Um compromisso com o

Um compromisso com o “sim”
Regina Parra

Mais de um milhão de imigrantes e refugiados entraram na Europa no ano passado. A marca de 1.006.000 foi contabilizada no dia 21 de dezembro pela International Organization for Migration (IOM). De acordo com a organização, neste mesmo ano mais de 3.695 imigrantes morreram enquanto tentavam cruzar para Itália via Mediterrâneo. 

No Brasil, a Polícia Federal contabilizou 1.847.274 imigrantes regulares. Número que tende a aumentar ainda mais nos próximos anos. Só entre 2010 e 2015, mais de 44 mil haitianos chegaram no Brasil – a grande maioria fugindo de um país devastado pelo terremoto.

O cenário é ainda mais assustador quando imagens chocantes de pessoas tentando cruzar fronteiras somam-se à violência das reações xenófobas e às condições desumanas que os recém-chegados enfrentam. A experiência dos refugiados adquiriu uma nova concepção nos últimos anos, tornando arcaicas e insuficientes as políticas adotadas até então.

Num momento em que milhares de pessoas são lançadas para fora de seus países, deportadas, deslocadas e emigradas à força, sem cidadania e sans papier, como pensar numa hospitalidade que ofereça guarida a todos os estrangeiros (apátridas, refugiados, deportados, exilados, nômades) independentemente de onde venham e de quem sejam?

O filósofo franco-argelino Jacques Derrida aponta para a necessidade de uma nova ordem mundial baseada em um pensamento absolutamente novo e singular que se articula para além das fronteiras nacionais. Segundo ele, apenas acomodar ou tolerar o estrangeiro no meu espaço não é suficiente: é preciso abrigar não apenas o estrangeiro como também as transformações que ele trará. A “hospitalidade absoluta” [l’hospitalité pure] ou “hospitalidade incondicional” [l’hospitalité inconditionnelle] defendida por ele, nada mais é do que a recepção plena de todo e qualquer recém-chegado. Acolhimento incondicional e infinito do outro, de todo outro, do outro todo. Uma hospitalidade comme il faut, que recebe o outro enquanto outro, sem nenhuma pré-condição ou regra: sem pedir documento de identidade, passaporte e nem mesmo o nome daquele que chega.
 

A hospitalidade absoluta exige que eu abra minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar, que eu o deixe vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que ofereço a ele, sem exigir reciprocidade, nem mesmo seu nome. (1)

É importante notar que a ideia de tolerância – tão usada em tempos de crise migratória – na verdade, nada tem de hospitalidade. A tolerância é uma relação desigual e hierárquica na qual o mais forte tolera o mais fraco: “Eu o recebo e dou-lhe as boas vindas sob a condição de que você se adapte e se adeque às nossas regras, nosso modo de vida, nossa cultura, nosso sistema político e nossa linguagem. Eu deixo você viver. Mas não se esqueça de que sou eu que mando aqui.” Suportar ou tolerar o outro é muito diferente de acolhê-lo. 

Sem regras ou condições prévias, a hospitalidade incondicional implica na invenção de uma nova regra e de uma nova linguagem de acolhimento, absolutamente singular e única a cada novo recém-chegado. Aquele que é acolhido modifica meu espaço, minha casa, minha língua, minha cultura, minha nação. Portanto, ao invés de apenas acomodar ou tolerar o outro no meu espaço, é preciso abrir espaço e dizer “sim” para todas essas mudanças.

Digamos sim ao que chega, antes de toda determinação, antes de toda emancipação, antes de toda identificação, quer se trate ou não de um estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante inesperado, quer o que chega seja ou não cidadão de um outro país, um ser humano, animal ou divino, vivo ou morto, masculino ou feminino. (2)  

Ora, se minha identidade é sempre constituída a partir da relação que tenho com o outro, a chegada do estrangeiro é, sem dúvida, um forte abalo na minha identidade. Não por acaso, o filósofo defende uma identidade que contamina e que é contaminada constantemente.

O contato chez soi pelo chez l’autre nunca acontece por mera assimilação, mas por meio de um embate que transforma hóspede e hospedeiro. Aquele que acolhe, o acolhedor, também é acolhido pela visitação do estrangeiro. No momento em que recebemos o recém-chegado, estamos imediatamente sendo recebidos, tornamo-nos hóspedes em nossa própria terra. 

Derrida é enfático: dizer “sim” ao estrangeiro é dizer “sim” a esse contato mútuo, é “dar ao outro a permissão de fazer a revolução em nossa casa”. E aqui ele nos lembra que o termo “sim” em francês é pronunciado como um sopro de ar. “Oui” pode ser dito quase sem som nenhum, apenas como uma injeção de ar dentro da boca e do corpo, sem voz. Como uma afirmação que é estabelecida mesmo quando não pronunciada. O “sim” provoca, segundo o filósofo, um direcionamento de abertura ao outro, como um engajamento secreto ou uma promessa de aliança possível: “escute, responda, existe um outro”.

É claro que estar aberto ao outro significa estar aberto também aos perigos que ele nos traz. O hóspede pode trazer junto com ele tanto a amizade como a violência. O porvir imprevisível é tanto promessa como ameaça. Mas até que ponto uma hospitalidade sem risco, protegida por um sistema que nos blinda do contato com o estrangeiro, seria uma hospitalidade verdadeira?

É claro que esse incondicionalmente é algo assustador, é amedrontador. Se nós decidirmos que todos poderão entrar no meu espaço, minha casa, meu lar, minha cidade, meu Estado, minha língua, e se pensarmos como estou pensando, ou seja, que essa entrada incondicional também dá ao outro a possibilidade de tirar minhas coisas do lugar, modificar e até destruir meu espaço, então, o pior pode acontecer e eu estou aberto a isso: ao melhor e ao pior. (3)

Por não ser mera assimilação ou aculturação, a hospitalidade deve ser uma experiência inventada e negociada a todo instante, assumindo-se os riscos aí envolvidos. 

É claro que, muitas vezes, essa hospitalidade incondicional parece impossível na prática. Como abrir a casa a quem quer que chegue? Como manter essa abertura ao imprevisível e incontrolável? Não será essa uma proposta utópica que jamais se realizará? Como imaginar essa hospitalidade no dia-a-dia? Como praticá-la? Quando defende a hospitalidade absoluta, Derrida está ciente de que se trata de uma impossibilidade, mas isso não quer dizer que ela seja irrealizável ou utópica. O filósofo faz uma clara distinção entre o que chama de “porvir impossível” e “utopia”:

O “impossível” de que muitas vezes falo não é utópico, ao contrário, dá movimento mesmo ao desejo, à ação e à decisão, sendo a figura mesma do real. Ele tem sua solidez, proximidade, urgência. (4)  

O que Derrida discute, portanto, é a possibilidade de levar o conceito de hospitalidade ao limite máximo, levá-lo à impossibilidade – não para torná-lo impraticável, mas para alargar ao máximo as aplicações desse conceito. Nesse sentido, a noção hiperbólica de hospitalidade não é de forma alguma uma renúncia à ação. Mas, sim, uma vontade urgente de tornar possível o impossível. O recém-chegado traz o acontecimento e, nessa chegada, pode trazer tanto a revolução como a catástrofe. Ainda assim, é preciso assumir um compromisso com a própria existência, um compromisso com os riscos do “sim”.

Referências Bibliográficas
BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
DERRIDA, Jacques. Da hospitalidade: Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar. São Paulo: Editora Escuta, 2003.

Notas
(1) DERRIDA, Da Hospitalidade, 2003, p.23
(2) DERRIDA, op. cit., 2003, p.69
(3)DERRIDA apud BENNINGTON, A Discussion with Jacques Derrida, 1996, p.300.
(4) DERRIDA, op. cit., 1996, p.325.