Por Luciara Ribeiro
Aos 87 anos, Yoko Ono acumula uma carreira singular, com reconhecimento internacional, permeada por trabalhos múltiplos, provocativos, e, sobretudo, politizados. A energia e vivacidade dela são admiráveis, assim como sua luta e crença por um futuro melhor. Há muito tempo, ela é reconhecida pelo seu ativismo, por exemplo, em 2015, foi ganhadora do Lifetime Achievement Award (Prêmio trajetória de vida), premiação entregue no Observer Ethical Awards (Prêmio Observador Ético), um evento anual que homenageia indivíduos e organizações por suas atuações éticas comprometidas.Yoko foi, na ocasião, laureada pelo meio século de ativismo. Em 2010, foi aclamada com o título de First global autism ambassador (Primeira embaixadora global pelo autismo) pela Autism Speaks (Autismo fala), uma organização em defesa da pessoa com autismo.
Yoko Ono utiliza a arte como meio de divulgação, sensibilização e conscientização de lutas, empenhando-se diretamente em causas pacifistas, em prol do meio ambiente, da liberdade sexual e de gênero, da igualdade racial, do controle de armas, do feminismo, entre outras. Ela nunca restringiu seu ativismo a apenas uma causa, ao contrário, entendeu a necessidade de unir-se a diversas lutas a favor de um bem comum a todos, considerando ser possível, mesmo através de gestos simples, contribuir para a mudança do mundo.
O sonho de viver em um mundo sem injustiças tem sido um foco para ela, que inclusive já afirmou que prevê a possibilidade de a humanidade alcançar o paraíso terrestre por volta do ano de 2050 [1]. Mas, claro, se a sociedade o quiser, pois isso dependerá de nossas ações. O que pode soar ingênuo para alguns, só reforça a vivacidade e crença de Yoko Ono, que nunca deixou de sonhar com a vida. Datar tal fato para 2050, um futuro que provavelmente ela não alcançará, demonstra que seu desejo não parte da individualidade, mas da coletividade.
Convicta de suas ideologias e posicionamentos, Yoko Ono demonstra a importância do comprometimento do artista com a vida, a política, os movimentos sociais e com a realidade do seu tempo. Para Yoko, arte e vida andam lado a lado, o que demonstra o seu esforço em manter uma postura coerente nesses dois âmbitos durante toda a sua trajetória. Ciente de que não é fácil ser artista, ela diz que quem toma essa decisão deve ter consciência da responsabilidade que está assumindo [2].
Por ser mulher e asiática, mesmo que oriunda de uma família abastada (seu avô foi fundador do Banco Yasuda), Yoko Ono superou barreiras em alguns momentos de sua vida. Um deles foi em 1952, quando ela se tornou a primeira mulher a ser admitida no curso de filosofia na Universidade Gakushuin, no Japão, desafiando assim, os lugares e papéis que eram impostos naquele momento às mulheres na sociedade japonesa. Outro ponto foi ter enfrentado preconceitos e racismos por ser de origem japonesa vivendo nos Estados Unidos em uma sociedade do pós-guerra. Ela afirma ter lidado com isso em diversos momentos de sua vida, mas que preferiu sempre não se abater [3]. Sua competência provou quem ela é, e hoje, Yoko Ono, além de ser destaque nas artes ocidentais, reformulou o modo de se fazer arte contemporânea e é uma das celebridades mais conhecidas e respeitadas dos Estados Unidos da América.
Yoko Ono foi integrante do Fluxus, coletivo atuante nos anos de 1960 que integrou artistas empenhados em debater novas possibilidades para as artes.
Através de experimentações, uso de materiais não convencionais e integração com o público, o Fluxus questionava os conceitos destinados às artes e o papel desta na sociedade. Com suas obras, Yoko Ono contribui para o desenvolvimento da performance e das artes conceituais, dois elementos fundamentais para as artes contemporâneas atuais.
A sensibilidade e o cuidado com que ela opta por não impor seu pensamento são admiráveis. Seus trabalhos são convites à reflexão conjunta, fazendo com que todos se sintam parte. Opta por não construir obras únicas, mas em refazê-las cada vez que forem exibidas, renovando-as no tempo e espaço que as acolheram. Em outros casos, torna suas obras pedaços que devem ser levados pelo público, confirmando o desejo pela coletividade.
Sempre ativa na internet, mesmo em meio à atual situação do COVID-19, Yoko Ono publica diariamente, em suas redes sociais, frases de ânimo e esperança, como mensagens que convidam a olhar para o céu, a sorrir, a agradecer por respirar e a contribuir com causas que acolhem e ajudam as pessoas afetadas pela pandemia. Além de solicitar a ajuda, ela colabora com diversas ONGs e já destinou verba para programas que apoiam os profissionais da saúde [4].
Em 2011, ela fez uma doação financeira para o governo japonês após o tsunami que devastou o país. Em 2009, também preocupada com o financiamento para as artes, ela criou o Yoko Ono Lennon Courage Award for the Arts (Prêmio Yoko Ono Lennon de Coragem para as Artes), que oferece o valor de US$ 25.000 a artistas, músicos, colecionadores, curadores e escritores que ela considera relevantes e que estejam comprometidos com a sociedade.
Desde os anos 1960, Yoko Ono acompanhou e participou de uma série de movimentos ativistas, políticos e sociais. Um de seus atos mais conhecidos foi o Bed-in for peace (Na cama pela paz), realizado em 1969, quando, em meio à Guerra do Vietnã, ela e o então esposo, John Lennon, dividiram a lua de mel com o mundo em um ato pela paz. Durante uma semana, eles receberam a imprensa em um quarto de hotel com diversos cartazes ao redor que anunciavam: “War is over! if you want it” (A guerra acabou! Se você quiser). Anunciando a responsabilidade mundial em frear as guerras.
Em 1972, também juntamente com Lennon, ela lançou a música Angela, uma homenagem em apoio a Angela Davis, ativista e intelectual que lutou pelos direitos civis da população afro-estadunidense, e que naquele momento encontrava-se na prisão. Nos primeiros refrões de música Angela, eles dizem: “Irmã, há um vento que nunca morre. Irmã, estamos respirando juntos. (...) Irmã, há um milhão de raças diferentes, mas todos compartilhamos o mesmo futuro no mundo”. Respirar juntos em um mundo sem injustiças é uma das lutas de Yoko Ono. Oferecer o ato de respirar como luta foi uma forma poética e amorosa de enviar forças para Davis. Some Time in New York City é o nome do álbum que lançou tal música. Na capa, a imitação de uma folha de jornal, que em meio a manchetes sobre união, liberdade, pacifismo, uma foto de Angela Davis se destaca. Apesar da proposta antirracista de Yoko e Lennon, o disco recebeu críticas ao título de uma das músicas: “The woman is the nigger of the word” (A mulher é o negro do mundo). Com essa frase, a dupla pecou por diversos motivos. Um deles foi o uso da palavra “nigger”, termo racista e que violenta oralmente e psicologicamente a população afro-estadunidense. Além disso, a frase atribui negatividade às pessoas negras e desconsidera que o machismo e o racismo são formas distintas de opressão [5].
Cut Piece (Peça Corte), 1964, Kyoto.
Yoko Ono também foi uma agente importante nas lutas feministas nos Estados Unidos, principalmente as que reivindicaram o aumento da participação das mulheres no sistema das artes. Com suas obras, Yoko tornou-se uma das vozes do movimento. Em Cut Piece (Peça corte), trabalho realizado em 1965, Yoko convidou o público para cortar suas roupas até que ficasse completamente nua. A exposição do corpo e a liberdade com a qual o público se apoderava deste foi usada por Yoko como crítica ao modo abusivo como a sociedade controla e violenta o corpo das mulheres.
Em Freedom (Liberdade), filme de dois minutos gravado por ela em 1970, o protagonista é um acessório utilizado pela maioria das mulheres, o sutiã. Yoko filma os seus próprios seios vestidos com sutiã rosa. Lentamente, sua mão inicia um processo insistente de retirada do sutiã, entretanto, não consegue rompê-lo, demonstrando que a liberdade feminina não era uma realidade e que havia muitas dificuldades para alcançá-la. O vídeo de Ono joga também com a sensação de alívio que se sente com a retirada desse acessório, a liberdade para as mulheres, e com os atos de queima dos sutiãs, uma ação simbólica adotada pelos movimentos feministas como metáfora do processo de libertação de seus corpos.
Já na obra Emergir, ela não é mais a única protagonista, mas uma em meio a tantas outras mulheres que denunciam violências e abusos sentidos. Desde 2013, Yoko realiza uma chamada para que mulheres enviem, a uma plataforma digital, relatos de abusos sofridos acompanhados de apenas uma fotografia dos olhos de quem escreve. O material recebido é impresso e exposto ao público em suas exposições. Essa obra conta com relatos de mulheres de diversas regiões do mundo, e teve uma edição organizada para a exposição O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE..., realizada no Instituto Tomie Ohtake, em 2017.
Emergir. Exposição O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE..., realizada no Instituto Tomie Ohtake, em 2017.
Outra peça que foi refeita para essa exposição foi Three Months (Três montes). Um conjunto de três pequenos montes de terra idênticos, porém identificados por nomes distintos. Cada nome é referente a um conflito social. A obra, já realizada em outras regiões, tematizou conflitos como a disputa cultural e de terra em cidades israelenses, e violências contra as mulheres. Na versão brasileira, Yoko escolheu três conflitos que marcaram nossa história: a Guerra de Canudos, o Massacre de Eldorado do Carajás e a Terra Indígena Ñande Ru Marangatu. Em Canudos, na Bahia, ocorreu um dos conflitos mais sangrentos do século XIX, onde a estimativa é de que durante tal Guerra tenham morrido cerca de 25 mil pessoas. Em Eldorado do Carajás, no Pará, em 1996, ocorreu uma das ações mais covardes da polícia brasileira que, a mando de latifundiários, assassinou dezenove pessoas, todos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E a Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, localizada em Antônio João, no Mato Grosso do Sul, continua sendo palco de um sangrento e longo processo de disputa de terras entre populações indígenas locais e fazendeiros. Assim como diversas outras regiões do Brasil, pessoas indígenas morrem por reivindicar o direito ao próprio território. Apenas no ano passado foram mortas sete lideranças indígenas em decorrência de tais conflitos, dado que faz com que o Brasil seja um dos países líderes em mortes por conflito de terra. Segundo o levantamento anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 a 2018, aproximadamente 1.938 pessoas foram assassinadas no Brasil em conflitos por terra, água e trabalho, e dessas, 1789 (92%) não foram julgadas[6]
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Three Months (Três Montes).O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE..., realizada no Instituto Tomie Ohtake, em 2017.
Massacres que arrastam sangue na história e que matam aqueles que defendem a ocupação consciente do solo. Não é de hoje que pessoas, como Yoko Ono, buscam maneiras de sensibilizar o resto do mundo sobre o assunto. O teórico brasileiro Ailton Krenak também é uma delas. Além de ser um dos principais intelectuais do país, ele acumula anos como artista e ativista na luta contra a devastação da natureza e a reivindicação de direitos das pessoas indígenas. O amanhã não está à venda [7] e Ideias para adiar o fim do mundo [8] são obras com pautas e preceitos similares ao ativismo de Yoko Ono.
Desde 2012, Yoko Ono atua, juntamente com o seu filho, Sean Lennon, na associação Artists Against Fracking (Artistas contra o Fracking). A rede criada pelos dois realiza ações contra o fracking, a perfuração das profundas camadas do solo, realizado na exploração de gás natural e petróleo. A exploração desses recursos compromete não apenas o solo, mas a água dos aquíferos, rios e oceanos, liberando diversos gases tóxicos na atmosfera. A iniciativa realiza denúncias, apoia grupos ambientalistas e convida outros artistas a participarem. Celebridades, como Lady Gaga, Paul McCartney e Robert de Niro são alguns dos apoiadores [9].
Através de manifestações incessantes, a Artists Against Fracking conseguiu proibir a prática de fracking no estado de Nova York, e em uma entrevista, Yoko Ono contou que esse processo foi longo e muito difícil. Segundo ela, “ser contra uma petrolífera não é algo que a maioria das pessoas gostaria de fazer. Não é algo que você possa fazer de ânimo leve. No ano passado, houve muitos sinais que mostram que talvez tenham pessoas contra mim, pois diversas coisas que aconteceram comigo foram muito assustadoras” [10].
Vivemos um período limite da exploração dos recursos naturais, do solo, da vida animal e da força humana. Yoko Ono demonstra que é necessário falar sobre tais violências, que é importante repensarmos a vida e a nossa permanência na terra. A crise do COVID-19 pode ser o indício de uma urgência das autoridades mundiais em debaterem o tema com mais seriedade. Foi através do ar, esse elemento invisível aos nossos olhos, que a COVID-19 globalizou a experiência atual. A pandemia nos faz lembrar que, mesmo diante das fronteiras imaginárias demarcadas pela geopolítica contemporânea, nós habitamos o mesmo planeta e estamos unidos através de seus elementos. Em Air Talk (Ar tocável), escrito em 1973, Yoko Ono comentou sobre a potência do ar, ao dizer: “É triste que o ar seja a única coisa que compartilhamos, não importa quão perto estejamos, sempre há ar entre nós. Também é bom que o ar seja algo que todos compartilhamos, não importa quão longe estejamos, um ar nos liga" [11]. O ar nos une. O mesmo ar que atravessa o meu corpo atravessa o seu e, por enquanto, ainda parece impossível privatizá-lo. Talvez o ar seja o único bem que ainda é universal nessa sociedade, e isso é preocupante.
Entretanto, para Yoko Ono, mesmo em meio às circunstâncias mais cruéis, a esperança e a paz devem prevalecer, assim como a possibilidade de sonhar. O mundo ainda pode ser melhor, é o seu lema. Convicta de que é possível lutar com atos de paz, o ativismo de Yoko Ono demonstra a necessidade de renovarmos e ressignificarmos a palavra humanidade, que tem se perdido nos últimos tempos. Com ações que nos convidam a não desistir, Yoko Ono demonstra que o amanhã ainda está em construção, que a luta se faz no hoje, que a mudança depende de nós e que cada ação conta. Yoko Ono deixa claro que sempre haverá tempo, desde que haja nosso empenho efetivo de mudança.
[1]Em entrevista realizada por Fiona Sturges para o Independent, em 2013. https://www.independent.co.uk/news/people/profiles/i-was-doing-this-before-you-were-born-yoko-ono-on-john-lennon-infidelity-and-making-music-into-her-8788694.html . Consulta realizada em 10.05.2020.
[2]Em entrevista concedida a Alex Needham, do The Guardian, em 5 de julho de 2015. https://www.theguardian.com/environment/2015/jul/05/yoko-ono-to-be-an-artist-you-need-courage . Consulta realizada em 12/05/2020.
[3]Em entrevista concedida a Alex Needham, do The Guardian, em 5 de julho de 2015. https://www.theguardian.com/environment/2015/jul/05/yoko-ono-to-be-an-artist-you-need-courage . Consulta realizada em 12/05/2020.
[4] Perfil da artista no Twitter: Yoko Ono, @yokoono. https://twitter.com/yokoono . Consultado em 10.05.2020.
[5] Em KENNEDY, Randall. Nigger: The Strange Career of a Troublesome Word. Editora Pantheon Books. 2002. Nova Iorque.
[6] Os dados podem ser consultados em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/5167-conflitos-no-campo-brasil-2019 . Consulta realizada em 10.05.2020.
[7] KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. Editora Companhia das Letras. 2020. São Paulo.
[8] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora Companhia das Letras. 2019. São Paulo.
[9] Mais informações em https://www.artistsagainstfracking.com/fracking.html . Consulta realizada em 12.05.2020.
[10] Em entrevista concedida a Alex Needham, do The Guardian, em 5 de julho de 2015. https://www.theguardian.com/environment/2015/jul/05/yoko-ono-to-be-an-artist-you-need-courage . Consulta realizada em 12/05/2020.
[11] Yoko Ono, Air Talk, 1973