Por Paulo Miyada e Luise Malmaceda
Em entrevista, Antonio Manuel percorre sua trajetória artística entre as décadas de 1960 e 70. Relata, com detalhes, episódios de censura sofridos pelo teor de sua produção, contundente na crítica ao contexto sociopolítico brasileiro do período ditatorial.
A experiência relatada por Manuel inicia com o fechamento da II Bienal da Bahia por uma invasão militar, em 1969. Na mostra, ele apresentava um grande díptico sobre o movimento estudantil e outros movimentos políticos de rua, denunciando a situação de exceção vivida. Até hoje desaparecida, a obra é relembrada pelo artista, que relata o estado de paranoia criado pela iminência da prisão decorrente da exposição.
Outros eventos que sintetizam a conjuntura cultural mediante a impossibilidade de livre expressão atravessam o seu caminho. A forte amizade com o crítico Mario Pedrosa, por exemplo, o fez decidir correr o risco de ajudá-lo a se esconder e, em seguida, a fugir para o Chile devido à perseguição sofrida. Aderiu, como tantos outros artistas, ao boicote à X Bienal de São Paulo (1969), agitada no Brasil por Pedrosa, e participou do icônico Salão da Bússola, que aglutinou aqueles que se recusaram a participar da Bienal.
Da censura chega ao comentário sobre autocensura, quando o MAM do Rio de Janeiro, após convite para realização de uma exposição individual em 1973, passou a desautorizar sistematicamente suas propostas, ao ponto de tornar impossível a realização da mostra. Desmobilizado, o artista foi deixado em posição de impotência, que reverteu ao decidiu levar os materiais iconográficos concebidos para o museu diretamente para a imprensa. O periódico “O Jornal” acolheu, então, um caderno inteiro editado pelo artista, o qual se apresentava como uma “exposição” que durava as 24h da presença do jornal nas bancas.
Entre fatos pessoais e processos coletivos, Manuel transita sobre o que mobilizou a criação de obras como Urnas quentes, O Corpo é a Obra, os filmes Loucura & Cultura e Semiótica, e a mencionada peça gráfica De 0 às 24h. [LM]
O Corpo é a Obra (1970)
Para a inscrição no 19º Salão Nacional de Arte Moderna do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Antonio Manuel preencheu uma ficha indicando os seus dados pessoais e as medidas do próprio corpo como “obra de arte”, cujo valor de aquisição era nulo. Chegou a ser recebido pelo júri, para apresentar-se como obra e esclarecer as premissas de sua proposição, mas foi rejeitado na seleção final do salão. Compareceu então à inauguração do salão, que contava com grande público e diversas autoridades, entre elas o Ministro da Educação do governo Médici.
Fotografias [Photographs] Coleção particular [Private collection]
Ao chegar ao MAM, decidiu realizar a obra à revelia da seleção oficial. Encontrou casualmente Vera Lúcia, modelo que costumava posar para a Escola Nacional de Belas Artes e comentou com ela a sua ideia, convidando-a para participar da performance. Após o aceite, ambos se dirigiram à escada de acesso do segundo andar do museu, despiram-se e apresentaram-se ao público inquieto da cerimônia. Catalizavam, assim, nos próprios corpos nus, uma gama de experiências contrárias ao status quo. Talvez por essa razão o crítico Mario Pedrosa tenha utilizado uma expressão que lhe era cara, que sintetizaria o espírito de toda uma geração, para definir o gesto de Antonio Manuel: “exercício experimental de liberdade”.
A atitude do artista, simples e incisiva, acumulou uma série de camadas reflexivas, interpretada como crítica ao caráter excludente do sistema de artes e às práticas censoras do poder vigente – que não se limitava a restringir opiniões políticas, mas também modos de viver e expressar-se que divergissem dos padrões de conduta dos “cidadãos de bem”. [LM e PM]
ANTONIO MANUEL
Loucura & Cultura (1973)
35mm, pb [black and white], 9min
Coleção do artista [Collection of the artist]
Caetano Veloso, Hélio Oiticica, Luis Saldanha, Lygia Pape e Rogério Duarte são enquadrados pela câmera. Do abdômen para cima, em pose ereta, primeiro aparecem de frente, em seguida de lado e por fim de costas, como nas imagens tipicamente produzidas durante a prisão de um sujeito. O filme identifica cada uma das personagens, que em 1968, à época da gravação dos áudios, haviam participado de um debate realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, intitulado “Amostragem da Cultura/Loucura Brasileira”. Encabeçado por Duarte e Oiticica, o debate buscava ampliar a noção de cultura, já permeada pelos questionamentos insurgentes com a Tropicália – tanto o movimento musical quanto a obra de Oiticica – que desafiava o erudito e abraçava aspectos da cultura popular. Como afirmava Veloso, a anarquia do Chacrinha seria mais cultura que os programas do comunicador Flávio Cavalcanti, conhecido por avaliar músicas ao vivo e jogar no lixo aquelas que não lhe agradavam. Artistas de diversas áreas buscavam, naquele momento, romper com a crítica judicativa do bom e mau gosto e da aura de racionalidade do meio intelectual.
Nesses retratos fílmicos, a noção de “procurados” fica latente e remete aos cartazes de perseguidos políticos que seriam espalhados pelas ruas do país a partir do AI-5. Não à toa, todos os participantes foram presos, à exceção de Hélio Oiticica, ou exilados nos anos que se passaram entre captação do debate e a montagem do filme.
Se a estrutura do filme responde a uma série de decisões estruturais claras, é a faixa sonora que aponta afetos e urgências, o que se reforça pela introdução do bélico hino revolucionário da França, A Marselhesa. A ideia original de Antonio Manuel era utilizar o hino do Brasil, que se tornara um mantra ufanista do regime militar – mas logo constatou que seria imediatamente censurado pela apropriação de um símbolo nacional. [LM]
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Depoimento colhido por [Interviewed by] Paulo Miyada em 25 de junho de 2018 [on June 25, 2018]
HD, cor [color], 24min 20s
Fotografia e câmera [Cinematography and camera]: Gonzalo Gaudenzi
Edição [Editing]: Ricardo Miyada