APRENDENDO COM DORIVAL CAYMMI CIVILIZAÇÃO PRAIEIRA

Por Paulo Miyada

APRENDENDO COM DORIVAL CAYMMI

CIVILIZAÇÃO PRAIEIRA

Quando desembarcou no Rio de Janeiro, em abril de 1938, Dorival Caymmi trouxe da Bahia a base do repertório que afloraria nas composições para voz e violão que fizeram história como “Canções Praieiras”, músicas inovadoras, arrojadas em sua síntese melódica e despojamento temático, mas que soavam também como se sempre tivessem existido, límpida condensação de alguma atávica cultura baiana.

 

Aos poucos, conforme conseguia espaço na indústria radiofônica de um Rio de Janeiro que então se modernizava rapidamente e formatava o núcleo do imaginário carioca “para exportação”, Caymmi difundia o gênero das Canções Praieiras, do qual seria o maior expoente, trazendo novos ventos para a cultura nacional. Novos, esses ventos praieiros também carregavam uma arcaica e ancestral brisa da primeira capital do país. Não só a Bahia, até os anos 1950, estava parcialmente desconectada das ambições modernizantes produtivas e sociais do centro-sul do país, como a Bahia cantada por Caymmi se mostrava em versão idealizada: pré-moderna, pesqueira, integrada com a natureza, voltada para o mar, sem conflitos sociais explícitos, miscigenada e sincrética em suas religiões, símbolos, festas, alimentos, vocábulos e ritmos. Uma “utopia de lugar”, como chamou o poeta e antropólogo Antonio Risério.

 

É impossível exagerar a gigantesca contribuição do LP Canções Praieiras (1954) para a história da canção brasileira, inclusive pelo papel que teve na maturação da bossa nova carioca ao ser digerido por João Gilberto e Tom Jobim. Não bastasse sua relevância musical, pode-se, partindo da interpretação arguta de Risério, tomar esse álbum como um marco cultural e especulativo sobre nossa relação com o território, o tempo, o espaço e a natureza litorânea, não só na Bahia, mas na orla brasileira de forma geral. Tal é a abordagem que esta exposição explora, tomando as canções praieiras como motivo para pensar em um modelo de civilização contrastante com a abordagem prioritariamente extrativista, exploradora e intervencionista que caracteriza a relação da maior parte das médias e grandes cidades litorâneas com o território em que foram implantadas.

 

Artistas de gerações e origens geográficas diferentes foram selecionados para montar um quadro parcial do que poderia ser uma civilização praieira brasileira, com critérios muito distintos daqueles que as iniciativas coloniais desde 1500 e os projetos desenvolvimentistas desde meados do século XX têm privilegiado.

 

As paisagens do marinheiro-feito-pintor José Pancetti tomam a dianteira na construção imagética de um espaço de imanência, no qual a noção de progresso faz pouco sentido. O mobiliário do carioca Sergio Rodrigues, que na década de 1950 quis fazer sua loja Oca com os pés na areia, e as ideias de Flávio de Carvalho sobre uma arquitetura, um design e uma moda ajustados para o homem dos trópicos, completam o núcleo em torno do qual se forma a exposição. Documentos, ideias, imagens e obras de outros artistas completam o percurso marcado pela sinestesia, duração, espera, preguiça, extensão e presença. Essas são algumas das forças em jogo na civilização que poderia ter sido e até foi, pelo menos no espaço/tempo poético convocado por esses artistas.


ENCONTROS MAIS OU MENOS FORTUITOS

Na parte final de seu depoimento cantado para o antológico programa Ensaio, dirigido por Fernando Faro na TV Cultura, em 1972, Dorival Caymmi comenta algumas fotografias feitas em vários momentos de sua vida. Entre os personagens que identifica e nomeia estão figuras ilustres da cultura, como Sérgio Milliet, Assis Chateaubriand, Jorge Amado e vários músicos. Chama a atenção sua referência a José Pancetti, “o grande pintor brasileiro”, muito amado e muito querido, e ao também “grande” Flávio de Carvalho, nas suas palavras. Quem ouve esse trecho, se soltar a imaginação, pode especular que o encontro entre Caymmi e Pancetti deve ter sido aguardado por ambos, como um encontro fraternal de artistas que, pela convergência poética, tiveram tudo para se admirar mutuamente. Menos previsível é a familiaridade com Flávio de Carvalho, quiçá surpreendente para alguns, embora documentada como feito repetido diversas vezes na cidade de São Paulo, em encontros que convergem dois universos normalmente imaginados como isolados.

 

Impossível saber a profundidade efetiva dessas filiações agora distantes no tempo, mas esse breve depoimento foi suficiente para estimular um devaneio: quem sabe as canções de Caymmi e as pinturas de Pancetti combinadas pudessem criar um ótimo ambiente para relembrar as ideias de Flávio de Carvalho sobre a “cidade do homem nu”, desnudo dos preconceitos e ideias herdados do passado imediato e levado – por revoluções técnicas, morais, urbanísticas e psicológicas – a uma renovada ancestralidade tropical de intensa liberdade e invenção.

 

Para transformar essa imaginação em uma hipótese comprovável, seria preciso tomar a fabulação disparada pelo depoimento de Caymmi como convite para aproximar parcelas da história da arte e da cultura brasileira por critérios excêntricos, que escapariam das abordagens consagradas desses personagens e suas obras. São absolutamente pertinentes as premissas da enorme parcela dos estudos sobre Caymmi que, quando querem aproximá-lo de outras artes, começam pela Bahia, onde se encontram camaradas e parceiros de longa data, como o escritor Jorge Amado, o artista visual Carybé e o fotógrafo/antropólogo Pierre Verger. Entre estes e o compositor há inúmeros indícios de conexão afetiva e intelectual, sendo possível discutir, a partir das trajetórias cruzadas desses personagens, o processo de reconhecimento moderno da cultura baiana (com suas raízes banto-iorubanas) em âmbito nacional e internacional.

 

Não obstante, sempre é possível reconhecer que esse pode não ser o único campo de reflexão produtivo para as ideias e obras de Caymmi. Afinal, a historiografia não define vizinhanças, movimentos e épocas apenas para represar os estudos dentro de seus limites imaginários, mas também para atravessá-los com hipóteses e comparações de outras ordens. Assim se pretende fazer com Caymmi, Pancetti e Carvalho, reunindo melodias, imagens e ideias de tempos e tons diferentes para enquadrar aspectos pouco discutidos acerca das grandes ideias de “praieiro”, “tropical” e “brasileiro”.

 

É como se, ao aproximar figuras nem sempre vistas em conjunto, aspectos menos salientes de suas produções acabassem interagindo, tornando-se palpáveis. A proposta da exposição é realizar essa experiência no âmbito sensível – pela justaposição de suas obras e poéticas – e no âmbito reflexivo – pela discussão de seus discursos e documentos.

 

Em tempo, Sergio Rodrigues achou seus próprios pontos de contato circunstanciais com os personagens desta exposição-ensaio. À parte sua retórica do mobiliário moderno e tropical, Rodrigues tem um inusitado elo com Caymmi: o fotógrafo Otto Stupakoff, no tempo reduzido que viveu no Brasil na década de 1950, realizou a capa do disco de culto Caymmi e o mar e, também, foi quem encomendou o primeiro protótipo da Poltrona Mole para poder relaxar em um canto de seu escritório. Claro que é uma coincidência, mas não custa citá-la junto às pistas involuntárias deixadas pela história para a reunião agora promovida.

 

Fotografias de Pierre Verger, Marcel Gautherot e Alice Brill foram também reunidas e colaboram com algum registro da época; uma aula-show de José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski reflete as ideias musicais de Caymmi e a importância de suas composições, letras e melodias para a história da música brasileira e para o imaginário da Bahia; os artistas contemporâneos Leda Catunda, Cadu, Fabio Morais, Rafael RG, Bel Faleiros e Cristiano Lenhardt refletem graficamente sobre as apaixonadas ideias urbanísticas de Flávio de Carvalho; e, finalmente, Cao Guimarães, Paulo Bruscky, Nelson Felix e Patricia Leite emprestam ao conjunto obras recentes que, partindo de suas próprias especificidades, aprofundam noções de tempo e espaço que são caras à dita “civilização praieira”.


OU MARACANGALHA

Maracangalha foi consagrada pela canção de Caymmi de 1956 como uma versão ainda mais popular e ensolarada da Pasárgada de Manuel Bandeira. Em ritmo de marchinha de carnaval, foi associada à felicidade e à boa-venturança, sobretudo por advir do cancioneiro de Caymmi. Quase ninguém, nem o compositor, conhecia a pequena cidade real que empresta o nome à música; e, mesmo assim, ela virou metáfora de um Brasil solar, oásis.

 

A própria sonoridade de Maracangalha, porém, guarda algo de “esculhambada”, precária, e, como o lançamento da canção coincidiu com o concurso para o projeto da nova capital do país, Brasília, essa homofonia virou maneira corrente de caçoar do projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, até na imprensa popular.

 

Em 1957, depois de escolhido o projeto da capital, o crítico de arte e articulista de esquerda Mário Pedrosa publicou o texto “Reflexões em torno da nova capital”, cujo primeiro tópico, “Brasília ou Maracangalha?”, consagrou essa associação. Pela lógica do texto, “Maracangalha” representa o avesso da utopia progressista, modernista, civilizatória e aberta de Lucio Costa: é o avesso do país do futuro, a vontade do governo de ignorar as vontades da população, a vacuidade ideológica e filosófica dos partidos políticos, a ocupação extrativista do território, a incapacidade de integrar a urbanização à natureza brasileira – é tudo que vemos ainda hoje: a eterna promessa de felicidade idílica desprovida de fundamento e compromisso ético, histórico, cultural e urbanístico.

 

Na argumentação de Pedrosa, isso teria relação com os princípios da colonização do país que, em sua exploração extrativista e artificial da orla, realizava o que Worringer chamara de “civilização oásis”, sempre à espera de que a abundância das dádivas naturais pudesse oferecer opulência e nutrição ilimitadas, sem historicidade e sem relação plena com o território. Em tudo, portanto, Maracangalha era como o destino sombrio da utopia humanista imaginada por Lucio Costa, se dela fosse retirado o conteúdo utópico. Ápice dos ideais modernistas e das vanguardas construtivas no país, Brasília é o triunfo da vontade de construir o espaço ex-nihilo, moldar a paisagem e definir a cidade como máquina simbólica e funcional do modelo civilizatório desenhado pelo homem; isso com intensidade tal que pudesse se tornar um centro irradiador de uma nova civilidade nacional, mais humana e racional.

 

Falar nos termos de uma “civilização praieira” implica, portanto, subverter os valores que prevaleceram na escrita de nossa história da arte e da arquitetura para rever de que maneira a própria civilização oásis poderia ser reinvestida de conteúdo utópico, afastando-se da simples ocupação que ignora as particularidades do território, para fundar uma cultura a partir do povo e da terra que habita. Assim, apesar do triunfalismo que até hoje cerca o que se diz sobre a construção de Brasília como ápice da arquitetura moderna e das vanguardas construtivas, seria possível realçar o que há de original e prospectivo na reinvenção da paisagem brasileira por artistas como Dorival Caymmi, José Pancetti, Sergio Rodrigues e Flávio de Carvalho.


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Imagem: José Pancetti. Areal, Bahia, 1952, óleo sobre tela. Coleção particular, Fortaleza, CE.