Por Luise Malmaceda
Definir a arte postal não é tarefa fácil. Podemos considerá-la um movimento, mas escorregamos na tentativa de determiná-la por um conjunto de ações em um espaço-tempo preciso, já que escapa ao mito do marco zero. Quando artistas teriam começado a trocar correspondências que transcendem a pura informação, mas são matéria de experimentação artística em si? Câmbios intelectuais sempre ocorreram e muitos artistas se aproveitaram de imagens de postais e fotografias para inserções gráficas pontuais. Seu final também não é determinado, ainda que a nomenclatura “arte postal” sirva sobretudo para designar manifestações que atingiram o ápice entre 1960 e 1980. Os correios seguem existindo e, mesmo frente à comunicação virtual contemporânea, intercâmbios artísticos são mantidos hoje, em menor fluxo, por meio dessa rede.
Considerar a arte postal uma linguagem artística pode também não resolver a sua complexidade. Intermídia por excelência, ela abarca uma variedade de formas e processos que a torna pluralista e, portanto, sua definição não está em disputa: ela é ampla o suficiente para sustentar uma diversidade de linguagens. Nessa pluralidade cabem carimbos, poesias, projetos, partituras sonoras, desenhos, colagens, fotografias, postais, fax, envelopes, caixas, fitas cassetes, entre tantos outros. Afeita à experimentação, a arte postal foi também integrada à performance, a exemplo de quando a artista Letícia Parente tentou enviar a si própria pelos Correios para atender à chamada da XVI Bienal de São Paulo, em 1981. Ao ter o seu pedido negado, Parente registrou em vídeo o processo de carimbar no próprio o rosto o endereço da Bienal.
Se a ação frustrada da artista pode ser compreendida dentro do escopo da arte postal, isso significa que os correios desempenham, nessa prática, um papel tanto físico quanto discursivo. E é justamente essa apropriação discursiva dos correios como veículo que estrutura e circunscreve, dentro da historiografia da arte, a arte postal como uma manifestação típica das décadas de 1960 e 1970.
Em um esforço de construir uma história linear do uso dos correios como meio de trocas artísticas, podemos retomar o movimento futurista, considerado pioneiro no uso desse dispositivo ao incorporá-lo como meio de propagação de suas ideias estéticas e políticas, intervindo em postais com colagens, pinturas, selos, elementos gráficos e tipográficos. Os artistas dadá e seus enigmas poéticos enviados pelos correios também merecem ser citados, assim como a experiência de Marcel Duchamp (quando os processos contemporâneos não acabam apontando para ele?), que teria enviado uma série de 14 postais ao seu mecenas. É somente nos anos 1960, porém, que a arte postal transforma o correio em um lugar específico de interesse poético - onde o veículo é também estrutura fundamental da obra - e estabelece uma rede intercontinental de câmbio de ideias, pesquisas, denúncias.
Essa rede tinha como propósito a ruptura com os “ismos” que caracterizaram a arte moderna, com suas definições e categorizações, e uma maior aproximação da criação artística com os processos da vida cotidiana. Não por acaso emerge em meio às manifestações conceitualistas que orientaram as proposições de uma geração marcada pela problematização do “objeto de arte”, seu lugar e função na vida, assim como os papéis do artista e das instituições.
De acordo com o artista Paulo Bruscky, considerado um dos expoentes do movimento, a arte postal seria “anti-burguesa, anti-comercial e anti-sistema”[1]. Anti-burguesa porque não exigia credenciais de seus membros. Não era preciso ter cursado uma graduação em artes visuais, integrado exposições ou sequer possuir qualquer conhecimento dos meandros das técnicas tradicionais de representação para se unir à rede. Mantendo um sistema horizontal, quem desejasse participar dessas trocas era bem-vindo. Anti-comercial porque não tinha como objetivo final a inserção no mercado, mas os intercâmbios artísticos e intelectuais. Inclusive, por ser altamente experimental, era possível criar com materiais inusitados e mesmo precários, de baixo custo, o que à época significava a consequente exclusão dos circuitos comerciais. Anti-sistema porque não dependia da legitimação de nenhuma instância, seja ela do crítico[2], do historiador, do mercado ou da instituição de arte, garantindo assim a total liberdade criativa.
Segundo o artista e poeta uruguaio Clemente Padín, em texto de 1988 no qual se debruça sobre a sua experiência pessoal com a arte postal, apenas duas questões táticas foram estabelecidas e aceitas por toda a rede. A primeira, de que “todas as obras recebidas a partir de qualquer convocatória, seja qual for o tema, serão exibidas na sua totalidade, sem escolha e sem seu júri impor restrições”[3]. Isto é, caso circulassem convites pela rede para participação em mostras, publicações e eventos em geral, todos os trabalhos enviados deveriam ser considerados como iguais e dignos de exposição, sem critério definidor de seleção. O segundo requisito é a “não-devolução e a não comercialização das obras, podendo ser doadas às instituições patrocinadoras para suas próprias mobilizações”.
Nesse segundo caso, cabe pontuar que, de fato, os museus que contam hoje com vastos acervos de arte postal o criaram por meio dos correios, recebendo gratuitamente os trabalhos de artistas de diversas localidades do mundo. No Brasil, destacaram-se as iniciativas do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) que, por meio da atuação de seu então diretor, Walter Zanini, se tornou um nó na rede e um local privilegiado para essas trocas. Lá foram apresentadas exposições marcantes para a história dessa manifestação como “Prospectiva ‘74”, que reuniu 151 artistas, majoritariamente da América e da Europa – todos enviando produções via correios. Realizada em 1974 por iniciativa de Walter Zanini e do artista e teórico Julio Plaza, a convocatória foi dirigida a um grupo de artistas, que tinha liberdade de convidar outros dois nomes para integrar a mostra com obras sem restrições de mídias – ao contrário, era estimulada a experimentação. O sucesso de participação foi propulsor de novas ações do MAC-USP, como “Poéticas Visuais”, de 1977, na qual o sistema de convites foi substituído por uma convocatória a artistas que investigavam as relações entre palavra e imagem. Superando a primeira em números, essa experiência contou com o engajamento de 189 artistas provenientes dos mais diversos locais.
Ao julgar por esse exemplo, a arte postal, apesar de dita “anti-institucional”, não era anti-instituição por excelência, pois não visava um combate aos museus e centros culturais, mas antes escapar das instâncias de validação do sistema de artes. Isto é, propunha questionar e subverter o controle simbólico das instituições, em suas escolhas capazes de ditar o que deve merecer o estatuto de arte. Por isso a rede postal abdica de avaliações judicativas das comissões de concursos, como era comum nos salões de arte nos anos 1970, e das premiações. Independentes, os artistas não necessitavam de intermediários para que trabalhos alcançassem o público, uma vez que esse público era estruturado à margem do sistema, no interior na própria rede. Isso permitiu que esse tipo de produção circulasse tanto pelos correios ou em circuitos extraoficiais (como espaços de autogestão de artistas), quanto fosse integrado a mostras de grande porte (desde que respeitando as regras da rede), como a XVI Bienal de São Paulo, curada por Walter Zanini, que teve um núcleo dedicado à arte postal com organização de Julio Plaza.
A recorrência dos nomes de Zanini e Plaza, no entanto, nos fornece indícios de que os museus e instituições interessadas pela arte postal não foram tantos. O MAC-USP, por mais que tenha um papel fundamental, é considerado uma exceção. No Brasil foram poucas instituições dispostas a compreender e incorporar em sua programação uma manifestação tão aberta e horizontal. Esse dado se reflete numa pesquisa rápida sobre os artistas que foram mais ativos na rede: eles não somente organizaram a grande maioria das exposições dedicadas à arte postal, como foram (alguns seguem sendo) os seus principais teóricos. Textos seminais como “Arte Correio: Hoje a Arte é este Comunicado” (1976/1981), de Paulo Bruscky e “El arte correo em Latinoamérica” (1988), de Clemente Padín, são incontornáveis para quem deseja se aprofundar no assunto. Cito também os nomes de Edgardo-Antonio Vigo e Ulises Carrión como artistas que auxiliaram a formular e legitimar essa prática artística.
Muito ligada à palavra “solidariedade”[4], a rede promoveu trocas internacionais despretensiosas, experimentais horizontais e abertas, que certamente serviu para a formação de uma geração de artistas experimentais cujas produções rompem com as distinções históricas de centro e periferia. Ao mesmo tempo, como latino-americanos, é importante estabelecer que a rede também teve uma especificidade local: funcionou como meio de denúncia da realidade vivida durante as ditaduras que assolaram o continente.
Como protesto, a necessidade de rápido espraiamento de mensagens contestatórias encontrou na arte postal uma estrutura perfeita de comunicação: ao mesmo tempo em que essas produções penetram o sistema, se diluem em seu fluxo. Por essa razão, quando nos perguntamos sobre como os artistas que trabalharam com a rede não foram todos presos ou perseguidos (ainda que vários tenham sido), a resposta é relativamente simples: era possível o controle de uma parcela do que era enviado, mas não da totalidade desse contingente de trocas. Era comum o monitoramento de mensagens de suspeitos políticos e figuras que de algum modo eram tidos como ameaças ao regime militar. Não era o caso de grande parte dos artistas, que passaram incólumes.
As propostas de manifestação pública da arte postal não encontraram a mesma sorte, porém, e por essa razão os principais expoentes latinos da arte postal sofreram, quase todos, graves consequências do terror da ditadura. A censura no campo das artes visuais foi sentida sobretudo na determinação de encerramento de mostras pelas forças repressivas - mas não somente. Em Recife, no ano de 1976, o encerramento da “II Exposição Internacional de Arte Postal”, organizada por Paulo Bruscky e Daniel Santiago, em 1976, levou também ao aprisionamento de ambos por um mês; no Uruguai seriam presos e torturados por cinco anos os artistas Jorge Caraballo e Clemente Padín; assim como em El Salvador seria decretada a prisão de Jesús Galdámez, obrigado a abandonar o país e a recorrer ao exílio no México.
Em resposta a esses eventos, pessoas de todo o mundo se mobilizaram pela rede postal para informar instituições internacionais das violações de direitos humanos que ocorriam na América Latina. Movimentos pela liberdade dos artistas presos foram organizados e obras com caráter de denúncia passaram a ser amplamente difundidas. Emblemática da ação solidária da rede foi a reconstituição do acervo de Clemente Padín, que teve seu acervo incinerado pela ditadura. Ao sair da prisão, recebeu pelos correios milhares de obras, de sua própria autoria e dos colegas, como suporte para um recomeço.
Capaz de conectar e sensibilizar pessoas das mais diversas regiões e culturas, a arte postal uniu estética e politicamente uma geração, envolta em uma espécie de utopia de ruptura com as diferenças e hierarquias. Anárquica, se pretendeu horizontal e foi capaz de colocar em xeque questões complexas como a função da arte, sua penetração na vida cotidiana e a necessidade de validação simbólica das instâncias do campo artístico. Por mais que essa prática venha ganhando reconhecimento na última década, sendo musealizada e comercializada, mantém a sua vivacidade ao mostrar que, na arte, é possível abdicar da lógica da competição, investir na criação coletiva e nas ações de resistência, mesmo à distância.
[1] BRUSCKY, Paulo. Arte Correio: Hoje a Arte é este Comunicado. In: FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006, p. 163.
[2] Evito o uso do termo curador, que hoje ocupa papel central nessa validação. Na época, a noção de curadoria estava nascendo no sistema de artes, que só a incorporaria efetivamente como função e nomenclatura a partir dos anos 1980.
[3] PADÍN, Clemente. El arte correo em Latinoamérica. Disponível em: http://www.merzmail.net/latino.htm
[4] Recomendo a dissertação de mestrado do pesquisador Bruno Sayão, defendida em 2015 pelo PGEHA-USP, intitulada “Solidariedade em Rede: arte postal na América Latina.