Por Luise Malmaceda
Escutar as pedras
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
João Cabral de Melo Neto
A educação pela pedra, 1965
Fragmento sem qualidade aparente, senão a crueza, a pedra ensina ao homem, de acordo com poema de João Cabral de Melo Neto. Ensina, porém, sem se propor método. É pré-didática. Precede e extrapola nossa existência, por isso não leciona segundo preceitos iluministas. Ensina porque é. Matéria bruta, habita o mundo em silêncio e resiste.
Como exercício fotográfico, o artista brasileiro Caio Reisewitz (São Paulo, 1967) decidiu direcionar o seu olhar para a aridez desse elemento, que pela frieza dá o tom de sua nova série de trabalhos. Das imagens que este texto ensaia, apenas duas ganham o brilho e a exuberância de cores, característica comumente atribuída à sua produção - a outra é a escala da ampliação, cuja grandiosidade foi abdicada pelo artista nesse conjunto de fotografias pálidas.
44 x 33 cm
22 x 33 cm
70 x 55 cm
Quem acompanha a trajetória de Reisewitz logo percebe a radicalidade na decisão de rebaixar a pigmentação e atenuar a eloquência física das imagens. Como referência para a fotografia contemporânea brasileira, seu trabalho ganhou destaque pelo atributo da monumentalidade, além da preciosidade do acabamento técnico e o esmero na composição das colagens, capazes de burlar até os olhos mais atentos.
Discursivamente, seus trabalhos estão pautados por temas e problemas de seu país de origem, criando diálogos que já transitaram da história dos artistas-viajantes que aportaram no Brasil no século XVIII à arquitetura moderna dos anos 1950. Cada vez mais interessadas na investigação de disputas políticas nacionais, as séries recentes do artista estão irremediavelmente entrelaçadas com os conflitos vividos no presente, como em Altamira (2013/2018), na qual documentou a região da floresta de Belo Monte, delimitada pelo rio Xingú, em vias de desaparição em virtude da construção de uma usina hidrelétrica. Altamira, maior município brasileiro em termos de extensão de terra, há anos é palco de um colapso social e ambiental, sintetizado por violentos embates entre grileiros e povos indígenas, Estado e sociedade civil.
Em Água escondida (2014), por sua vez, o assunto são os visíveis desacordos entre desenvolvimento urbano e suas fontes fluviais e pluviais. O conjunto de imagens criado por Reisewitz mira a agressão humana às nascentes, represas e rios aterrados pelo voraz crescimento das cidades. A água, tida como direito básico, é lembrada apenas quando chegamos a crises hídricas como as enfrentadas na atualidade pela Califórnia (EUA), o Sudeste brasileiro (São Paulo alcançou seu ápice entre 2014 e 2016), e Mumbai, na Índia, onde metade de sua população sofre de escassez alta ou extrema.
As imagens inéditas aqui apresentadas parecem de algum modo se colocar como combinação distópica entre as duas mencionadas séries. Voltemos às pedras. Voltemos à desertificação dessas imagens recentes e à diminuta escala em contraste com a produção anterior do artista. Nelas, a natureza já não mais representa um deslumbramento romântico. Já não se dispõe ao olhar com sua potência sublime, grandiloquente, sedutora e amedrontadora. Ela está antes pequena e artificial, por vezes se mostrando cenografia em potencial para Fim de Partida, de Samuel Beckett: pedras pairam em ambiente seco de um recém descoberto planeta ou são remanescentes pós-apocalípticos, como as paisagens narradas na peça.
44 x 33cm
22 x 33cm
70 x 55cm
A decisão tomada pelo artista de quase sempre apagar os rastros da existência humana - dado perceptível somente por informações secundárias, por exemplo, quando retrata edificações - é aqui determinante. Sem protagonistas, somos nós o testemunho humano da natureza. Mas não mais de uma visualidade imperativa. Nosso corpo se depara com paisagens silenciosas, monótonas, sombrias e nebulosas que pertencem a tempo e lugar nenhum. Distantes, são visões duras de nosso não-pertencimento.
Daí a virada de Reisewitz com o novo conjunto de imagens: a abdicação como forma de denúncia do esgotamento. O ocultamento das cores reais das paisagens, bem como a retração de seu potencial físico, são modos de dizer que o dilema fundante da antropologia, o embate entre cultura e natureza, parecem contemplar seu fim. Se as sociedades ocidentais triunfam através de um modelo "universal" de cultura e um modo de produção específico, colocando em risco a vida; a natureza dá seu troco na forma da escassez dos recursos essenciais à subsistência.
Ecologistas nos alertam há décadas de que a curva da relação custo/benefício econômico do capitalismo entraria em fase negativa, pois a conta ambiental do crescimento torna-se agora impagável. Somos voyeurs da catástrofe. Tão distantes quanto possível, assistimos a substituição do Holoceno pelo Antropoceno, fruto de nossa civilização termofóssil. Contemplamos a capacidade humana de criar os seus próprios desertos: o aumento letal das temperaturas globais, a devastação de florestas, as secas e seus consequentes incêndios, extinções maciças de espécies, poluição generalizada de rios e solos, pandemias¹. Tudo em nome dos atuais mecanismos de acumulação de capital e de um modelo que parece impensável de se cambiar. Se nos ditos países desenvolvidos a ruptura com o paradigma do crescimento é subestimada, os países economicamente emergentes baseiam suas ações presas a essa engrenagem devastadora, como China e Índia - onde as mais chocantes anomalias climáticas já se instauraram. O Brasil não fica longe no quesito vanguarda do atraso, sobretudo diante de um governo que não cansa de ocupar manchetes com suas políticas de incentivo à destruição da biodiversidade em nome do progresso².
Como artista que tem no olhar demorado para a paisagem um de seus principais interesses poéticos - os jogos entre sua natureza vernacular e a construída pelo homem, Reisewitz não é inocente na escolha das duas imagens que permanecem com suas exuberantes cores. A primeira, derrama vermelho sobre a terra e remete-nos aos dois graves acidentes ambientais derivados de rompimentos de barragens no estado de Minas Gerais: Mariana (2015) e Brumadinho (2019). A enxurrada de lama que lavou vastos territórios extrapola nossa capacidade de metáfora: é epítome do caos.
No sentido oposto, o denso azul da fotografia amazônica ganha proporção de imagem-síntese do que resta de um mundo pré-antrópico. Nesta série, a obra demarca uma ruptura, desconcerta diante da sobriedade das imagens adjacentes. Em meio às paisagens esmaecidas, é possibilidade de Brasil como salvação, como xangri-lá. Na escala da vida, sua luminosidade é oásis do que ainda nos resta, ou nos restará, como utopia de futuro.
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¹Este texto foi finalizado em 29 de fevereiro de 2020. Até então, a Covid-19 era considerada uma epidemia e, na América Latina, eram diagnosticados os primeiros casos do vírus. Ainda que indícios do caos vivido permeiem o texto (ambientalistas nos alertam há muito), não sabíamos que a urgência de imaginar outros futuros se colocaria de forma tão aguda como na crise do presente.
²Na reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 (divulgada pelo STF), em meio à pandemia e diante de milhares de mortos pela Covid-19, o atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu “passar reformas infralegais de regulamentação e simplificação”, enquanto os holofotes da imprensa estariam direcionados à cobertura da crise sanitária. Esse registro deixa visível a estratégia de fragilização da política ambiental promovida por Salles e pelo atual governo, que vem contribuindo para o aumento de crimes como desmatamento, queimadas, ocupação de terras públicas. As “canetadas” defendidas pelo ministro seriam ações de continuidade de uma política de desorganização administrativa que, entre outras, começou com a exoneração de profissionais de órgãos de defesa do meio ambiente, a liberação da exportação de madeiras nativas e o cancelamento de mais de 1.400 multas de propriedades rurais instaladas ilegalmente em áreas de proteção da Mata Atlântica.
227x180 cm
150x110 cm
44x33 cm
22 x 33 cm
70x55 cm