A fim de discutir e apresentar a mostra "Histórias Afro-Atlânticas", em cartaz no MASP e no Instituto Tomie Ohtake a partir do dia 30 de junho, o Núcleo Curadoria do Instituto Tomie Ohtake propôs algumas perguntas ao curador e pesquisador Hélio Menezes*. A entrevista é parte de uma série de conversas que pretendem aproximar o público de certos meandros que configuram uma exposição. Para compor essa série de entrevistas, convidamos um dos curadores da exposição "Histórias Afro-Atlânticas", desenvolvida após uma vasta pesquisa. Hélio Menezes apresenta suas discussões sobre a produção artística afro-brasileira, os principais temas propostos pela exposição, bem como questões acerca do sistema da arte, curadoria e história.
P - Gostaria que você explicasse um pouco a razão dos nomes: tanto da exposição (Histórias Afro-Atlânticas), quanto de seus diversos núcleos.
R: Comecemos pela exposição, cuja ideia de Histórias Afro-Atlânticas veio em torno de um entendimento de que as histórias das populações negras nas Américas não se resumem ou se reduzem à escravidão. Um livro que foi importante referencial teórico para a mostra, “Atlântico Negro” de Paul Gilroy, defende a ideia de que seria impossível compreender os processos políticos, sociais e culturais vividos por tais populações sem se entender a relação destas com a História da África e mesmo entre elas próprias em diferentes regiões do continente americano. Existiam intensas trocas entre estas, escravizadas e posteriormente livres. A partir deste entendimento surgiu o nome da exposição, que toma o Atlântico como palco de todo esse processo. Não se trata de fazer uma exposição a partir de uma geografia nacionalizada: a escravidão nos Estados Unidos, Cuba ou Brasil, mas sim de expandir esse palco para as relações transatlânticas entre esse universo, que é o que uma vertente mais contemporânea da historiografia vem explorando. O Atlântico é um sujeito importante que mescla tempos e histórias, mas tem um sujeito comum.
A exposição é resultado de uma parceria entre o MASP e o Instituto Tomie Ohtake: parceria nova, mas perfeitamente natural. O Instituto Tomie Ohtake foi palco da exposição "Histórias Mestiças" em 2014, com curadoria de Lilia Schwarcz e Adriano Pedrosa. Logo após a realização da mesma, Adriano se tornou curador chefe do MASP e Lilia foi por ele convidada para integrar a curadoria também. A atual exposição revisita "Histórias Mestiças", mas se a primeira possuía um enfoque geográfico bem delimitado (era a miscigenação no Brasil que estava em jogo), esta amplia o limite para as margens e bordas do Atlântico, não à toa virão também obras europeias, uma vez que o agente colonizador europeu era elemento fundamental nas relações atlânticas através do colonialismo. Veremos na exposição que existia toda uma circulação de códigos visuais, imagens, documentos e representações. A mostra se divide em uma série de núcleos. No MASP, estarão presentes: "Mapas e Margens", que explicita bastante o tom conceitual da exposição, uma vez que fica claro qual é a geografia que está em jogo. "Ritos e Ritmos", cujo enfoque é nas religiões negras das Américas, "Retratos", no qual o espectador terá diante de si uma Pinacoteca de retratos de negros: desde pessoas comuns até grandes personalidades. Obras de diferentes formatos, tradições e distintas motivações. Trata-se de uma crítica aos grandes museus e galerias do mundo, no qual estão representados apenas retratos de pessoas brancas, em geral em posição de poder, com os negros colocados às margens. "Rotas e transes: África, Jamaica e Bahia", de curadoria de Ayrson Heráclito, que busca compreender de outra maneira a produção artística oriunda das rotas diaspóricas afro-atlânticas, sobretudo depois da década de 1960 e "Modernismo Afro-Atlânticos" que apresenta trabalhos de artistas negros da metade do século XX, os quais se apropriaram das linguagens do modernismo ocidental.
P: Existe alguma especificidade desse Modernismo praticado por artistas negros?
R: Penso que a especificidade se dê mais por sua inserção no sistema da arte do que propriamente pela produção plástica. O fato de serem negros fez com que muitos desses nomes tivessem uma absorção dificultada pelas instituições.
P: E os núcleos apresentados no Instituto Tomie Ohtake?
R: Temos dois: "Emancipações" e "Ativismos e Resistências". O primeiro trata da ideia de liberdade frente ao sistema escravocrata. Não há como compreender o cotidiano violento da escravidão sem que se considere a utopia da liberdade, que sempre esteve no horizonte dos escravizados que aportaram forçadamente nas Américas e no Caribe. Os motins podiam começar na África, durante a operação de apresamento, e continuavam na viagem, com os cativos por vezes se rebelando no interior dos navios negreiros, bem como no cotidiano pesado da escravidão. Em todo o circuito afro-atlântico, desde o século XVI, ocorreram fugas, insurreições, envenenamentos de senhores, suicídios, assassinatos, abortos e a formação de quilombos. Essas experiências demonstram como as emancipações não estiveram restritas a atos oficiais, cartas de alforria ou gestos de caridade, mas foram conquistadas num longo processo de enfrentamento, protagonizado por escravizados e escravizadas, libertos e populações negras livres. Já "Ativismos e Resistências" busca apresentar o processo de circulação de estratégias visuais de protesto negro pelo Atlântico, invertendo imagens estereotipadas desses personagens.
P: Você apresentou recentemente uma dissertação de mestrado em que discutia a formação do conceito de arte afro-brasileira. Qual a relação de sua pesquisa com a presente exposição?
R: Vários pontos de minha pesquisa, tanto do mestrado quanto agora no doutorado, estão presentes, o que me é muito satisfatório, uma vez que raramente esse tipo de trabalho extrapola o muro da Academia, vai para o espaço expositivo e alcança um maior número de pessoas. Um dos caminhos que percorri em meu mestrado foi de analisar, junto a artistas negros contemporâneos como Dalton Paula, Rosana Paulino, Jaime Lauriano e vários outros, uma rediscussão que vem sendo feita por estes sob imagens produzidas em um certo passado colonial. Rediscussão essa bastante engajada e política, já que se trata de um passado que ainda não passou, pois se faz cotidianamente presente.
P: De que imagens você fala? Como vem sendo conduzida essa discussão?
R: Imagens de grande violência, produzidas por artistas e viajantes do passado, como Debret e Rugendas. Nelas podemos ver cenas extenuantes de trabalho forçado, castigos, torturas. Essas imagens estão presentes em livros didáticos e, embora mostrem particularidades de um certo momento da escravidão em uma dada região geográfica, acabam sendo mostradas como representativas de toda a escravidão. É preciso desmantelar essa ideia corrente nos livros de história e no senso comum. A rediscussão dessas imagens feitas por artistas contemporâneos está presente na minha pesquisa e na exposição. É possível perceber também que existe uma circularidade de convenções de representação de época sobre a escravidão que circula por todo o mundo atlântico.
P: Como você vê a relação deste mundo afro-atlântico, no qual se inclui o Brasil, com essas imagens produzidas pela escravidão?
R: É uma relação ambígua. São imagens que por um lado, como eu disse, carregam uma carga altíssima de violência, e, por outro, são extremamente naturalizadas. Elas não apenas estampam as páginas de livros didáticos, como também paredes de cafés burgueses, embalagens de produtos e mesmo estampas de roupas. Apesar de mostrarem o corpo negro em uma situação de violência extrema ou de hipersexualização, elas são apresentadas de forma muito romantizada. São naturalizadas de tal maneira que não nos damos conta de sua perversidade. É hora de se perguntar porque nosso olhar não consegue ver a perversidade dessas imagens. Tirá-las do cotidiano e colocá-las nas paredes do museu, ao lado de releituras contemporâneas de artistas negros, é um modo de politiza-las. Mostrar que essas imagens tão familiares na verdade são estranhamente familiares.
P: Você vê essa mesma romantização/naturalização acontecendo em outras regiões do mundo afro-atlântico?
R: Ela ocorre em toda a experiência da diáspora e, vou além, na própria Europa. Os museus europeus estão recheados de telas em que estão apresentadas recriações de fantasias coloniais, recriações de ideias pré-concebidas de corpos negros, sempre em hierarquia inferior, nos detalhes da tela, jamais em primeiro plano e representados até de maneira animalesca, sem sua humanidade reconhecida.
Um bom exemplo é a figura da Tia Anastácia, mulher negra, gorda, empregada doméstica com avental branco e pano branco amarrado na cabeça, que ama os patrões e especialmente os filhos dos patrões. É a imagem romantizada da empregada doméstica. A Tia Anastácia encontra uma correspondente na cultura dos Estados Unidos, que é a Aunt Jemima.
P: Como a historiografia da arte brasileira olhou e olha para essa produção afro-brasileira?
R: O olhar não apenas da historiografia, mas também das exposições, vem mudando bastante. Na primeira exposição de arte afro-brasileira, ocorrida em 1934 no Recife, com curadoria de Gilberto Freyre e Cícero Dias, estavam reunidas obras de artistas modernistas do Rio-São Paulo, ao lado de objetos oriundos de espaços de religião afro e de peças chamadas de arte popular. É curioso notar não apenas uma hierarquia clara, entre a alta cultura, a arte produzida pelos modernistas do Sudeste, e a cultura menor, chamada de arte popular e produzida por negros, como também que o conceito de arte afro-brasileira, aquele momento, não passava pela questão da autoria. Para ser considerada uma produção afro-brasileira, não deveria necessariamente produzida por artistas negros. Curioso que nos Estados Unidos, desde a década de 1920, é muito claro que arte afro-americana deveria ser necessariamente produzida por mãos negras. No Brasil, isso não é óbvio durante muito tempo.
É apenas na década de 1980, e mais especialmente em 1988, através da exposição "A Mão Afro-Brasileira", de curadoria de Emanoel Araújo, que essa passagem pela autoria vai se tornando mais óbvia. Na mostra em questão, importava menos o conteúdo da obra, mas sim o fato de seu realizador ser negro ou negra. No cenário contemporâneo, o que vemos acontecer é uma repercussão e uma multiplicação de exposições ao redor do tema afro, da autoria negra. Não apenas no Brasil, já que várias importantes instituições norte-americanas estão com esse tipo de temática. Os resultados são otimistas, embora a penetração desses artistas no mercado da arte ainda seja tímida. Existe também uma importante luta para que essas referências negras no campo da arte entrem de fato na História da Arte brasileira. Temos artistas negros desde o período colonial, mas grande parte desses nomes ainda estão ausentes dos livros e manuais de História da Arte. Essa inclusão será algo que nosso presente terá que lidar.
P: Como é ser um curador negro no Brasil? Como você vê essa presença do negro também na curadoria?
R: Se os artistas negros possuem espaço diminuto na História da Arte, a curadoria negra no Brasil é restrita a tão poucos casos, embora bem-sucedidos, que podem-se contar nos dedos. Vejo esse cenário com menos otimismo. As instituições brasileiras ainda são muito fechadas a um certo círculo de curadores que se revezam. Existe também uma tentativa de se enxergar na curadoria de pessoas negras uma certa especificidade, um aporte distinto, e precisamos entender que se tratam de pessoas com pesquisas próprias que muitas vezes não falam em nome de uma coletividade. No cenário internacional essa questão é bem mais avançada. A Bienal de Berlim, que ocorre agora, possui vários curadores negros, homens e mulheres, em sua equipe. O Brasil concede pouquíssimas oportunidades a curadores negros. Existe também uma questão de gênero, já que curadoras negras são ainda mais raras. Vejo com preocupação esse cenário.
Hélio Menezes é Mestre em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP) e Etno-História (USP). Em seu Mestrado, pesquisou a construção do conceito de arte afro-brasileira e agora, no Doutorado, investiga a produção artística afro-brasileira contemporânea. Nascido em Salvador, na Bahia, é curador independente e foi um dos curadores da exposição "Histórias Afro-Atlânticas".