Fizemos três perguntas a Beatriz Goulart sobre os desafios atuais da educação integrada a comunidades e territórios. As perguntas abordaram questões relativas ao diálogo entre a escola e a comunidade, à formação dos professores, à gestão democrática da educação e às recentes manifestações dos secundaristas
Beatriz é consultora do Prêmio Território Educativos, realizado pelo Instituto Tomie Ohtake em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e patrocínio da Estácio Ensino Superior. O Prêmio tem como foco as experiências pedagógicas realizadas por professores da rede municipal de São Paulo que explorem as oportunidades educativas do território onde a escola está inserida, integrando os saberes escolares e comunitários.
Confira abaixo a conversa.
A educação integral é um projeto relativamente novo - principalmente se comparado aos paradigmas de educação seguidos há muito tempo - e a formação dos professores e educadores ainda é baseada em um pensamento conservador de educação. Como você enxerga a atuação dos professores e educadores diante desta lacuna existente entre a formação tradicional e os novos desafios da educação?
Beatriz Goulart: Tenho 54 anos de vida e há 50 frequento escolas, ora como aluna, ora como educadora, mas sempre como pesquisadora tentando entender esse lugar e seus processos e métodos. Nesse longo percurso, observando e estudando, me dei conta da força de reprodução que a escola tem - reprodução de seu modus operandi, de sua forma de organização tão inquestionada que acabou por se naturalizar. Isso acontece no Brasil e pelo mundo afora, com raríssimas exceções. Os professores também foram formados neste ambiente de vigilância e punição, de competição, de subserviência. Então, o que esperar deles? Qualquer mudança na escola depende de ouvirmos a todos e todas, ligados direta ou indiretamente a ela, sobre suas expectativas, a partir das críticas e desejos pessoais e coletivos. Ou seja, esta lacuna a que você se refere deve ser ocupada com diálogo reflexivo, algo que nunca houve na educação conservadora. Penso que no momento atual isso é bastante oportuno e, mais do que isso, é urgente, pois há uma disputa de concepção de educação onde alguns querem calar ainda mais a voz das escolas, começando pelos professores. Ou seja, o que enxergo é que os professores, assim como os estudantes, não têm sido considerados e enxergados. É hora, então, de abrirmos os ouvidos, os olhos e a boca para garantirmos uma escola democrática e integral.
No bojo da ideia da escola integrada ao território está um interesse pelos saberes, dinâmicas e processos existentes na comunidade. Você diria que esse interesse é recíproco? Como a comunidade enxerga a escola e a educação integral e integrada?
BG: Penso que o interesse é recíproco, mas para que esse relacionamento se efetive é necessário superar obstáculos historicamente construídos. A educação conservadora construiu um muro entre a escola e a comunidade. Esse muro colocou uma contra a outra num processo de faz-desfaz onde a vida desensina o que a escola ensina e vice-versa. Muitas escolas se orgulham de “tirar as crianças da rua” e de “proteger as crianças do mundo mau lá fora” esquecendo que essas crianças moram nesse mundo, brincam e habitam as ruas perigosas. Nessa perspectiva, tudo que vem de fora, da educação informal, não serve. Os livros didáticos e metodologias pedagógicas valem mais que a vida dos estudantes e dos professores. Esse é o senso comum, mas não o único. Outras vontades disputam outras concepções de educação e, entre elas, cresce a cada dia a discussão e a implantação da gestão democrática das escolas por todo o país. Nos conselhos escolares, responsáveis pela gestão democrática na escola, a comunidade está representada e passa, além de ser ouvida, a deliberar sobre as questões do funcionamento da escola e as que dizem respeito ao processo educativo propriamente dito. Esse processo tem permitido que se aprofunde a discussão sobre educação, educação integral e os saberes da comunidade. Para muitos, ainda, educação integral significa ficar o dia todo na escola, sentado na carteira e olhando para a lousa em silêncio. Para muitos, ainda, os saberes da comunidade não têm valor pedagógico. Isso está mudando a passos largos graças não só à gestão democrática da escola, mas também ao movimento recente de ocupação dos espaços públicos e dos debates públicos sobre o tipo de cidade que queremos e, a partir daí, qual é a escola desejada pelas comunidades.
De uns tempos pra cá, a cidade de São Paulo passou a viver um processo de retomada das ruas, praças e outros espaços públicos. Você acha que a reflexão sobre os territórios educativos tem relação com esse movimento de ocupação das cidades?
As manifestações dos secundaristas ocorridas no último ano evidenciaram reivindicações, vontades, propostas e atitudes dos alunos em relação às escolas e à educação que antes estavam latentes ou, pelo menos, não circulavam nos meios oficiais de informação. Você acredita que esses acontecimentos terão um impacto significativo sobre as reflexões e pesquisas acerca da educação integral e integrada? Como?
BG: O movimento de ocupação das ruas alimentou fortemente o movimento de ocupação das escolas pelos estudantes secundaristas, iniciado em São Paulo e hoje espalhado por todo o Brasil. Graças a eles, a discussão sobre a qualidade da educação e sobre os conteúdos e métodos a serem trabalhados nas escolas passa a ser preocupação – ou, melhor dizendo, ocupação – de toda a sociedade a partir do que os maiores implicados, os estudantes, estão propondo. Ou seja, um movimento muito mais autêntico na direção do que Paulo Freire propõe na pedagogia da esperança e da autonomia: uma escola integrada com a vida dos que a frequentam e da comunidade que a rodeia. Pense nos estudantes limpando suas escolas - inclusive os banheiros, até então alvo preferido dos vandalismos -, organizando a despensa da merenda, aprendendo a cozinhar, descobrindo os processos de funcionamento da maquinaria escolar, inclusive suas máfias. Os estudantes que ocuparam as suas escolas fizeram dela a sua morada e, nesse ato, se aproximaram da alma da escola que saiu muito fortalecida do movimento. Isto é educação integral e integrada, ampliando não só os tempos, mas também os espaços, os sujeitos e as oportunidades educativas.
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Beatriz Goulart é arquiteta e urbanista formada pela FAU-USP, pesquisadora do Grupo Ambiente-Educação da Faculdade de Arquitetura da UFRJ, fundadora e pesquisadora do Centro de Referências em Educação Integral, diretora do projeto Âncora, consultora do Ministério de Educação no Programa Mais Educação e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para os projetos de arquitetura de escolas de Educação Integral, consultora do SECADI do Ministério de Educação para o Programa Escolas Sustentáveis e desenvolve projetos participativos junto aos conselhos escolares de escolas públicas.