Por Diego Mauro
Ameaças invisíveis cujas causas foram incompreendidas em sua época e, não raro, desencadearam pânico generalizado, espreitam a humanidade desde tempos remotos. A peste bubônica levou ao óbito um terço da população europeia de meados do século XIV. Impacto semelhante foi sentido pela população ameríndia ao entrar em contato com portugueses e espanhóis, que trouxeram para o Novo Mundo não apenas as atrocidades do empreendimento colonial, mas também um arsenal microbiológico que incluía gripe, sarampo, varíola.
A disseminação da pandemia da Aids, que teve seus primeiros casos diagnosticados em 1981 e hoje é responsável pela morte de mais de 25 milhões de pessoas, levou o pânico à população por não saber como se dava seu contágio. O desconhecimento e depois a falta de instrução generalizada a respeito do vírus do HIV provocaram aversão, ódio e violência contra a população LGBTQ+, efeitos que ainda estão longe de serem revertidos.
A radioatividade pode não ser um inimigo invisível da mesma natureza que a bactéria Yersinia pestis, transmitida aos humanos por pulgas e ratos, tampouco se compara aos linfócitos infectados pelo vírus do HIV, mas a sua ação pode ser rápida e devastadora (em casos de exposições súbitas e alarmantes de radiação) ou lenta e progressiva, vindo a se manifestar gerações adiante (por meio da alteração do material genético). Os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki foram os únicos casos de emprego nuclear para guerra tendo civis como alvo, mas os impactos de tragédias e mau uso de energia nuclear continuaram acompanhando a humanidade. Quando ocorreu a explosão do reator da usina nuclear de Chernobyl, em 1986 na Ucrânia, a evacuação não foi imediata e muitos habitantes de Pripyat, a cidade mais próxima, foram acometidas por fortes dores de cabeça, graves tosses e vômitos, além de sentirem gosto metálico na boca.
O governo soviético criou uma zona de exclusão com um raio de 30 quilômetros partindo da usina, área até hoje isolada à ocupação humana e que assim deve permanecer por cerca de 20.000 anos.
Em nome de indenizações e algumas regalias como cuidados médicos extras, cerca de 600.000 “liquidantes” foram recrutados para prestarem serviços emergenciais como fazer a limpeza da cidade de Pripyat, enterrar objetos contaminados, matar animais, realizar a evacuação da população, revirar o solo. Mas estes bombeiros, engenheiros, militares, policiais, mineiros, faxineiros e integrantes de equipes médicas que estiveram em solo contaminado nos meses subsequentes ao desastre desconheciam os altos riscos a que se submetiam: cerca de 60.000 morreram e 165.000 possuem deficiências .
O filme de Alain Resnais (1922-2014) Hiroshima Meu Amor (1959) tem início com dois corpos nus se abraçando. Os braços e torsos de um homem, um arquiteto japonês, e uma mulher, uma atriz francesa, ambos sem nomes, são cobertos por areia que cai sem pressa, cumulativa, e em determinado momento adquire um tom brilhante, radioativo. Esse encontro amoroso, que acontece um dia antes de a atriz deixar Hiroshima, permite entremear o passado amoroso da atriz com a catástrofe da guerra, trazendo à tona os traumas de ambas as esferas, a individual e a coletiva.
Essas tragédias mencionadas foram ainda mais devastadoras por conta do desconhecimento de suas causas e das formas de cura ou tratamento. Há ainda situações nas quais um grupo, detentor de mais conhecimento, se vale dessas informações às custas de uma parcela desinformada. Essa disparidade fica clara nos casos de europeus que presenteavam os indígenas com roupas de pessoas sabidamente contaminadas com varíola, realizando assim uma erradicação eficaz de tribos consideradas problemáticas, ou o estado soviético, que contratou os liquidantes sem que estes soubessem de todas as implicações do seu gesto patriótico.
O pavor diante do desconhecido associa Drácula à peste bubônica no filme de 1979 de Werner Herzog (1942) Nosferatu: O Vampiro da Noite. A chegada da epidemia acontece metaforicamente com a chegada na cidade de uma embarcação cujos tripulantes mortos, com a exceção dos ratos e do conde Drácula, que está escondido em um caixão. A impotência dos habitantes ante à catástrofe se transmuta em desvario: pessoas dançam na praça da cidade empesteada, à espera da própria morte, humanos e ratos compartilham o mesmo banquete.
Em tempos atuais, vivemos a ameaça do Coronavírus que, embora se conheça a sua causa, por ora é possível apenas tentar conter o ritmo de contaminação da população, enquanto não se encontra uma vacina ou mesmo a cura para a COVID-19.
Alguns exemplos trazidos aqui evidenciam o horror do desconhecido e como este suscita desvarios, preconceitos ou mesmo escolhas nefastas. Tais temeridades acabam, inexoravelmente, se embrenhando na imaginação humana. O nosso foco a partir daqui não será tanto as causas de grandes catástrofes, mas iremos explorar a obra do artista contemporâneo Takashi Murakami, tentando mostrar como o seu imaginário está povoado pela noção de radioatividade e cura.
TAKASHI MURAKAMI
Murakami nasceu em Tóquio em 1962, um contexto de profunda apologia à cultura de consumo estadunidense, nação que impulsionava a recuperação econômica do Japão no contexto da Guerra fria. Costuma-se denominar esse período de Milagre econômico japonês, amplamente conduzido por políticas governamentais. Essa mudança tão abrupta veio acompanhada de ingredientes divergentes, como a memória recente dos desastres nucleares e a humilhação da perda da Guerra, uma relação problemática com a tradição japonesa, além de uma euforia decorrente do boom econômico de viés ocidentalizante. Esse misto entre euforia e crença no futuro, ao mesmo tempo que o trauma e a sensação de que algo pode vir a dar muito errado num futuro próximo, marcou algumas obras e artistas do período. Emblemáticas são as fotomontagens do renomado arquiteto Arata Isozaki (1931), que no mesmo ano de 1962 projetou tanto a sua megaestrutura solar e otimista, City in the Air, como desenhou o mesmo projeto parcialmente em ruínas, inserido em uma paisagem árida, quase lunar, com reminiscências de colunas gregas gigantescas. Sobre este desenho, intitulado Incubation process, Isozaki comenta: “O efeito de colocar ruínas simples e maciças no centro do mundo de amanhã foi destruir o futuro colorido no qual eu realmente nunca acreditei.” Seis anos mais tarde, sobre uma foto de Hiroshima arrasada pela bomba, Isozaki desenhou uma nova estrutura já em ruína, fruto de uma segunda e monumental devastação (Re-ruined Hiroshima, 1968).
A obra de Murakami poderia ter enveredado por projeções como as de um Yanobe Kenji (1965), considerado um artista Neo-pop assim como Murakami, termo que designa a geração de artistas que entrou em cena por volta dos anos 1990. A título de exemplo da obra de Kenji, vale destacar The Giant Torayan (2005), espécie de protótipo de boneco metálico de sete metros de altura, um brinquedo-arma que, além de cantar e dançar, expira fogo e só obedece às crianças. Já os primeiros trabalhos dos anos 1990 de Kenji tomam, como procedimento estético, a reelaboração da percepção de objetos cotidianos por meio de um deslocando narrativo: somos situados em um futuro distópico sucedâneo de uma hecatombe nuclear. Assim é Survival Gacha-pon (1998), a última máquina de venda automática, na qual é preciso inserir uma moeda e, com sorte, conseguir uma cápsula com itens de sobrevivência. Há ainda trajes a prova de radiação para um humano e um cachorro (Yellow Suit, 1991) e não muito diferente é o Bunker Bunker (1998), um abrigo com aspecto de pequeno submarino cujo interior possui artigos de uso emergencial .
Com efeito, embora a obra de Murakami não seja tão literalmente distópica, o seu imaginário foi alimentado por filmes e documentários que ele via quando criança sobre a Guerra Fria, a Segunda Guerra e a do Vietnã, sobre as experimentações nucleares no Pacífico, além do seu pai ter servido à força de defesa japonesa . Para um jovem que se considerava otaku – expressão relacionada a fãs de animes (desenhos animados), mangás (histórias em quadrinhos) e games – e que sonhava em trabalhar na indústria da animação, a sua jornada no curso de artes da Universidade Nacional de Belas Artes e Música de Tóquio (GEIDAI) o conduziu para o caminho oposto, concluindo um PhD em Nihon-Ga, tipo de pintura nobre e tradicional. Do Nihon-Ga, Murakami extrai não propriamente um estilo, mas uma pergunta: o que agrega valor a uma obra de arte?
A primeira série de trabalhos que projetou Murakami internacionalmente foi Mr. DOB, que surgiu de personagens como Mickey Mouse, Hello Kitty, Sonic o Ouriço e Doraemon, buscando entender a capacidade dessas figuras em perdurar de geração em geração e o seu alcance mundial. Assim como alguns destes personagens, Mr. DOB se enquadra em um termo caro e comum entre os japoneses, kawaii, que significa “gracioso”, adorável”, “fofo”. Mr. DOB, com um “D” inscrito em uma orelha, o “B” em outra e a sua carinha redonda fazendo as vezes de “O”, aparece pela primeira vez, diminuto, na tela Gênese do DOB (1993), cujo fundo é de um azul homogêneo, derivado da pesquisa de Murakami a partir do pigmento azul que, na história da arte ocidental e oriental, era o mais nobre e caro pela sua dificuldade de extração.
Mas se o que marca inicialmente Mr. DOB é o seu lado fofo, logo os seus dentes afiados ganham tons mais cáusticos, como que contaminado por um outro lado sombrio, plasmando acidez à fofura, mescla que irá permear boa parte da obra do artista. A menção à radioatividade está presente em inúmeros trabalhos de Murakami, e é claramente expressa em um símbolo incrustado em Tan Tan Bo (2001), tela de cores corrosivas e psicodélicas. Embora desfigurado, Tan Tan Bo ainda é reconhecível enquanto Mr. DOB pelas letras D e B em suas orelhas, mas escorre uma baba tóxica e paralisante entre seus dentes e seus olhos estão perdidos em uma pupila em espiral. Tan Tan Bo é um misto entre kawaii e kaiju, termo que pode ser traduzido como “besta estranha” ou “animal incomum” e cujo maior representante, senão em tamanho pelo menos em fama, é o Godzilla (que deve justamente sua mutação genética às experimentações nucleares no Pacífico).
Do mesmo modo, em Sem título (2017) um Mr. DOB com ao menos cinco olhos surfa por sobre uma onda gigante, o que não deixa de remeter a um Pac-Man surfando na Grande Onda de Kanagawa de Hokusai (1830c.), produzindo um híbrido entre ocidente e oriente. Este trabalho de 2017 é uma dentre as releituras do trabalho 727 (1996), porém acrescido de camadas semelhantes à pichação, além de três inscrições principais: 727, Fat Man e Little Boy. Fat Man é uma alusão ao modelo da bomba que, em 6 de agosto de 1945, desintegrou Hiroshima, enquanto Little Boy é o nome da bomba lançada sobre Nagasaki três dias depois. Fruto do Projeto Manhattan, conduzido pelos Aliados, as duas explosões contabilizaram entre 150 e 246 mil mortes, seja imediatamente ou nos meses subsequentes aos ataques, decorrentes da radiação.
O único desastre que compartilha com Chernobyl – o maior desastre nuclear da história, tanto em termos de custo quanto de baixas humanas – a classificação máxima na Escala Internacional de Acidentes Nucleares é o vazamento nuclear de 2011 de Fukushima, no Japão, fruto de um terremoto seguido de um tsunami que atingiu a estação. Ante este acidente, Murakami intensificou a conexão com o zen-budismo em seus trabalhos. Murakami toma conhecimento de uma série de 100 pergaminhos de Kanō Kazunobu (1816-1863), trabalho intitulado 500 Rakan, que é como são chamados os discípulos de Buda que atingiram a iluminação. Se o que motivou Kazunobu a pintar os rakan (ou arhats) até a sua morte foi o grande terremoto no Japão em 1855, em situação análoga, Murakami passa a pintar incessantemente essas figuras dos arhats, seres elevados espiritualmente para o zen-budismo.
As pinturas de Murakami – por meio de seu estúdio Kaikai & Kiki Co., que conta com cerca de 100 pessoas em todo o mundo – dedicadas aos arhats são povoadas por dragões, cabras, leões, tigres e criaturas mitológicas como a fênix, que são representações recorrentes destes discípulos clarividentes de Buda que assumiram seu legado de ensino e cura após sua morte. A admiração de Murakami tanto pela arte pop estadunidense como pelo universo dos mangás fazem as representações do artista nos lembrarem super-heróis. Esses arhats super-heróis, mesmo que reproduzidos às centenas, ainda assim preservam a sua individualidade, por meio de seus tamanhos, trajes e feições, mas eles em geral apresentam as unhas multicoloridas e os olhos distorcidos, esbugalhados e vesgos. A leitura de Gunnar Kvaran, curador da exposição Murakami por Murakami que ocorreu no Instituto Tomie Ohtake em 2019 e trouxe pela primeira vez ao Brasil uma individual do artista, é que, além de estarem sob os efeitos da radioatividade, tal anatomia distorcida aponta o quanto os arhats estão exaustos em sua tarefa de curar a humanidade.
Murakami radicaliza a planaridade já presente na tradição japonesa, que é oposta ao princípio de perspectiva desenvolvida no renascimento, segundo a qual se pressupõe um ponto de vista que orienta toda a pintura. Assim, o parco efeito de profundidade da tradição japonesa é levado ao extremo nas pinturas de Murakami, ao trazer os personagens para o primeiríssimo plano e acentuar a frontalidade das figuras. A sensação atingida é de os personagens estarem espremidos contra uma parede de vidro logo diante de nós, como se o espaço pictórico fosse bidimensional como as primeiras versões de Super Mario Bros. A maneira como Murakami trata os limites da pintura vai de encontro à sensação buscada pela representação realista ocidental da tela enquanto janela para o mundo. Em outras palavras, as figuras e a paisagem em Murakami não raro são pensadas de forma a estarem contidas nos limites da tela, ao invés de sugerir uma continuidade.
Se entendermos cada um dos elementos mobilizados por Murakami como camadas – as gerações do pós-guerra estadunidense e japonesa ocidentalizada, a pop art, a alta cultura e a tradição japonesa, a cultura popular a cultura otaku, conseguimos entender melhor o que o artista denomina por Super Flat. Murakami se vale de uma analogia em seu manifesto homônimo de 2000, na qual ele diz que, em um software como o Photoshop, após se aplicar inúmeras camadas com cores e efeitos, ao finalizar a arte, usa-se o comando “flat”, a fim de que toda essa complexidade se mescle em uma única camada. Portanto, Super Flat é muito mais amplo, embora também seja, a planaridade radical que vemos em seus trabalhos. E ela só é possível de ser alcançada por um artista oriental, o que o distingue de artistas pop ocidentais.
Se em Murakami não há qualquer constrangimento em reelaborar incessantemente os mesmos temas, formas e figuras, o mesmo ocorre com suas releituras de obras de artistas da tradição japonesa e também não-orientais. Assim, Murakami faz uma releitura-homenagem da Segunda Versão do Tríptico 1944 (1988) de Francis Bacon (1909-1982), um artista também conhecido por repintar suas próprias obras. A Segunda versão do Tríptico é, como o nome já diz, uma segunda versão de Três Estudos para uma Crucificação (1944), pinturas baseadas nas “erínias” (na mitologia grega) ou “fúrias” (na mitologia romana) da tragédia Eumênides de Ésquilo. As erínias eram representações da vingança que puniam os mortais. A seu modo, Bacon atualiza os desastres da mitologia grega para os termos pós-segunda guerra mundial, com suas figuras deformadas. Murakami, por sua vez, ao retomar o tema de Bacon, o faz embrincando pelo menos quatro camadas: a tragédia grega, os horrores das guerras mundiais, as ameaças nucleares japonesas de Fukushima e Nagasaki e também a fase pós vazamento de Fukushima.
A repetição temática em Murakami, sobretudo se levarmos em conta os meses que seus trabalhos, feitos a inúmeras mãos, levam para ser confeccionados, nos obriga a pensar em uma disparidade temporal: de um lado, a velocidade em que esses riscos à humanidade se alastram e alteram irremediavelmente a sociedade; e do outro lado, o tempo lento da cura, dos traumas, da recuperação econômica e social, que demanda tanto tempo quanto os efeitos radioativos para se dispersarem.
____________________
ACIDENTE NUCLEAR DE CHERNOBIL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Acidente_nuclear_de_Chernobil&oldid=57803508>. Acesso em: 12 março 2020.
ISOZAKI, Irata. The Future City Lies in Ruins. Disponível em: <http://studionexos.blogspot.com/2013/05/ruins-arata-isozaki-essay.html> . Acesso em: 1º abril 2020.
Yanobi Kenji Art Works. Disponível em: <http://www.yanobe.com/artworks/>. Acesso em: 1º abril 2020.
THE UN-PRIVATE COLLECTION: TAKASHI MURAKAMI AND PICO IYER TRANSCRIPT
Disponível em: <https://www.thebroad.org/events/un-private-collection-takashi-murakami-and-pico-iyer/transcript>. Acesso em: 1º abril 2020.