Por Priscyla Gomes
O historiador e filósofo francês Michel de Certeau introduz sua concepção dos modos de se relatar um espaço contando uma anedota linguística sobre a denominação dos transportes coletivos em Atenas. Segundo o autor, os transportes se chamavam metaphorai:
para ir ao trabalho ou voltar para a casa, toma-se uma metáfora – um ônibus ou um trem. Os relatos poderiam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços.
A introdução de Certeau guarda em si um intuito específico: afirmar que todo relato é uma prática do espaço e, mais ainda, que a conformação e a invenção de nossos cotidianos demandam que nos apropriemos, narremos e reconfiguremos a lógica de deslocar, permanecer e habitar.
A pesquisa de Certeau, um compêndio de escritos e palestras publicado em 1980,1 é concomitante a um momento chave da crítica arquitetônica. Nesse mesmo ano, o arquiteto italiano Paolo Portoghesi abria a Bienal de Arquitetura de Veneza com o tema “Presença do Passado” restabelecendo distintas noções à memória dos espaços aliada a uma crítica ao movimento moderno. O paralelo entre a publicação e as discussões vigentes não é tão distante. Um dos relatos de Certeau sobre a configuração dos espaços em seu livro narra a cidade de Nova York vista do alto de um arranha-céu. O autor opõe essa visão panorâmica, que se assemelha ao panóptico foucaultiano, à apreensão e experiência da cidade daquele que transita, na escala da rua. A crítica de Certeau ataca diretamente o urbanismo moderno: essa visão de cima, do alto de um edifício, seria análoga àquela que concebe uma cidade como tábula rasa. Para ele, o arquiteto moderno hipervalorizava a geometria, a ilusão de um domínio total, e abdicava da experiência cotidiana de seus habitantes. Não à toa, a configuração de uma das principais seções da mostra de Portoghesi trazia a rua como um espaço de vivência e de trânsito.
A noção de espaço vivido, para Certeau, pode ser transposta da escala urbana às tarefas cotidianas em espaços mais familiares. As práticas desses espaços pelos seus indivíduos é que conferiam a eles uma especificidade. Seus relatos e experiências é que davam aos espaços uma dimensão de convívio e memória. O espaço praticado de Certeau era aquele que poderia fazer de Roma uma metáfora da memória, com suas temporalidades imbricadas, e tal qual uma residência, reduto de convívio explorado pelo arranjo de cada peça nele disposta.
A tradição fenomenológica em que se apoiava Certeau distinguia um espaço antropológico de um espaço geométrico. Sua noção de espaço, seja o urbano ou o residencial, remetia a uma relação singular fruto de uma prática cotidiana. As diferentes escalas em que transita a análise de Certeau potencializam os usos e convívios possibilitados por cada espaço e as diferentes narrativas singularmente concebidas por cada um de seus habitantes.
A dimensão do relato e a experiência do espaço são condições marcantes na definição do desenho de Ruy Ohtake. Embora bastante reconhecido pela suntuosidade e ousadia de suas curvas, o arquiteto entende a produção de seus espaços de modo a extrapolar a concepção geométrica, o desenho, a definição de uma forma, para invariavelmente conduzir a experiência daquele que percorre o espaço, propiciando surpresa e, paulatinamente, revelando a natureza mais específica de cada superfície e material.
São inúmeros os casos em que a aproximação do pedestre ao vislumbrar um dos projetos de Ruy Ohtake em escala urbana inicia-se por uma profusão de vistas cambiantes, pela imprevisibilidade de algumas formas, quase como um relato pautado pelo surpreendente. Conceber, para esse arquiteto, passa por um processo de propor ou antecipar narrativas em percursos e usos que se desvelam.
É importante salientar que sob a ideia de conceber e projetar, Ohtake emprega processos análogos para as mais diferentes escalas. O arquiteto elege parâmetros para sua inventividade formal pautados pela apreensão daquele que percorre seus espaços e que os habita. Por isso, tanto a sua arquitetura como seu mobiliário se respaldam na possibilidade de conduzir um percurso, de propiciar encontros, de reconfigurar usos. Por procedimentos afins, mobiliário e arquitetura se definem por meio de gestos, aproximações cromáticas, escolhas similares de materiais que, na maioria das vezes, os colocam numa relação de interdependência.
Essa relação de interdependência não é somente chave para traçar paralelos entre suas trajetórias na produção arquitetônica e na de designer, mas também marca um longo período em que a experimentação de materiais e a de técnicas se davam concomitantemente. Pensar a relação entre esses campos é determinante para o entendimento da produção de Ohtake, isso quando eles não são indissociáveis. Embora tratemos de especificidades distintas entre os projetos e com grandes variações de escalas, há um entendimento similar na sua forma de conceber o projeto urbano e o projeto de mobiliários e objetos. Ressaltar essa aproximação é chave para pensar também seu emprego de materiais, sua aproximação com a vivência no canteiro, seus testes acerca dos limites técnicos e físicos de cada componente empregado.
Não à toa, o primeiro ensaio dedicado à sua produção como designer, realizado pelo amigo e colega de profissão Julio Katinsky, se vale da denominação “Arquiteturas móveis” para designar esses que “são mais arquiteturas móveis do que móveis arquiteturais”.2
A preocupação em relacionar mobiliário e edificação surge em seus primeiros projetos habitacionais, pensando os móveis como parte integrante de seus espaços. Cabe ressaltar que são inúmeros os casos em que a noção de parte integrante chega a se esvair. A imposição e a importância de certos gestos propiciadores de diferentes perfis de mobiliário fazem deles não uma parte, mas o próprio espaço – dissociando-se de uma noção objetual do design.
A inventividade formal do arquiteto, pautada pelo risco, é determinante na exploração de formas que impelem moradores e visitantes a repensar usos, a entender diferentes percursos pelo espaço. Como aponta Katinsky, a gênese de suas formas traz um constante questionamento de usos “estabelecidos e estabilizados”.3 Mesas mesclam-se a bancos num jogo de alturas e texturas, planos curvos e inclinados são concebidos como melhor arranjo para uma estante de livros. A cada peça projetada, Ohtake reafirma que sua contemporaneidade se alinha a um pensamento vanguardista em que estar à frente é decidir com liberdade novos parâmetros para a criação.
ARQUITETO, DESIGNER, VICE-VERSA
Ruy Ohtake é parte de uma geração de estudantes que entendeu o desenho nas suas acepções mais amplas, que concebeu sua produção aliada a um ideário em que o desenho da cidade não era uma utopia, estava materializado nas empreitadas de Brasília como a epítome da modernidade.
A formação do arquiteto, no início dos anos 1960, atrelou-se a um momento de reestruturação no programa de ensino da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Foi nessa década que a estrutura pedagógica foi reformulada, vindo a incluir o design como parte do grupo de disciplinas obrigatórias à formação do curso de Arquitetura e Urbanismo. O motivo dessa inclusão parecia refletir o momento histórico, reverberando os impulsos de modernização pelos quais passava o país.
Naquele momento, a arquitetura moderna e sua forte vinculação à industrialização da construção tornaram-se uma possível resposta aos anseios da formação de uma moderna nação brasileira. A vinculação da arquitetura ao desenho industrial e à comunicação visual transpunha à formação desses profissionais um amplo leque de atuações, concebendo o ofício do arquiteto como aquele responsável por projetar “da colher à cidade”. As escalas tão distintas dessa atuação vinham sendo delineadas e legitimadas por todo o século XX, num ideário que envolvia a noção de obra de arte total, bem como toda a imagem-síntese bauhausiana de uma escola que previa na sua formação desde uma base de princípios da construção até as artes gráficas.
Endossada pela visão otimista vinculada à arquitetura moderna no Brasil, a proposta de ensino da FAU-USP abrangeu em sua estrutura tudo o que fosse relacionado ao projeto de espaços, advogando o desenho industrial e a comunicação visual como partes indissociáveis do projeto de arquitetura e, portanto, partes do campo de atuação do arquiteto. Os docentes da FAU-USP, responsáveis pela reforma, defendiam a ideia da constituição de uma “universidade do projeto”, o equivalente a formar um aluno capaz de atuar em diversas áreas e escolher sua área profissional de atuação, justificando assim a existência das quatro sequências de ensino.4
O desenho dessa estrutura de ensino que atrelava os campos da arquitetura e do design deu-se tendo como pano de fundo o trabalho de inúmeros profissionais que advogavam a interpenetração dessas disciplinas. É evidente que essa concepção veio a permear a trajetória do móvel moderno brasileiro, com nomes como Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha e Oswaldo Bratke concebendo e projetando nas mais diferentes escalas.
Deriva da interpenetração desses campos uma postura distinta frente ao projetar que talvez seja um bom índice de leitura da produção ohtakiana do design. A fidelidade do arquiteto ao desenho à mão, ao projeto concebido nos incessantes contornos do lápis sobre o papel, conferiu-lhe a liberdade de transpor aos seus mobiliários e objetos a linha curva, de uma geometria muito mais fluida.
Esse traço da formação do arquiteto, que vivenciou a experiência da prancheta desde a juventude, reside ainda no cotidiano do seu escritório, numa práxis aprimorada ao longo das décadas de sua atuação. Como aponta Agnaldo Farias em ensaio dedicado ao arquiteto na década de 1990, a experiência de Ohtake junto a grandes expoentes da arquitetura do período o levou a instaurar metodologias correlatas, atrelando desenho e produção a todo o seu percurso:
desses mestres interessava-lhe o embate com a folha afixada na prancheta, as pequenas descobertas que fazia com que o dia fosse ganho. Os croquis resultam da deriva da mente e da mão, os esboços das ideias rabiscadas à margem das pranchas, os pequenos detalhes construtivos feitos para esclarecer o mestre de obras em meio à azafama dos canteiros.5
Como Ohtake afirma ainda hoje, suas aproximações com a produção de um de seus principais referenciais, o arquiteto paranaense João Baptista Vilanova Artigas, deu-se pelas sucessivas visitas e redesenhos de suas residências. O jovem arquiteto viu o desenho como caminho de aproximação e entendimento da lógica construtiva e do processo criativo de Artigas. O mestre, com o qual estudou, foi determinante nos primeiros anos como arquiteto. Ohtake mesmo menciona, em depoimento, que a figura de Artigas teria sido responsável pela abertura de sua consciência sobre a realidade brasileira.
A referência ao seu período de formação e a correlação de sua produção a mestres e contemporâneos, longe de esgotar a multiplicidade do arquiteto, é um traço determinante ao entendimento de sua concepção de design:
a arquitetura de Ruy Ohtake associa elementos como a luz e a sombra, o piso, o teto e as paredes, e a casa e a cidade, e as relações entre estes. Há um tratamento integrado a cada um desses conjuntos de elementos: o piso, o teto e as paredes sugerem continuidades, a incidência da luz surpreende nos espaços sombreados, evidenciando-os, e a casa se insere na cidade com a intenção de ordená-la. O que se destaca nesses elementos é seu caráter essencial, como uma atitude miesiana, ou quem sabe zen, oriental. Ruy Ohtake se propõe a utilizar os mínimos elementos necessários e deles tirar o máximo de proveito. 6
A produção do mobiliário ohtakiano tem claras origens nos seus primeiros projetos de residências, pensado como parte integrante do espaço arquitetônico. Pensar mobiliário e arquitetura como uma extensão de um mesmo labor permitiu ao arquiteto estender tecnologias de fabricação correlatas e fazer do canteiro de obras um espaço de produção de peças únicas também de design. Um arco temporal que trace um panorama de suas incursões nas mais diferentes materialidades guarda um claro paralelo com sua produção arquitetônica, tendo o concreto como matéria-prima primordial.
MODERNIDADE SUPERADA
Em ensaio redigido em 2003, quando revisita a produção de Ohtake após outra publicação do ano de 1999, o arquiteto e crítico Roberto Segre afirma que “Ruy superou a sua formação modernista, inserindo-se nas contradições pós-modernas e elaborando respostas arquitetônicas inéditas e incisivas como alternativa ao caos e à desordem urbana dominantes na metrópole contemporânea”. O termo superação pode ter um cunho muito determinista e polarizador ao caracterizar uma trajetória que ainda encontra marcadores claros de seus primeiros projetos como arquiteto.
Se a produção ohtakiana tem evidentes traços de uma experimentação formal que abdicou do racionalismo brutalista e pôs-se frontalmente como um marco cromático na paisagem, suas produções recentes no que tange ao design guardam profundas relações com seus estudos acerca dos modos de morar iniciados nos anos 1970.
É possível ainda remetermos às origens de sua produção, buscando conciliar duas vertentes que marcam esse período e ecoam na produção contemporânea de Ohtake. A distinção entre dois grupos atuantes no início de sua formação, o carioca e o paulista, nos permite algumas pistas ao entendimento de seus projetos. Ressalto aqui, mas uma vez, que a noção de projeto, no caso de Ohtake, empreende as mais diferentes escalas, dos edifícios às suas arquiteturas móveis. O arquiteto, sabiamente avesso às categorizações que criaram inúmeras polaridades entre as produções dessas escolas, entende tais dissociações como uma regionalização e segmentação didática: um distanciamento necessário para compreender os rumos e riscos corajosamente tomados no livre curso de sua atuação. Mas é possível, por intermédio da produção de alguns expoentes, evidenciar alguns traços marcantes na trajetória ohtakiana. Da escola paulista, mais precisamente de Vilanova Artigas e Rino Levi, sua arquitetura e, por consequência, sua produção de mobiliário derivam a busca pela primazia da execução, prezando o mais minucioso detalhamento e a constante experimentação de materiais industrializados.7 Da escola carioca, nitidamente marcada pelo seu contato com Niemeyer, Ohtake viria a herdar a busca pela leveza, plasticidade e uso arrojado do concreto.
Ohtake vem tensionando os limites dos materiais, diversificando seu emprego nos mobiliários, mas reforçando alguns dos parâmetros delineados já nas primeiras décadas de sua carreira. O forte apelo e a priorização dos espaços comuns e de convívio na implantação de suas residências trazem princípios organizacionais análogos, com espaços de serviços e íntimos projetados com dimensões mínimas.
A estrutura arquitetônica pensada para as residências segue uma lógica recorrentemente replicada por Ohtake: optando por dois muros laterais estruturais e um sistema de vigas transversais, o arquiteto liberava todo o vão interno da presença de pilares, dando liberdade para conformação das áreas. O partido estrutural tinha a implicação clara de propiciar uma pequena praça para o convívio de familiares.
Essa noção de “praça” permeia o ordenamento de seus espaços internos residenciais, sendo recorrente uma noção de amplitude nos espaços de convivência, muitas vezes conectados e abertos ao exterior por intermédio de varandas e jardins. Quando essas aberturas não se dão nos vedos, Ohtake explora a iluminação natural zenital como modo de convidar a luz a lavar o interior da casa.
É na configuração dessa praça interna que o arquiteto dispõe cuidadosamente seu mobiliário, e a linha sinuosa que divide o ambiente se faz presente desde a residência de Tomie Ohtake (1968) e a de Paulo Chedid (1974) até projetos mais recentes como a residência Roberto Caldas (2010), em Brasília, a Casa de Praia (2011), em São Sebastião, e a residência Fernando Marques (2005), com um móvel que mescla mesa e banco invadindo o espaço externo.
O uso da argamassa armada na elaboração desses móveis é determinante para um gesto, por vezes impositivo, de condicionar o morador a percorrer os mais diversos cantos da habitação. Seus móveis fixos, com texturas e pinturas diversificadas, são elementos norteadores das tipologias e evidenciam o trato frente às formas empregadas, recebendo uma meticulosa desmoldagem e, em alguns casos, ora polimento e enceramento, ora uma camada de tinta epóxi.
Como aponta Farias,
o trinômio da arquitetura – piso, parede e cobertura – é judiciosamente pensado por Ohtake. A linearidade planar do piso cimento pode se romper inesperadamente para que dele brote, em argamassa armada, um plano orgânico com a forma de um rio seccionado, espécie de mesa de centro baixa, ladeada por sofás e poltronas e que, em sua extremidade, envolve o leito de uma lareira. Convém frisar que, como é comum na produção de Ohtake, trata-se de uma peça forjada no canteiro de obra, no calor e na possibilidade que só um momento inefável é capaz de suscitar, escapando, portanto, de um projeto prévio.8
Originalmente concebidos com materiais análogos aos do espaço para o qual teriam sido moldados, esses móveis foram gradativamente “se descolando”, empregando outros materiais e técnicas para migrarem a outros espaços. As finas placas de concreto moldado in loco, usuais na concepção de um móvel único para um espaço específico, aos poucos foram ganhando versões e experimentações com materiais outros, como o aço carbono, a madeira e o vidro.
CURVAS, DOBRAS E VINCOS
A curva foi a primeira ousadia da arquitetura contemporânea brasileira. Essa ousadia da forma precisava se sustentar numa ousadia estrutural, provocou significativo avanço nos cálculos estruturais. A meu ver, as curvas de nossa arquitetura são as mais belas do movimento contemporâneo mundial. Talvez porque não possam ser integralmente previstas pela alta tecnologia.9
Já na década de 1970, as residências de Ruy Ohtake assumem a predominância da curva, ao reiterarem uma profusão de linhas que estabelecem uma relação com o espaço circundante ou uma ordenação interna de seus ambientes.
As curvas e ondas, a partir daí, darão a tônica da apreensão de seus espaços, delimitando desde uma escala citadina – com o edifício como um marco na paisagem – até a fluidez dos contornos de mesas, estantes e apoiadores.
Ruy afirma que as referências diretas ao emprego da curva vieram de produções um tanto distantes temporalmente: a mais marcante foi a de Oscar Niemeyer, com quem conviveu e trabalhou, de quem se tornou constante interlocutor; depois, a de Aleijadinho, cuja mediação e contato teriam se dado ainda no período de estudante, ao visitar a arquitetura barroca mineira; e a mais familiar e íntima, Tomie Ohtake, cuja produção e influência não só das pinturas, como também das esculturas, encontram ecos em diferentes momentos da trajetória do arquiteto.
Originalmente, como já mencionado, o emprego da curva tornou-se sinônimo da exploração da plasticidade do concreto. Seu aparecimento, que ora demarcava a fachada, criando sutis inflexões ao olhar, ora realizava uma transição da cobertura para a delimitação de espaços internos, ganhou corpo e variações de aplicação. Logo nas primeiras residências, a curva passou também a compor os espaços internos e ser traço marcante de bancos serpenteantes, estantes e mesas.
Um caso marcante desse emprego, uma namoradeira realizada na Residência José Egreja (1975), viria a ser uma das primeiras releituras de Ohtake de uma peça do mobiliário colonial. Concebidas originalmente como um sofá de descanso para casais, o móvel remonta aos séculos XVII e XVIII, tendo inúmeras variações em madeira maciça e estofados. O arquiteto incorpora uma versão em que o casal se acomoda lado a lado, mas com os assentos invertidos. O móvel colonial relido por Ohtake tem, na junção de suas curvas, a perfeita combinação para uma conversa íntima. O traço que dá vida à primeira das peças em concreto ganha depois uma nova versão em metal, quase 20 anos depois.
Nos anos 1990, Ohtake iniciou uma série de mobiliários empregando o aço carbono como principal elemento constituinte. A liga metálica, resultante da combinação entre ferro e carbono, é usualmente utilizada na indústria, sobretudo na construção civil e na automobilística. Embora usináveis e soldáveis, as chapas normalmente aparecem na produção ohtakiana sem emendas. O arquiteto produziu peças como mesas, bancos, aparadores e sofás em que cortes e dobras acabam por definir aspectos estruturais de sua composição.
A série realizada em 1996, por ocasião da construção do edifício Address em São Paulo, explora a curvatura da chapa como meio de estruturar vãos, conferir certo movimento e receber, em alguns casos, uma justa composição com a transparência do vidro. São desta série peças como a Mesa Rana, o Aparador Fillipelli, a escrivaninha curva e o Sofá Address.
A natureza dessas peças gerou pontos marcantes na trajetória de Ohtake, também em projetos de edificações. Como aponta Katinsky, “em todas se nota uma talvez perplexa dialética entre o peso, a gravidade que nos fixa à terra e a manifestação da liberdade, através da negação da gravidade: um ato alegre e descompromissado, que se revela pura e soberana vontade”.
Outro exemplo paradigmático na associação de gravidade e composição, a Mesa Origami traz evidente referência à cultura japonesa. Ao explorar os limites entre dobras e cortes, Ohtake explicita além de um astuto conhecimento das propriedades do material, uma inequívoca laboriosidade artesanal. A chapa metálica única assemelha-se mesmo a uma simples folha de papel, com traços compositivos admiráveis: “A curva surpreendente é aquela que nos obriga a percorrê-la com os olhos até o fim, pois a cada instante pode mudar de traçado, de raio, ou de direção. Ela deve ter um desenho claro, mas não uma geometria tensionada”.10
A forma como Ohtake tensiona as propriedades do concreto e do aço carbono reverte-se também ao uso da madeira. Ao narrar essa experiência, o arquiteto rememora alguns de seus primeiros contatos com o MDF (Medium Density Fiberboard), material derivado da madeira, composto de uma placa de fibra de média densidade. Em contato com as primeiras amostras do produto, Ohtake se questionou sobre a possibilidade de aplicá-lo em formas curvas. A resposta dos fabricantes foi negativa: a natureza das placas impossibilitava a curvatura, pois implicaria o rompimento das fibras.
O arquiteto não se conformou com a resposta e tratou de se aproximar do material. Previu em oficina uma sequência de estudos que associavam o umedecimento das placas e a medição das diferentes curvaturas resultantes da aplicação de pesos às peças. Os ensaios previam a fixação de uma das extremidades e a aplicação de pesos na outra, e comparavam os resultados com a espessura de cada placa. Com esses estudos, Ohtake mapeou os limites da ruptura do material diante de cada circunstância e conseguiu prever um coeficiente para cada placa.
Os experimentos de Ohtake nas oficinas possibilitaram a confecção de uma série de estantes e peças em MDF com inédita curvatura. O resultado integrou a mostra Brasil Faz Design, realizada em 1998 em Milão.
A madeira, seja de lei ou em derivações como o MDF, também apareceu em outros momentos de sua produção. Casos paradigmáticos são a estante realizada para o Brasília Alvorada Park Hotel, também em 1998, e peças mais recentes como a mesa ZU (2005), produzida em jacarandá para a residência Zuleika Halpern, e a mesa de jantar confeccionada exclusivamente para a residência Nara Roesler, em 2015.
Assim como a casa é um espaço de extrema importância e apreço para Ruy Ohtake em seus projetos arquitetônicos, a mesa tem papel similar em seu design. Ele narra com extremo zelo cada percurso por suas residências, prevendo em muitos casos uma mesa exclusiva, considerando a dinâmica dos habitantes do espaço.
No caso das residências recentes da família Roesler, Ohtake prevê duas mesas únicas que reestruturam todo o espaço de encontro e convívio. Em uma delas, a madeira surge como solução para um programa de 13 assentos, propiciado pela curvatura e reordenação das extremidades da mesa. Na outra, o concreto aparece como elemento constituinte de um plano que delimita mesa de jantar, prateleira e home office.
METAPHORAI: A CASA, UMA CASA
A importância da casa como programa arquitetônico tem em sua gênese um dos projetos mais paradigmáticos de Ruy Ohtake, cujas tomadas de decisões ainda encontram ecos nos trabalhos mais recentes.
O destaque ao projeto é uma constante na revisão crítica de seu trabalho, como afirma Agnaldo Farias: “o exame da casa por ele projetada explicita seu pensamento sobre a realidade em que vive. Ideias são argamassadas e ganham vida plasmadas em materiais, definindo espaços, facultando encontros”.11
A residência projetada para sua mãe, a artista plástica Tomie Ohtake, quando ainda era recém-formado, foi gradativamente incorporando e revendo os ensinamentos de seus professores. O concreto foi o material majoritariamente empregado, apropriando-se de suas variações: blocos lixados, texturas verticais e horizontais produzidas por sarrafos de 10 centímetros.
Em vídeo produzido em 2017, por ocasião de uma exposição sobre o ateliê da artista, o arquiteto Ruy Ohtake realizou um percurso tratando das narrativas, decisões projetuais e variações de materiais empregados. O testemunho de Ohtake se assemelha a um travelling cinematográfico que adentra a casa para desvelar cada um de seus elementos:
O terreno original possuía 8 por 22 metros, e a rua era toda residencial... Naquela altura da nossa arquitetura, minha, do Artigas, do Paulo Mendes [da Rocha], fazia-se uma casa com a visão de um pré-moldado. Eu achava que o pré-moldado iria se desenvolver. A casa é, então, um exercício. [Na entrada] as nervuras estão distanciadas de 1,2 por 1,2 metros com um pé-direito de 2,10 metros seguindo as dimensões das folhas de madeirite que fazem as formas. A largura da casa seguia a dimensão de 4 folhas. [A escolha entre os distanciamentos e a altura das nervuras] fazia com que a casa tivesse um ritmo, preocupando-se com a relação da casa térrea e de seu morador. [...]
Quando eu ia ver a arquitetura dos meus professores, eu achava que as paredes ficam muito nuas aos moradores das casas. A parede principal tem 50 metros. Pensei: vou colocar estantes ao longo dela toda. As estantes são feitas em concreto fino com diferentes alturas para dispor objetos, e a entrada com 3 metros de largura permite a configuração de uma pequena galeria.12
A casa-ateliê, projetada em etapas,13 foi posteriormente estendida para proporcionar um novo espaço de trabalho à artista. A dimensão de praça vinha à tona pela constante recepção de amigos, familiares e colegas. Ohtake privilegiou mobiliários amplos para espaços de estar e previu ambientes de serviços e quartos exíguos. A casa tinha como função primordial não o isolamento de seus moradores, mas troca e convívio constantes.
A recepção, o estar junto e as conversas desenvolvidas na casa de Tomie Ohtake tornaram-se memoráveis para seus participantes. Muitos dos artistas, críticos e curadores da área de arte e da cultura que passaram por São Paulo nas últimas décadas carregam lembranças dessas visitas. 14
Esse programa voltado ao convívio guardava profundas relações com o cotidiano de Ruy, seu irmão Ricardo, a artista Tomie e demais familiares. Muitas das intenções projetuais do arquiteto reverberaram influências desse cotidiano, bem como aproximações com a produção e atuação da artista. Ohtake esteve atento e próximo a cada detalhe projetado, previu minuciosamente cada móvel e abertura. A residência foi ponto de partida para uma aproximação que se consolidaria paulatinamente na produção do arquiteto: projeto e canteiro pensados em consonância, no teste dos mais diferentes limites e propriedades de cada material empregado.
ARQUITETURA E MOBILIÁRIO COMO UMA PINTURA CEGA
Os mais diversificados relatos sobre a produção de Ohtake passam invariavelmente pela preponderância da cor. Segundo Farias, o uso recorrente e cada vez mais franco da cor na sua produção seria responsável pela atualização de um debate já consolidado sobre a relação entre arte e arquitetura. O autor tece paralelos entre as concepções de Ohtake e de Fernand Léger, enfatizando a necessidade e urgência no emprego da cor na cidade.
Não seria inapropriado afirmar que o enfático emprego da cor e a minuciosa exploração entre luz e penumbra são artifícios para a imposição da presença de seus projetos. Nas mais variadas escalas, arquitetura e mobiliário são concebidos por Ohtake para se darem a ver. Suas formas, suas unidades, suas cores são específicas, fortes. Nas palavras do arquiteto, são cores com compromisso, cores que enfatizam o ato de sustentar uma escolha.
Porém, desde os primeiros projetos elaborados, a exploração plástica do concreto aponta não somente para uma dimensão cromática – associado à pintura epóxi de suas superfícies –, mas também para a concepção desse material como elemento de profusão de texturas minuciosamente elencadas.
Na casa elaborada para a pintora e sua família, Ruy Ohtake aponta a eleição de cada superfície em muitas de suas narrativas sobre a concepção do projeto e sua vivência no canteiro de obras. Sua fala entusiástica sobre os mais diferentes detalhes são registros de uma arquitetura táctil, quase com uma possibilidade de reconstituir um percurso cego pela residência.
O termo não emerge ao acaso, pois os anos 1960 coincidem com a pesquisa de Tomie, após encontro com a obra de Merleau-Ponty, sobre uma prática pictórica feita de olhos vendados. A artista liberava-se da intervenção inequívoca e marcante da luminosidade de suas pinturas para a experiência de explorar meditativamente cada pincelada sobre a tela. A conexão com a materialidade da tinta dava-se pela sucessão de camadas despejadas, pela exploração do atrito e fluidez do pincel. As pinturas cegas de Tomie, como ressaltadas pelo crítico e curador Paulo Herkenhoff, ensejavam “uma ação pictórica no limite da percepção. O pincel não buscava demarcar território ou produzir qualquer figuração. Tratava-se do puro fenômeno da passagem do tempo”. Visto por esse ângulo, o contato da artista com a fenomenologia suscitou uma imersão nas etapas e limites do processo pictórico.
Embora, de imediato, a arquitetura de Ruy Ohtake estivesse particularmente vinculada à noção de luz e sombra, pensar a profusão de texturas presentes, os diferentes tratamentos dados ao concreto e as diferenciações cabidas a cada mobiliário nos permitem explorar sua intimidade com o uso de cada material. Do bloco lixado ao concreto escovado que permite diferentes tipos de atritos, Ohtake parece induzir o visitante a aproximar-se da natureza dos materiais.
Entre os possíveis vieses de leitura de sua produção, a narrativa expressa pelo arquiteto também trata da passagem do tempo. É possível constatar a cada cura do concreto, a cada sequência de formas e sarrafos, como Ohtake aborda vestígios de trabalho humano no processo de elaboração da residência.
As camadas narrativas não se extinguem nas inúmeras histórias, anedotas e encontros que tornaram a casa um espaço singular. Ohtake faz desse espaço uma memória viva em cada mobiliário desenhado, em cada peça destinada a compor um percurso do morador por esse espaço. Abrangendo desde a noção de ancestralidade da casa como um espaço de abrigo até as exigências contemporâneas de um espaço multifuncional, o projeto guarda vestígios de memória nas mais diferentes escalas. É como se a mesa que congrega aquela conversa rememorada inúmeras vezes por uma anedota familiar tivesse o peso de um edifício como marco na paisagem. Da colher à cidade, Ruy Ohtake explora os vestígios de uma produção que marca seu morador, seu visitante e seu espectador, a fim de construir uma história do desenho muito além de sua funcionalidade.
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Imagem: Pedro Kok
NOTAS
[1] Intitulado A invenção do cotidiano (CERTEAU, 2008), o livro é produto de uma longa pesquisa realizada no final da década de 1970, com circulação fragmentada até então.
[2] RUY OHTAKE..., 1996.
[3] Ibidem, 1996, p. 13.
[4] BRAGA; DIAS, 2017.
[5] FARIAS, 1994.
[6] TAVARES, 2005, p. 22.
[7] FARIAS, 1994, p. 66.
[8] FARIAS, 1995, p. 29.
[9] Ruy Ohtake, depoimento
[10] Ruy Ohtake, depoimento.
[11] FARIAS, 1995, p. 24.
[12] Ruy Ohtake, depoimento.
[13] A primeira etapa foi concluída em 1970, e as ampliações aconteceram em 1985 e 1997, respectivamente.
[14] Texto de parede da exposição, Casa aberta: a casa-ateliê de Tomie Ohtake, com curadoria de Paulo Miyada e Carolina De Angelis, em exibição no Instituto Tomie Ohtake.