-mudo. Sempre o vi assim, gozador, bem-humorado, rindo e brincando. Não sei a que horas consulta o psicanalista ou cai em prantos num desvão de escada. Nossa pintura in vitro resultou um bom trabalho, que Sergio afirma, até hoje, ter ficado melhor do que os vitrais de Chartres. Quem sou eu pra duvidar?
E aí nos separamos. Antes disso, Sergio foi pra Curitiba, difundir o mobiliário moderno na Móveis Artesanal, foi pra São Paulo dirigir a Forma, criou a cadeira Lucio Costa, a poltroninha Oscar Niemeyer, móveis para a Universidade de Brasília, sempre olhando os móveis como objetos de arte. Sem esquecer o fundamental – também de uso. Nos reencontramos em seu trabalho em cima do morro do Cantagalo (hoje se chama Brizolão). Fiz apenas o logo do bar On The Rocks (trocadilho genial do próprio Sergio; o bar era cavado nas rochas), e o restaurante no alto do morro, com enorme piscina a céu aberto, batizamos de Berro D'água, que tirei do Quincas, do Jorge Amado. E este veio e consagrou o local. Tempos. E estamos juntos outra vez no restaurante Papo de Anjo, do qual Sergio foi proprietário (arquitetos são chegados a criarem restaurantes; felizmente os restaurateurs não fazem arquitetura). Mas Sergio entende mesmo de comida – de comer e de fazer. O restaurante era ali no Horto, colado à Tevê Globo. Não sei quanto tempo durou. Dizem os rivais que Sergio atuava mais como consumidor do que fornecedor. Más línguas. Papos de víboras.
Fiz a apresentação desse Papo de Anjo, arquitetura especializada impecável. Não juro pela comida, mas transcrevo um pouco do que escrevi então, inspirado no conceito do próprio Brillat-Savarin Rodrigues: "Sempre lutando pelo mais degustável e mais digerível, no longo e saboroso esforço do ser humano por um prato mais belo numa mesa mais justa".
Foi 61, creio eu, a consagração internacional da Poltrona Mole.
Conhecendo o longo trabalho de criação e confecção da peça (cotação máxima de nossa arquitetura mobiliária), sempre me referia a ela, falando ou escrevendo, como A Poltrona Que Não Foi Mole. Nos livros internacionais de crítica especializada é chamada de Sheriff (não parece tradução de filme de televisão?).
Vou me lembrando de Sergio e suas circunstâncias, e escrevendo ao correr da pena (ao pulsar do chip). Mas não lembro tudo nem escrevo tudo. Que sei eu de arquitetura?
Bem, vai ver, tudo. Sei de morar, sei de dormir, sei de sentar.
De morar sei que devo estar sempre de frente para o mar, olhando para a montanha, e, no Rio, clima tropical, de cara pro nascente.
De dormir. Só durmo com os pés da cama voltados para a porta principal, de onde pode penetrar o Mal. Embora em minha vida só tenha penetrado o Bem, depois de premir de leve o tímpano do seio, que leva direto ao coração.
E de sentar, aprendi sentando em areia (de Ipanema), sentado em banco (de Liceu), e evitando sentar em cadeira de Bauhaus (Gropius mereceu terminar a vida com aquela chata da Alma Mahler).
Ainda de sentar. Eu tinha concluído que, como a bunda não vai se modificar no próximo milênio, os arquitetos de móveis tinham que criar a partir dela (ou delas, se considerarmos a duplicidade dessa singularidade anatômica). Foi aí que o talento estético de Sergio Rodrigues veio ao encontro do meu bom senso e exigência de conforto e, inesperadamente, empurrou embaixo de mim a já citada Poltrona Mole. Onde não me sentei. Deitei e rolei. Que artefato, meus amigos. Uns dizem que é slouchingly casual, outros que antecipou a Bossa Nova, Sergio Augusto afirma que é um móvel em que a pessoa se repoltreia, e Odilon Ribeiro Coutinho que "tem o dengo e a moleza libertina da senzala". Sei lá. Pra mim, essencialmente couro, foi natural curtição. Anatômica, convidativa, insinuante. Atração fatal. Sharon Stone. É prazer sem igual sentar-deitar numa, e ficar olhando em frente uma outra, da Bauhaus. Melhor, uma outra Mole.
Millôr Fernandes, Maria Cecília Loschiavo. Sergio Rodrigues, edição Soraia Cals, Rio de Janeiro: Icatu, 2000.
Artista, fotógrafo e cineasta, Cao Guimarães tem construído, desde o final dos anos 1980, uma obra que nasce do prosaico e de coisas consideradas sem importância ou sutilmente deslocadas de seu tempo. Muitas vezes, o trabalho do artista é disparado pelo acaso, surge em pleno estado de ócio ou de deambulação, prescindindo de roteiros, ao gosto do desenrolar de situações que encontra durante uma de suas inúmeras viagens. Cao justificou o seu trabalho solitário, e quase passivo, de captação de fragmentos do cotidiano: “arte não tem porquê nem pra quê. Arte não depende de mim. Sou quase como um cavalo de santo. A arte é como se fosse uma entidade qualquer que precisasse passar por mim para atingir o público, ela quer dialogar com o público [...] estou ali só pra receber...”.
O “método” adotado por Cao para realizar seus filmes e vídeos pode ser apelidado de “cinema-preguiça”, fórmula alternativa ao célebre cinema-verdade. A espera paciente da fatura das obras se desdobra na edição cuidadosa, que evita efeitos arbitrários ou distrações à contemplação dos planos longos com enquadramento atento a pequenos detalhes. Em suas séries fotográficas, o convite à observação desinteressada se dá pela reiteração de peculiares situações e imagens que o artista encontra como uma coleção dispersa pelo mundo à espera de ser remontada por uma sequência de encontros fortuitos.
Por meio desse olhar, coisas diversas como um limão convertido em cinzeiro, uma tábua de corte transformada em suporte do batente de uma janela e um tijolo transformado em suporte para vassouras são aproximadas como exemplos de uma vasta família de gambiarras. A série de fotografias, iniciada em 2001, se propõe a coletar um conjunto de soluções baratas e improvisadas pela sabedoria popular para suprir, mesmo que provisoriamente, as deficiências ou incompletudes dos objetos. Nas fotos em exibição, veem-se duas gambiarras praieiras, singelas contribuições para o debate sobre o mobiliário tropical.
CAO GUIMARÃES
Belo Horizonte, MG, 1965
Gambiarra #54, 2005
Fotografia ed 2/3 + 2PA
45 x 60 cm
Cortesia Galeria Nara Roesler
CAO GUIMARÃES
Gambiarra #110, 2001/2012
Fotografia ed 1/3 + 2PA
66 x 100 cm
Cortesia Galeria Nara Roesler
JOSÉ PANCETTI
Stela na praia, 1951
Óleo sobre tela
46 x 55 cm
Coleção Airton Queiroz, Fortaleza, CE