A dimensão Cósmica na Arte de  Tomie Ohtake


O homem cietífico é a continuação do homem artístico.* F Nietzsche


Usufruir uma obra de Tomie Ohtake propicia uma dupla experiência – incita a reflexão, num movimento primordial de subjetivação; e estimula os sentidos, em direção às coisas externas do universo.

A produção desta artista vem deixando inúmeras pistas para o olhar e a análise do significado da sua obra. Uma das possibilidades de leitura é oferecida pela presença de uma dimensão cósmica nas suas pinturas, que vem se manifestando desde o início da sua trajetória, mas que exacerba naquelas realizadas a partir dos anos 90.

Mais interessante ainda é que estas obras antecipam, pela intuição artística, imagens do espaço cósmico obtidas por instrumentos de observação de alta tecnologia, como por exemplo, o telescópio Hubble. A poética de recriação do cosmo pela artista, que para a sua elaboração prescinde da intencionalidade, e a crescente utilização de recursos tecnológicos para fotografar ou ilustrar pontos do universo formam um instigante material para aprofundar questões referentes à sincronidade entre arte e ciência e à relação da arte com a filosofia, supondo essas três áreas enquanto fenômenos interligados de produção de conhecimento.

A analogia entre as imagens artísticas e as realizações técnico-científicas remete a algumas das preocupações românticas, como aquelas que supõem o artista como o ser sensível antenado no seu tempo e nos fenômenos adjacentes e, também, como indivíduo portador da capacidade de antecipação do futuro. Entretanto, no caso desta analogia, centrada na obra de Tomie Ohtake, tais formulações românticas não serão consideradas, uma vez que interessa entender questões deste tipo, a partir da análise da obra e das situações de sua criação.

Esta tendência de realização de uma pintura representando espaços, formas e cores que remetem a um mundo cósmico encontra fundamento numa geometria curva, original arcabouço da linguagem e da expressão artística de Tomie Ohtake, que pode ser melhor explicitada através de duas abordagens distintas, mas vinculadas entre si: a primeira permite compreender esta geometria a partir da análise interna à obra; e a outra considera as condições vivenciadas pela artista e que, direta ou indiretamente, afetam o seu fazer artístico.


GEOMETRIA CURVA: ORIGEM NA OBRA

Na história da arte brasileira, Tomie Ohtake destaca-se por conseguir realizar uma específica síntese entre geometria e informalismo. Uma análise atenta dos diferentes momentos da sua trajetória permite observar como ela mobiliza suas forças para aproximar raciocínio construtivo e sensibilidade gestual, obtendo, assim, uma singularidade estilística fundamentada em referências opostas, como retilíneo-curvilíneo, inorgânico-orgânico, harmonia-deslocamento e simetria- assimetria. Desta forma, questões ou soluções visuais são inventadas sob condições que geram sutis tensões nas suas obras.

Tais tensões organizando amplos espaços pictóricos e conduzindo a criação de formas estão na base de um tipo de geometria que deverá favorecer a presença de uma dimensão cósmica na obra de Tomie, enquanto expressão de um olhar para as coisas exteriores. Por estar enfocando a natureza, torna-se possível aventar uma comparação entre esta maneira artística de apreender a realidade com a perspectiva técnico-científica, também voltada às coisas da natureza.

A obra de Tomie Ohtake deixa entrever ligações com as formas naturais e, embora não se trate de uma pintura de representação imediata, ela situa-se no entrecruzamento de uma dupla e paradoxal relação entre arte e natureza: por um lado, afasta-se da natureza, não buscando representá-la imediatamente e reconhecendo as regras próprias da arte; por outro, aproxima-se dela ao tomar como referência unidades e padrões naturais que são transformados em signos plásticos estruturadores do espaço pictórico.

As conexões entre as pinturas de Tomie e as imagens cósmicas devem ser, de imediato, buscadas numa análise interna da obra, uma vez que os trabalhos articulam-se em torno de formas orgânicas elementares que lembram (ou sintetizam) seres ou paisagens da natureza – e que podem ter equivalentes no macrocosmo, também este, parte do mundo natural.

Seja no micro ou no macrocosmo, encontram-se linhas e formas curvas, elipses ou círculos, constituindo padrões perceptíveis na concha de um molusco, no contorno de uma folha ou montanha e na configuração de astros, galáxias ou buracos negros. Quando a arte expressa o mundo real, pode-se falar da capacidade de a linguagem apanhar lógicas ou leis que atravessam as diferentes instâncias do cosmo.

No espaço pictórico criado por Tomie Ohtake, a curvatura não é nula (como se fosse a tradução visual do espaço riemanniano), já que os elementos, formas ou estruturas pictóricos são construídos tendo por base que o menor espaço entre dois pontos é um segmento de elipse. Tomie trabalha com o impulso geométrico, porém, não aquele geometrismo baseado na linha reta.

Ao recuperar a herança do controle construtivo e, simultaneamente, valorizar o gesto livre, Tomie pressiona a linha reta, quebrando sua rigidez e estabelecendo como sua unidade sígnica plástica a linha curva. Como desdobramento, surgem arcos, círculos, esferas, elipses ou espirais que passam a ordenar o espaço artístico. Nas suas esculturas recentes, os volumes foram reduzidos, enfatizando a ação artística ao modelar longos tubos através de torções curvas que criam movimentos espaciais e amplos vazios delimitados por fronteiras de linhas ou faixas. Assim, tanto na pintura, escultura como na gravura, Tomie discute e amplia as possibilidades de expressão da superfície, plano, forma e dimensionalidade, criando espaços para o mergulho do olhar, mas de modo que ele fique livre para se elevar e lançar-se num sobrevôo, facilitando a contemplação atenta e lenta da obra, apanhando-a simultaneamente na sua área total e nos seus detalhes e pequenas ocorrências. Trata-se, portanto, de uma relação espacialidade – escala que se manifesta como imensidão, onde a amplitude sempre deixa entrever focos específicos para atrair o olhar.

Nesta imensidão a artista também cria planos que traduzem a idéia de vazio expresso tanto pela sensação de ausências – possibilitada pelo recurso do plano chapado e monocromático, que engendra um nada significativo e silencioso ao se considerar na sua auto-referência – quanto pela impressão de presenças – decorrente do tratamento da superfície e das cores distribuídas em faixas ou áreas que dialogam umas com as outras. Em Tomie, o vazio não é representado e valorizado, por si só, enquanto expressão angustiante que traduz uma impossível conquista, mas sim como convivência de opostos, ordenando assim um dinâmico espaço pictórico.

A cor, enquanto recurso de ocupação da tela, configura-se como um potente elemento na linguagem da artista, que faz sua seleção num estreito espectro. Esta parcimônia no uso das cores (idêntico critério verifica-se na criação das formas) não impede o impacto e a força vibrante do amarelo, vermelho e azul. A cor dá definições a áreas, traça limites, atenua angulações e suaviza ou intensifica relações de luz e movimento.

Tomie faz a luz brotar e difundir-se em cada obra, de forma a se constituir em mais um elemento básico, assim como a cor, na sua linguagem plástica. No seu espaço luminescente, a artista investiga a questão da sombra, própria das artes visuais, permitindo repor constantemente a dialética claro/escuro como elementos binários, que reproduzem nas composições o quente/frio, o denso/rarefeito, a simetria/dissimetria, o equilíbrio/desequilíbrio e, no limite, a ordem e o caos.

O movimento, na sua representação, também é um elemento explicativo desta geometria curva. Na obra de Tomie, o gesto é congelado no flagrante do seu percurso; compondo uma seqüência temporal que pode ser verificada tanto pelo movimento interno que uma curva ou forma tende a realizar pressionada internamente, quanto pelos vestígios de que tal esforço concretizou-se. O entendimento de que tudo se transforma pode ser apreendido na comparação de diferentes obras, em que as mesmas formas básicas são retomadas, porém alteradas pela passagem do tempo 2. O ordenamento do espaço pictórico, controlando e expressando movimentações no seu interior, permite reafirmar a presença daquele aspecto temporal na produção artística de Tomie. O tempo pode ser aí percebido em duas dimensões: uma referente ao tempo da ocorrência do fenômeno plástico, portanto impresso na tela, já que a geometria curva contém formas, planos e áreas de cores em transformação e que são flagrados pela artista no movimento de expansão; e outra originada do contato da retina com a superfície da tela, como parte do campo estético da usufruição do observador. Convivem, portanto, o tempo fugaz expresso na obra pela artista e o tempo particular nascido do contato externo com a obra. O tempo encontra-se retido no campo visual da composição e, simultaneamente, transcorre no olhar do usufruidor, que o vivencia na sua natureza de tempo reflexivo, acompanhando a duração da contemplação, fixando-se na memória.

É por isso que, na monumentalidade silenciosa do universo criado por Tomie, o movimento, representado em uma única obra ou perceptível na seqüência das visualidades de quadros, subentende o transcorrer do tempo. Assim, Tomie vai “atingindo realidade total, vai subtraindo, subtraindo para alcançar a magia do Absoluto, em paradas caleidoscópicas”, como percebeu Pietro Maria Bardi (1983).


Fases da representação cósmica

Três fases são fundamentais para se pensar a geometria curva e a dimensão cósmica na obra de Tomie Ohtake: a primeira refere-se aos espaços criados nas pinturas feitas no início dos anos 60; a segunda é dada pelas pinturas produzidas entre o final da década de 70 até meados de 80 (70/80); e a terceira, na qual a sensibilidade cósmica se aguça, concretiza-se plenamente nos anos 90 e até recentemente.

A medida que avança nestas etapas, as pinturas de Tomie referem-se cada vez mais à formação, ao ato de fazer do que à forma, sendo que esta tende a diluir- se na organicidade espacial, anulando a relação figura-fundo. A pintura torna-se um exercício explícito, portadora das certezas e dúvidas da artista.

Nos trabalhos de 1961 e 1962, pode-se perceber, após o olhar apreender as qualidades da pintura, como Tomie também oferece temas que remetem a plantas incomensuráveis do universo. Neste período, a artista constrói um imenso plano geral, como se buscasse recortar uma ampla visão celeste, posicionando-se o mais longínquo possível do seu campo de observação. Trata- se de imensos espaços construídos em cores preta, cinza e branca, contendo manchas, espirais e redemoinhos, que lembram desde mapas meteorológicos até formas de nebulosas, da via láctea, dos buracos negros e outros fenômenos visuais do cosmo. Estas telas criam a impressão de inúmeros movimentos espiralados, em vários sentidos e em vários pontos da tela, oferecendo ao olhar apanhar grandes movimentos de expansão/contração e fluxo/refluxo. Tecnicamente, o uso da espátula e a sobriedade das poucas cores imprimem dramaticidade à obra e, com a pintura de grossas transparências para compor nuvens circulares, vislumbram-se espaços vazios ou misteriosas áreas negras.

Já nas pinturas realizadas entre o final de 70 e na década de 80, ao contrário do longínquo distanciamento, pode-se observar que o enquadramento trata das formas aproximando-se delas, colocando-as num primeiro plano. O que antes era etéreo e amplo, agora corporifica-se e materializa-se em imagens que remetem a astros, galáxias ou a outros acontecimentos do cosmo. Primeiramente, ao se considerar as décadas de 70 e 80, descobre-se que a artista realiza uma série de trabalhos em que adota uma perspectiva situada no campo orbital, o que gera o estranhamento da simultaneidade do distante e do próximo. Também para o observador destas pinturas, tem a sua visão transportada para um ponto qualquer de um campo orbital, permitindo fixar um olhar de sobrevôo, ao apreciar obras estruturadas por _ do círculo, que ganha monumentalidade e dimensão estrelar.

A seguir, a perspectiva fragmenta-se, permitindo que a artista componha um espaço acessível a uma multiplicidade de visões ou abordagens – processo estruturante muito próximo do cubismo –, gerando obras com faixas que atravessam diagonalmente o quadro, sendo que, em torno delas, podem se agrupar inúmeras linhas ou longas e estreitas áreas, que vibram em paralelo. Em outras obras, estas faixas envolvem estranhamente formas ovóides.

Todo este conjunto de trabalhos contém, paradoxalmente, um absoluto silêncio, como no caso de arcos de círculo criados por 1/4 de plano da esfera, ou um lento e grandioso movimento, quando faixas, reentrâncias ou linhas expandemse e não conseguem se acomodar sob nenhuma perspectiva. Por um lado, observa-se o estático e próximo detalhe do corpo cósmico, dado pelo último limite para que o observador apreenda, pela parte, o todo inapreensível pelo olhar. Por outro, constata-se o esforço de assumir a mecânica ou a dinâmica cósmica, tentando acomodar, nos limites de um retângulo, um mundo em eterna
transformação, apanhado na sua constante expansão ou refluxo.

Nesta segunda fase, Tomie retoma aspectos pictóricos com os quais já trabalhara nos anos 60: as transparências, a vibração da pintura e um movimento que atravessa todo o quadro, em várias direções. A artista utiliza-se de “várias camadas de cor superpostas e uma estrutura que prende e ao mesmo tempo liberta o olhar sob a pintura. Alguns elementos formais muito simples, círculos, elipses, flutuam no espaço cromático onde ela quebra a idéia de fundo e figura. Todos os elementos pulsam sem que nenhuma forma ganhe a predominância do primeiro plano” (Mendonça, 1991).

Nas obras de 70/80, esta idéia de geometria curva será melhor perceptível quando Tomie avança na utilização sintética dos recursos visuais, renovando os seus signos plásticos, incorporando amplos planos de cores e criando formas bem definidas que passam a ser retrabalhadas em inúmeras variações. Estas pinturas contêm agora formas estruturadoras do espaço imersas em cor e luz. Esta fase desenvolve-se em várias direções, podendo-se aqui apontar quatro delas:

• pinturas em que ainda predominam as linhas retas e formas angulosas, porém atenuadas pela presença da curva. Trata-se de planos retangulares que convivem com o amplo espaço da tela, dificultando a impressão da existência de um fundo;

• pinturas estruturadas por linhas curvas e formas arredondadas, suavemente construídas, monocromáticas e receptoras de luzes que perpassam toda a tela. Estes trabalhos, em que Tomie combina delicados contrastes de cores, caracterizam-se também pela presença de formas ou imagens que estão fixadas ou numa linha do horizonte, ou na linha inferior da tela, insinuando a tridimensionalidade;

• pinturas com características semelhantes às do grupo anterior, mas diferenciando-se por conterem formas e imagens sem suporte ou base de fixação, ganhando o espaço para flutuarem ou mergulharem num amplo plano de cores. Este tratamento visual desdobrar-se-á nas pinturas dos anos 90;

• pinturas que apresentam a simultaneidade de múltiplas perspectivas distorcendo formas e planos articulados por linhas. Nestes trabalhos, faixas curvas pressionam o quadro em diagonal, criando sensações de estranhamento, uma vez que convivem planos chapados, imagens tridimensionais fragmentadas em curvas paralelas e linhas de forte efeito gráfico. A questão básica, neste conjunto, é a da angulação, que será retomada futuramente, quando Tomie assume uma perspectiva orbital para tratar dos semicírculos ou esferas.

Quanto às pinturas dos anos 90, também naquelas produzidas até hoje, forma e fundo se interpenetram, compondo uma unidade visual sem hierarquia. A experiência com a tinta acrílica e a água radicaliza uma proposta visual de cores intensas, com gestos largos e difusos, que dramatizam a pintura, enfumaçando as eventuais formas que teimam em emergir. Estes trabalhos possuem uma outra característica: a artista deseja o desequilíbrio e a tensão pictórica, bem como procura incorporar o inesperado do acaso, nascido da movimentação da água colorida na tela.

Nesta terceira fase, verifica-se a presença constante de formas – como círculos (inteiros, segmentados ou concêntricos), espirais e elipses – construídas através de uma técnica que sobrepõe várias camadas de cores dissolvidas na água, o uso de grossas pinceladas multidirecionadas e, também, a utilização de ocorrências deixadas pelo acaso. Num certo sentido, pode-se dizer que a presença do círculo ou da esfera possibilita o ordenamento no caos das cores e no controle da matéria que aspira tornar-se forma. O ordenamento do espaço aproxima-se daquele que é dado pela multiplicidade cubista, permitindo inúmeros e simultâneos enfoques e um distanciamento que imprime à obra uma dimensão cósmica espetacular.

A forma não é necessariamente delimitada, ao contrário, a partir dos anos 90, geralmente ela apenas se insinua, dificultando a diferenciação entre forma/fundo e primeiro plano/plano geral. A luz, que continua sendo um elemento fundamental em Tomie, contribui para dar o caráter monumental do efeito obtido, distorcendo a perspectiva e orientando diversos movimentos do olhar, bem como interfere para clarear/escurecer áreas, ordenar/desordenar parte ou o todo do quadro e delimitar/desmanchar linhas, áreas de cores ou incipientes formas.

As linhas curvas ou concêntricas, que se expandem ou às vezes sobrepõem-se e até circundam formas, lembram ondas cósmicas ou irradiações que se propagam no espaço, remetendo também a pulsares de quasar, ondas eletromagnéticas ou eletrotérmicas e emissões de raios gama da via láctea.

Outras pinturas de Tomie lembram as imagens – obtidas através de instrumentos tecnológicos – da visão geral de galáxias espiraladas ou elípticas e, muitas vezes, a artista também cria formas semelhantes a bojo e braços, disco ou halo destes sistemas estelares. Um outro conjunto menor de pinturas é composto por obras nas quais o orgânico apresenta-se exacerbado, colocando uma discussão próxima ao realismo (fantástico), insinuando configurações de estranhos seres vegetais ou animais: criaturas de qual mundo?

A água é um elemento fundamental nestas obras de Tomie. A partir de 1983, ela passa a utilizar a tinta acrílica cuja base de dissolução é a água. E as características deste líquido, que segundo Tomie Ohtake “é mais forte do que o fogo e a pedra”, são relevantes para imprimir o caráter cósmico nas suas obras. Desde o tratamento da camada do fundo até as diversas sobreposições de camadas de tintas/cores, a água está presente e distribuída sobre toda a tela. Nesta fase, há um relativo descontrole das ocorrências na superfície da tela, uma vez que a água tem força suficiente para seguir direção de sentido próprio e, assim, definir áreas ou formas. A água carrega a cor e esparrama-se, deixando formas e volumes semelhantes a nuvens em expansão, nebulosas cósmicas ou compondo séries de pequenas unidades que impedem a diferenciação entre fundo e forma. Criam-se espacialidades coloridas que explodem em surpreendentes e múltiplas ocorrências. Após demoradas observações, a artista passa a intervir na pintura, controlando o seu fazer, com o uso do pincel, sem deixar de avaliar e utilizar o acaso, aquilo que a sorte lhe oferece.


GEOMETRIA CURVA: ORIGEM NA VIDA

A geometria curva e, principalmente, a presença de uma dimensão cósmica na pintura de Tomie Ohtake têm também seus fundamentos nas experiências da pessoa. De imediato, deve-se reconhecer que Tomie mantém forte vínculo com a natureza, de tal forma que esta parece ganhar representação significa em boa parte dos seus trabalhos. Devido a esta aproximação/atração, pode-se pensar que a artista realiza um esforço para decifrar códigos do mundo natural, reinterpretando-o em imagens pictóricas. Coloca-se como possibilidade considerar que os seus trabalhos têm o mundo circundante como referência,
visualmente presente em resultados sintéticos ou arquetípicos. Da natureza ou do seu ambiente, Tomie retira informações e pretextos para soluções formais ordenadoras do seu campo plástico e elementos necessários para compor o seu imaginário artístico. Embora de difícil identificação imediata, grande parte de suas obras, reafirmando uma figuração construtivista, tem inspirações nas coisas (pedras, artefatos e utensílios diversos), nos seres vivos (conchas, corpo humano) e na paisagem (ocorrências geográficas, vôo de um pássaro, corpos celestes – sol e a lua).

Esta postura frente à natureza e ao cotidiano parece inspirar a artista a tematizar nas obras tanto o micro quanto o macrocosmos, resguardando sempre a manutenção da ambivalência e da autonomia da arte. De uma perspectiva estética, está em discussão a garantia das sinalizações que a artista imprime à obra, bem como da liberdade do usufruidor – decifrador deste universo pictórico sinalizado e agente que completa o significado do trabalho artístico produzido.

Por vários motivos, compartilhar da filosofia Zen, reatualizando valores culturais orientais, amplia as condições de expressividade da artista, capacitando-a a ir do extremamente pequeno ao incomensurável, procurando regradamente a síntese pictórica que “fale do mundo em 17 sílabas”, como escreveu a artista em Catálogo de 1975. Da sensibilidade pelo cotidiano, da necessidade da concentração e da consideração do nada absoluto – vinculados ao zen –, Tomie obtém suas referências para o seu fazer artístico.

Ao se considerar tal vinculação com o mundo circundante e a assimilação de certos valores zen, a pintura torna-se, assim, um suporte de discussão da existência, permitindo reforçar os vínculos que podem estar presentes na relação entre pintura e filosofia. A posição de independência de Tomie em relação às correntes artísticas e o peso da personalidade 3 valorizam e repõem o significado da individualidade, ao mesmo tempo em que ampliam as condições de liberdade para o desenvolvimento de uma linguagem artística autônoma.

Miguel Chaia