Por Helio Menezes*
EXPOSIÇÕES E CRÍTICOS DE ARTE AFRO-BRASILEIRA: UM CONCEITO EM DISPUTA¹
“Arte afro-brasileira existe e não existe.” A resposta de Emanoel Araujo à pergunta “O que é arte afro-brasileira?”, em entrevista concedida ao jornalista Oswaldo Faustino em 2014 para a edição 14 da revista O Menelick 2o Ato, deixa uma inquietação no ar. A ambivalência contida na frase do diretor-curador do Museu Afro Brasil (MAB) prossegue na explicação que a sequenciou:
As considerações de Araujo sobre a produção de Estêvão Silva — e, consequentemente, sobre o conceito mesmo de arte afro-brasileira — parecem gerar mais perguntas do que fornecer respostas. Fazem também ecoar questões candentes que têm permeado os debates mais contemporâneos sobre o tema. Afinal, o que é arte afro-brasileira? Além da “própria origem”, que outros critérios circunscrevem (ou não) essa produção? Seria essa área definida pela presença em obras de “alguma coisa ligada à África”? A autoria negra, a seu turno, sem um conteúdo também afro-brasileiro nas obras — como no caso de Estêvão Silva —, não é critério suficiente para essa identificação? E quanto ao contrário? Uma obra cujo conteúdo tematize questões afro-brasileiras, mas sem uma correlata autoria negra, a torna parte integrante dessa área?
O debate é longo, e o interesse crescente de pesquisadores sobre o tema acompanha a multiplicação de pontos de vista e interpretações sobre o conceito. Neste breve artigo, me deterei no mosaico de usos e definições que têm dado corpo e sentido, ainda que instável, à ideia de arte afro-brasileira. A partir da análise das contribuições de teóricos que se voltaram ao tema ao longo do século 20, me debruçarei sobre algumas exposições organizadas ao redor do termo, sublinhando as controvérsias que guiaram suas escolhas curatoriais. Buscando entender, afinal, por que essa arte “existe e não existe”.
Para essa discussão, é preciso levar em conta que a definição de arte afro-brasileira não é evidente. Mesmo as designações são diversas: arte negra, afrodescendente, preta, diaspórica, afro-orientada, de matriz africana — quando não arte naïf ou “popular”, simplesmente. Sabemos, porém que os termos não são inocentes: eles carregam histórias, traduzem interpretações, atuando como verdadeiros critérios de classificação. Não à toa, artistas, curadores, críticos e diletantes têm recorrido a diferentes terminologias e modos de definir a área: com base no fenótipo do produtor; pautada na origem dos personagens retratados; pelo viés da reprodução de cânones africanos nas obras; ou, ainda, pelo conteúdo latente dos produtos, em geral ligado a temas de negritude e africanidade.
Para o antropólogo Kabengele Munanga, por exemplo, a expressão “arte negra” deveria ceder espaço à “noção mais ampla, não biologizada, não etnicizada e não politizada” de arte afro-brasileira. Em suas palavras:
na medida em que esta arte tornou-se uma das expressões da identidade brasileira, ou seja, uma das vertentes da arte brasileira, qualificá-la simplesmente de arte negra no Brasil seria cair num certo biologismo. Seria excluir dela todos os artistas que, independentemente de sua origem étnica, participam dela, por opção político-ideológica, religiosa, ou simplesmente por emoção estética no sentido universal da palavra.³
O historiador Roberto Conduru, por sua vez, defende que “talvez fosse melhor falar em arte afrodescendente no Brasil”, ponderando que “embora seja, a princípio, mais correta”, essa nomenclatura não tem “a força sintética de arte afro-brasileira, que já ganhou livros e museus, sendo a mais corrente no mundo da arte, na mídia".4
O dissenso é compreensível e revela os limites e impasses de uma adjetivação homônima — “arte afro-brasileira” — aplicada a uma miríade de artistas heterogêneos, com diferentes intenções, técnicas, objetos, filiações e influências estéticas, e ainda historicamente distanciados. Mestre Valentim (1745-1813), Estêvão Silva (1844-1981), Arthur Timóteo da Costa (1882-1922), Heitor dos Prazeres (1898-1966), Mestre Didi (1917-2013), Rubem Valentim (1922-1991), Agnaldo Manoel dos Santos (1926-1962), Yêdamaria (1932-2016), Maria Auxiliadora da Silva (1935-1974), Sônia Gomes, Rosana Paulino, Ayrson Heráclito, Lídia Lisboa, Sidney Amaral (1973-2017), Paulo Nazareth, Renata Felinto, Dalton Paula, Michelle Matiuzzi, Priscila Rezende e Jaime Lauriano são alguns dos nomes que ora reivindicaram, ora são externamente definidos, como artistas referências da área. A diversidade formal e semântica de sua produção, além de suas diferentes trajetórias de vida e criação, deixam, entretanto, clara a irredutibilidade do conjunto a uma narrativa única.
“Por grande que seja a diversidade de ervas, chamam a tudo salada”,5 já dizia Montaigne (1533-1592) num de seus famosos Essais.6 Se é correto afirmar que uma salada encerra uma multiplicidade de componentes diversos, é igualmente verdadeira sua capacidade de, ao abarcá-los, realçar similitudes que lhes eram apenas tácitas até então. Como pretendo demonstrar nas páginas que seguem, arte afro-brasileira é uma categoria de significado elástico, carecendo de definição unificadora entre pesquisadores, artistas e curadores. Tal como o drama de Hamlet, parece carregar consigo o questionamento de ser e não ser, de situar-se ao mesmo tempo no registro da visibilidade e do ocultamento. Para entender essa posição ambígua, faz-se necessário investigar os significados que vêm sendo historicamente atribuídos ao termo, bem como os usos mobilizados no cenário mais contemporâneo.
Afinal, quando se faz ou se fala em arte afro-brasileira, do que se está falando e o que se está fazendo? Quando uma exposição ou museu é organizado em torno do conceito, que critérios e entendimentos são por eles acionados — e, por fim, também criados?
Uma arte de muitos nomes: Definição em disputa
A resposta de Araujo nos ajuda a desvendar parte desse enigma ao trazer à superfície os termos que Luiz Gonzaga Duque Estrada (1863-1911) havia devotado, cerca de um século e meio antes, às naturezas-mortas de Estêvão Silva, artista negro pertencente à última geração da Academia Imperial de Belas Artes. Segundo o crítico de arte carioca, em texto datado de 1891, a
prodigalidade de vermelhos, de amarelos e verdes [das telas de Silva] não é nem pode ser mais que um reflexo transfiltrado do seu instinto colorista, vibrátil a sensações bruscas, como é peculiar à raça de que veio. […] Quem, como ele, vem de uma rude raça oprimida, e vem sofrendo, e vem lutando, não tem a nebulosidade grisata, dificultosa, mandria, enovelada dos finos; vê sempre sanguíneo, vê sempre desesperadamente amarelo.7
Como se pode depreender, o texto de Gonzaga Duque não visava propriamente à questão da arte afro-brasileira. Ele revela, contudo, uma tendência racializante da crítica de arte feita no Brasil que perduraria para além de sua época, chegando aos dias atuais: a associação de características raciais do produtor como determinantes do resultado final de seus produtos. Como se o cromatismo das telas de Estêvão Silva se explicasse pelo “instinto” do pintor, um dado “peculiar à raça de que veio”, e não aquilo que é: uma característica resultante de suas escolhas estéticas e inventividade artística.
Tal perspectiva essencialista, que busca fixar características comportamentais e cognitivas a uma dada cor de pele, foi reiterada, com maior ou menor intensidade, e servindo a diferentes propósitos, em boa parte das críticas e considerações teóricas voltadas à produção de arte afro-brasileira e de artistas afrodescendentes ao longo do século 20 (os termos, como veremos, nem sempre são tidos como sinônimos para os autores). A ideia de que a origem negra dos artistas determinaria “as imperfeições, o tosco da execução” de suas obras,8 ou construções como “o homem nordestino, sobre ser um indivíduo antropologicamente mestiço, acusa nitidamente uma cultura mestiça”,9 por exemplo, povoariam as publicações de autores como Nina Rodrigues (1862-1906), em 1904; Mário de Andrade10 (1893-1945); Luís Saia (1911-1975), em 1944; Arthur Ramos11 (1903-1949); Mário Barata12 (1921-2007); e Clarival do Prado Valladares13 (1918-1983), para citarmos apenas algumas referências fundamentais da área.
É certo que houve contrapontos, como os escritos de Manuel Querino14 (1851-1923) bem demonstram, ao afirmar que “foi o trabalho do negro que aqui sustentou, por séculos e sem desfalecimento, a nobreza e prosperidade do Brasil”, em oposição ao racismo de seu contemporâneo Nina Rodrigues. Também o antropólogo Marianno Carneiro da Cunha15 (1889-1958), em importante artigo sobre o tema, afirmou na contramão que “a infiltração do elemento escravo nas artes brasileiras coincide com a própria eclosão das mesmas no Brasil”, ligando umbilicalmente o surgimento das artes no país a um modo de fazer africano. Tal identificação de uma persistência de longo prazo, estrutural, ligando arte africana e afro-brasileira teve fundamental importância no desenvolvimento de pesquisas ulteriores na área, sendo relida e criticada por vários estudiosos que seguiram suas pistas.16
Embora sucinta, essa descrição de autores e textos fundacionais da área permite entrever que foi na vertente da bibliografia sobre os processos de transformação dos estilos e faturas africanas em formas afro-brasileiras que se desenvolveu parte considerável dos estudos voltados a esse campo. Por detrás dessas leituras focadas nas mutações da forma repousavam, contudo, considerações de importância fundamentalmente política. Afinal, tais transformações de fatura que se verificam entre o material africano e o afro-brasileiro seriam resultado de um processo aculturativo dos negros aos padrões europeus, como defenderam Ramos17 e Valladares?18 Ou, por outra leitura, antes materializariam certa “agência” dessas populações, capazes de fazer resistir às condições violentas do escravismo e da relação colonial traços iconográficos e semânticos em sua arte, como defendeu Cunha?19 Indo além: a transmissão desses traços se teria dado de maneira atávica, instintivamente, por entre gerações de africanos e seus descendentes (e, portanto, objeto de estudo da biologia, no limite) ou, antes, por meio da socialização e transmissão de técnicas entre gerações de artistas, pelo seu contato e vivência, fincados na dinâmica sociocultural?
O exame das contribuições teóricas sobre arte afro-brasileira, em que pesem suas diferentes tentativas de definição, nos revela ao menos uma característica comum: até a década de 1980, esse foi um tema basicamente acadêmico, de interesse maior entre cientistas sociais, etnólogos e africanistas. Um objeto de ciência, mais que propriamente artístico, por assim dizer. Devido à identificação da categoria com uma produção escultórica e ferramental basicamente afro-religiosa e presente no terreno das artes de feitio não acadêmico, o termo era pouco reivindicado por artistas e curadores, sendo mais acionado por estudiosos. A ênfase das pesquisas em objetos que manifestassem formalmente sua ascendência africana — tendentes, no limite, a de fato se refugiar nos espaços dos terreiros de candomblé e difusamente no campo da arte dita popular — também concorreu para a circunscrição do termo a alguns espaços de especialistas e à construção de uma ideia forte, presente ainda hoje, que associa e circunscreve a produção de artistas negros a apenas esses terrenos — o popular e o religioso — não obstante o registro, ao menos desde Manuel Querino, da participação de negros na arte dita erudita, acadêmica, na arquitetura e outros ramos das artes e ofícios.
É certo que não faltaram, nesse período, artistas, negros e brancos, que tenham aproximado sua produção a traços culturais, estilísticos e temáticos que a expressão arte afro-brasileira pode ensejar. Sem levar em conta a autoria negra como um critério definidor, diversos críticos e curadores consagraram Mário Cravo Jr., Hansen Bahia (1915-1978), Carybé (1911-1997), Djanira da Mota e Silva (1914-1979), Mário Cravo Neto (1947-2009) e Pierre Verger (1902-1996) como alguns dos nomes da área, mesmo não sendo afro-brasileiros. Quase todos se situavam, não por coincidência, num contexto baiano, de referência a expressões culturais daquele estado tido como uma espécie de “Roma Negra” do país. A identificação de suas obras como pertencentes a uma área artística especificamente afro-brasileira, entretanto, é empreendimento externo, feito possivelmente à revelia de alguns.
Por outro lado, foram poucos os artistas negros que reivindicaram em vida tal designação; no geral, o faziam a partir do conteúdo de suas obras, mais do que propriamente pelo critério único da origem. Mestre Didi (1917-2013), que nomeava sua obra como “arte religiosa afro-brasileira”, e Abdias Nascimento (1914-2011), que identificava sua produção plástica como “arte negra”, são exemplos tão importantes quanto minoritários. Também o pintor Wilson Tibério, ao diferenciar “artista negro” de “negro artista”, forneceu uma definição própria de arte afro-brasileira. Em seus termos:
O preto que se dedica a uma arte pode ser sempre um negro artista e não se tornar nunca um artista negro. Artista negro como eu entendo, isto é, o negro que coloca a sua arte a serviço de sua raça, que procura motivos negros para sua produção artística e que tem uma sensibilidade especial para tudo que recorda essa África gloriosa que sempre revejo nas litanias dos “candomblés” baianos.20
A situação hoje é diversa: abraçada (com dissensos) pelo mundo da arte e da militância negra, a expressão vem sendo cada vez mais requisitada, utilizada e contestada por artistas, críticos, curadores e marchands, ampliando seus espaços de circulação. Vem sendo especialmente atribuída à produção contemporânea de artistas negros brasileiros que têm reivindicado uma arte mais engajada e assumidamente atuante. Discussões sobre direitos civis, identidade negra, combate às desigualdades racializadas de renda e de acesso a bens e serviços, direito à memória e à diversidade têm se avolumado na agenda política do país, especialmente com a diversificação das pautas de reivindicação e atuação do movimento negro nas últimas três décadas.21 No terreno das artes, as discussões têm se organizado em ao menos dois eixos centrais de reivindicação: por um lado, uma releitura crítica dos modos de representação de corpos negros na cultura visual brasileira, marcada historicamente por imagens de sevícia, trabalho e sexualização;22 e por outro lado, a reversão das políticas de branqueamento e de anonimato que atingem variados artistas e personagens afrodescendentes.
A busca por sinais de ascendência africana nas obras, tendência que marcou boa parte dos estudos da área desde fins do século 19, vem se deslocando no tempo presente para o enfoque na ascendência africana dos artistas, trazendo novas questões ao debate crítico e ao universo da arte contemporânea. Afinal, fazem parte do acervo da maioria dos grandes museus de arte brasileira obras em que se vê negros, ou elementos do que se entende genericamente por cultura negra, tematizados nas telas. Mas e quanto a autores negros? Qual sua presença na composição desses acervos? Em poucas palavras: para além da representação, qual o espaço para a representatividade dos artistas negros nas instituições e estudos de arte brasileira? Como curadores, artistas e exposições têm se posicionado sobre o tema?
O dito e os não ditos em exposições de arte afro-brasileira
Exposições enunciam histórias, traduzem narrativas a partir do arranjo de peças e imagens num dado espaço, (re)criando discursos a partir do que expõem, bem como do que ocultam. São acontecimentos de vida curta, impermanentes, cujos efeitos, entretanto, podem se prolongar para além de sua realização imediata. Sabemos também que exposições e museus, com seus critérios de seleção, são não somente espaços de exibição de arte, mas criadores de discursos sobre ela e fontes poderosas no estabelecimento de nomes, obras e estilos característicos de certo tipo de produção e no mercado de arte. No caso do nosso tema, eles terão papel fundamental na consolidação de modos de conceber e expor peças de arte afro-brasileira.
Paralelamente ao acúmulo crítico e teórico dos autores que viemos discutindo até aqui, ou as obras e artistas icônicos que em geral definem características prosódicas, temáticas e materiais de uma determinada escola ou estilo artístico, uma possível história do que passou a ser entendido como arte afro-brasileira se fez e faz, acreditamos, nas exposições e museus voltados a esse tipo de produção.
Nos últimos trinta anos, uma série de mostras de arte afro-brasileira vem sendo montadas no país23 (e também, em menor número, no exterior), em espaços outros para além dos já referenciais Museu Afro Brasileiro (Salvador) e Museu Afro Brasil (São Paulo). O crescente interesse pela área também se faz revelar na profusão de debates e cursos24 organizados recentemente sobre a questão. Se, como vimos, são muitos os modos de conceituar as artes plásticas afro-brasileiras, igualmente diversas têm sido as maneiras de expô-las. Com estratégias nem sempre concordantes, ainda que inspiradas em referenciais comuns.
Tal datação em três décadas não é fortuita. Com efeito, 1988 foi dessas datas infrequentes na história do Brasil, ao menos no que tange ao volume de discussões e debates em torno do papel da África na arte e “cultura brasileira” — com as aspas que tal expressão necessariamente enseja. Capitaneados pelo mote dos cem anos da abolição jurídica da escravatura no país, diversos eventos foram realizados Brasil afora, boa parte promovida pelas agências governamentais brasileiras, mas não só. Por outro lado, esse foi também um ano de forte denúncia da “farsa da abolição” pelo movimento negro que, ensejado pela data redonda, se reorganizava em novas frentes de ação e militância. Marchas, debates e protestos foram convocados, colocando na agenda política de discussões daquele ano simbólico os temas indesejáveis, de que as comemorações oficias buscavam desviar.
Foi no contexto desses eventos, comemorações e dilemas que se organizou a emblemática exposição A mão afro-brasileira (1988), mostra que viria a se tornar determinante para nosso campo de investigação. Ao lançar pela primeira vez no país uma mostra extensa composta apenas por obras de artistas negros, os curadores Emanoel Araujo e Carlos Eugênio Marcondes Moura forneciam um fôlego renovado ao debate sobre arte afro-brasileira no país. “Não existiria hoje uma arte legitimamente brasileira sem a criativa e poderosa influência do negro”, explicou Araujo à época.25 A série de exposições posteriores de arte ou artistas afro-brasileiros que dela, de alguma forma, se derivaram, ratifica seu caráter inaugural.
A referência à figura de Emanoel Araujo quando se trata de arte afro-brasileira é mesmo inescapável. Curador de um conjunto numeroso de exposições sobre o tema, o artista santo-amarense foi responsável por uma verdadeira retomada da questão, após um período de relativa hibernação. Suas mostras foram redefinindo o sentido do termo, de modo a se tornarem incontornáveis para novos interessados, artistas e estudiosos. Elas culminariam na criação do Museu Afro Brasil (MAB), em 2004, num processo que durou cerca de vinte anos de pesquisa, formação de uma grande coleção particular (que se converteria, em grande medida, no próprio acervo do MAB) e negociações políticas.
É certo que importantes exposições ao redor do tema afro-brasileiro foram organizadas antes de Araujo. Figuram entre os exemplos as mostras organizadas por Lina Bo Bardi nos anos 1950-60, compostas por um amplo conjunto de peças de arte afro-brasileiras. Trata-se de exposições como Bahia no Ibirapuera (cocuradoria de Lina Bo Bardi e Martins Gonçalves, realizada paralelamente à 5ª Bienal de São Paulo, em 1959); Mostra de escultura afro-brasileira e as individuais de Emanoel Araujo, João Alves, Agostinho Batista Freitas, Agnaldo Manuel dos Santos e Carrancas do Rio São Francisco, com obras do mestre Francisco Biquiba (todas realizadas ao longo do ano de 1961 no MAM-BA); Nordeste (Solar do Unhão, Salvador, 1963) e A mão do povo brasileiro (Museu de Arte de São Paulo, 1968).
Algumas das obras, temas e autores selecionados por Lina Bo Bardi vão adentrar o espaço do museu pela primeira vez a partir de suas exposições, ganhando relevância com a recorrência em que nelas aparecem. São referências como os ex-votos nordestinos, as carrancas e cabeças de proa dos barcos do rio São Francisco, objetos do candomblé e vestimentas dos orixás. Peças que viriam, décadas depois, a figurar em diversas exposições e museus afins, como a própria A mão afro-brasileira e os museus Afro-Brasileiro e Afro Brasil. Esse impulso criativo, entretanto, seria abalado pelos eventos políticos de abril de 1964. Com o golpe militar daquele ano, a trajetória da curadora e suas linhas de pesquisa e exposição foram duramente alteradas. A montagem da mostra Nordeste em Roma (Itália), por exemplo, foi censurada pelo governo brasileiro, que viu na exibição daquelas peças um caráter subversivo e contrário à imagem que o país almejava projetar de si mesmo. Sinais de um racismo estrutural que há tempos permeia as instituições políticas brasileiras.
Também as iniciativas de Abdias Nascimento, na década de 1950, são dignas de nota e referência para a constituição do campo expositivo e conceitual da arte afro-brasileira. Artista plástico, poeta, ator, dramaturgo, professor, escritor e político, Nascimento foi um homem de muitas facetas e ocupações. Nome importante da história dos movimentos negros no Brasil, foi ele também o primeiro intelectual a articular publicamente o tema da arte afro-brasileira como ferramenta político-artística de militância antirracista: “Arte negra é precisamente a prática da libertação negra — reflexão e ação, ação e reflexão — em todos os níveis e instantes da existência humana”,26 defendia. É nesse espírito que foi criado o Museu de Arte Negra (MAN) em 1950, primeira iniciativa museológica do país “destinada à promoção da arte do negro — e da arte de outros povos influenciados por ele — […] como um processo de integração étnica e estética”.27
O projeto, porém, encontrou seguidas barreiras para a sua realização, nunca chegando o museu ter uma sede própria. Os dezoito anos que separaram a concepção do MAN da primeira exposição de seu acervo — uma mostra organizada em 1968 nas dependências do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, então sob a direção de Ricardo Cravo Albin — são sintomáticos da dificuldade em se criar, naquele contexto de repressão política e social, um espaço destinado à arte afro-brasileira.
Outro projeto de museu voltado ao tema afro-brasileiro só viria a lograr visibilidade e realização no período de distensão do regime. Fundado em 1974, o Museu Afro-Brasileiro foi fruto de uma cooperação inédita entre o Centro de Estudos Afro-Orientais, o Ministério das Relações Exteriores, a Universidade Federal da Bahia, Embaixadas de países africanos, o Governo do Estado da Bahia e a Prefeitura de Salvador. O momento era oportuno e reunia uma série de condicionantes distintos daqueles enfrentados por Abdias Nascimento quase trinta anos antes. Mas a instituição enfrentou dificuldades assemelhadas. Mais de oito anos separaram sua fundação e a efetivação de sua abertura, marcados por preconceitos de toda ordem e disputas acirradas. A começar pelo local de sua sede, o prédio da antiga Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus. Por conta das altercações com os dirigentes da classe médica baiana, contrários à instalação do Mafro no “Templo da Medicina”, o plano inicial do museu, elaborado por Pierre Verger — um projeto ousado, prevendo a ocupação da totalidade do prédio, um acervo de cinco mil peças de diferentes estilos e sociedades do continente africano e peças afro-brasileiras de acervos de todo o país —, foi reduzido de modo a ocupar apenas 10% do espaço, tendo por consequência uma brusca redução do acervo e sua própria visibilidade.
Esses exemplos, claro está, não encerram nem poderiam esgotar a totalidade de mostras e museus de arte afro-brasileira que antecederam as primeiras iniciativas de Emanoel Araujo na área. O histórico de disputas que atravessam essas experiências, entretanto, deixa transparecer o ineditismo e a importância da mostra por ele organizada em 1988.
Em termos sucintos, A mão afro-brasileira tinha por enfoque tomar a autoria negra como guia expositivo. Tratava-se de “exibir como negro quem negro foi”, como sintetizou o historiador Joel Rufino Santos em seu prefácio à primeira edição de A mão afro-brasileira — significado da contribuição artística e histórica,28 livro que apresenta a pesquisa iconográfica e documental que deu origem à exposição homônima. Espécie de inventário que mapeia e registra artistas afro-brasileiros do século 18 ao 20 nas diversas áreas da arte — arquitetura, música, literatura, teatro, dança e, principalmente, artes plásticas —, livro e exposição reuniram nomes e obras de arte de variadas procedências, estilos e épocas. “A pesquisa varreu arquivos, bibliotecas, publicações, à procura de personagens escondidos pela poeira de histórias mal contadas ou pelo ‘branqueamento’ comum a todo personagem que ascende socialmente no Brasil”, explicou o curador.30
Além dos objetos de arte feitos por mãos afro-brasileiras, o que ali se expunha eram também seus produtores, realçando a “participação do homem negro e mestiço na formação da cultura nacional”,31 fossem suas obras alusivas à África ou não, quer nos signos ou na forma. Estava lançado um programa expositivo duradouro de visibilidade e inclusão de artistas negros na pálida história de exposições no Brasil, afinado a um movimento internacional, à época ainda incipiente, de revisão dos modos marcadamente masculinos, europeizados e coloniais de se contar a história — inclusive, e talvez especialmente, a da arte.
A mostra reuniu obras de arte sacra, barroca, acadêmica, “popular”, moderna e contemporânea. Realizadas em códigos ocidentais de arte (como Mestre Valentim e Arthur Timótheo da Costa), em cânones africanos retrabalhados no Brasil (Agnaldo Manuel dos Santos e arte religiosa afro-brasileira), ou ainda em diferentes arranjos de tradições e estilos (Rubem Valentim e Rosana Paulino), as obras foram distribuídas em quatro núcleos: 1. O barroco e o rococó; 2. O século XIX — A academia e os acadêmicos; 3. A herança africana e as artes de origem popular; e 4. Arte contemporânea.
A divisão, que demarcava uma espécie de tratado ampliado da história da autoria negra na arte brasileira, buscava mapear e resgatar a contribuição artística de mãos afro-brasileiras para a construção do país. Tal estratégia seria retomada e ampliada nas mostras subsequentes de Araujo. São exemplos as exposições Vozes da diáspora, montada na Pinacoteca de São Paulo de 26 de novembro de 1992 a 20 de janeiro de 1993; Herdeiros da noite, mostra comemorativa dos trezentos anos da morte de Zumbi de Palmares, também montada na Pinacoteca de São Paulo, de 3 de dezembro de 1994 a 15 de janeiro de 1995; Arte e religiosidade no Brasil — Heranças africanas, organizada no pavilhão Manoel da Nóbrega, de 8 de novembro a 7 de dezembro de 1997; Negras memórias, memórias de negros — O imaginário luso-afro-brasileiro e a herança da escravidão, montada no Centro Cultural da sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, entre 25 de fevereiro e 29 de junho de 2003; e Negro de corpo e alma, organizada no interior da megaexposição Mostra do Redescobrimento, no ano 2000.
Esta última, dada sua dimensão superlativa e os debates públicos gerados à época, pede comentário mais detido. Nas palavras de Araujo:
Esta exposição encerra um conjunto de aproximações que vimos realizando nestes últimos quinze anos sobre o negro no Brasil. O que assim se propõe é uma grande discussão sobre as relações raciais em nosso país, no sentido de detectar os padrões que determinaram, ao longo dessa história, a convivência entre brancos e negros no Brasil.31
A “grande discussão” se fez valer também de grande ambição e de um grande espaço expositivo. Concentrando o maior número de peças expostas entre os módulos da Mostra do redescobrimento e, em consequência, o catálogo mais volumoso da exposição, Negro de corpo e alma reuniu obras e artistas díspares, mas articulados em torno de um tema comum. E também amplo: telas consagradas, objetos do cotidiano, instrumentos musicais e litúrgicos, aquarelas de viajantes europeus, joias, adornos, recortes de jornais, caricaturas, fotógrafos do século 19 ao século 20, artistas do século 18 aos contemporâneos, negros ou não, foram cotejados de modo a tratar das representações dos negros na arte. “Tendo como proposta trabalhar com as formas de representação do negro no Brasil”, explicou Araujo, “esta exposição pretende[u] assim, antes de mais nada, desconstruir um imaginário que […] atuou de maneira poderosa na criação dos estereótipos nos quais se alicerça o discurso do preconceito que até hoje marca a identificação do negro em nosso país.”32
Tal aproximação entre artistas com referenciais diversos, organizados num percurso que buscava defender uma ampla tese sobre relações raciais e processos de nacionalização de símbolos culturais de origem negra, evidentemente partia de pressupostos e almejava provocar efeitos distintos daqueles que deram fôlego à proposta do módulo Arte afro-brasileira, também organizado no interior da Mostra do redescobrimento.
Curado por Catherine Vanderhaeghe, François Neyt (para a seção de arte africana), Kabengele Munanga e Marta Heloísa Leuba Salum (para a seção de arte afro-brasileira), o módulo Arte afro-brasileira foi instalado no último andar do Pavilhão da Bienal. “Mais do que nunca desponta a questão sobre a unidade e a diversidade da arte africana em sua diáspora. Na tentativa de responder a essa indagação, constituiu-se o módulo afro-brasileiro na Mostra do redescobrimento”, explicou Nelson Aguilar, curador geral da Mostra.33
Como numa rosácea, a expografia do módulo dispunha obras de arte tradicional africana no núcleo dessa produção, seguidas por peças de arte afro-brasileira consideradas stricto sensu (de uso afro-religioso e de origem “popular”) no raio do primeiro círculo e, na esfera mais ampliada, artistas influenciados por essa temática, com uma arte afro-brasileira considerada em seu sentido lato. Nas palavras de Munanga:
Partindo de uma visão mais ampla, podemos imaginar e representar a arte afro-brasileira como um sistema fluido e aberto, que tem um centro, uma zona mediana ou intermediária e uma periferia. No centro do sistema situamos as origens africanas desta arte […]. Na zona intermediária do sistema, […] situamos o nascimento da arte afro-brasileira, uma arte que, além das características africanas […], integrou novos elementos e características devido aos contatos estabelecidos no Novo Mundo com outras culturas. […] Aqui, salvo algumas exceções, nem sempre a matriz africana da obra e a origem étnica do artista se confundem. Na periferia do sistema, situamos obras e artistas que, sem reunir todos os atributos essenciais das artes africanas tradicionais, receberam algumas de suas influências, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista temático, iconográfico e simbólico.34
“Continuidade”, “zonas intermediárias”, religião como eixo central e preponderância dos critérios iconográfico e simbólico fomentavam os argumentos conceituais do módulo, ecoando os termos propostos por Cunha.35 Defendendo uma concepção alargada de arte afro-brasileira, sem tomar autoria, forma ou conteúdo como critérios exclusivos ou excludentes, Salum apostou numa formulação que amalgamava todos eles. Nas palavras da curadora:
a “arte afro-brasileira” é antes de mais nada contemporânea: ganhou nome neste século 20 e passou a ser reconhecida como qualquer manifestação plástica e visual que retome, de um lado, a estética e a religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do negro no Brasil. Trata-se da cultura material dos segmentos negros no Brasil, das obras representativas da cultura popular de origem africana, das releituras da arte africana tradicional.36
Em formulação similar, Munanga defendeu que
embora saibamos que qualquer tentativa de definição seria sempre provisória, tendo em vista o caráter dinâmico de qualquer arte, concordamos, contudo, que alguns postulados básicos têm de ser colocados para que esta arte, que constitui um grande capítulo à parte dentro da arte brasileira, possa merecer e conservar seu atributo e qualitativo de “afro”. Entre eles podemos mencionar a forma ou o estilo; as cores e seu simbolismo; a temática; a iconografia e as fontes de inspiração, todos harmoniosamente articulados através do domínio de uma técnica capaz de dar corpo e existência a uma obra de arte autêntica. […] Para que uma obra de arte possa ter uma identidade afro-brasileira, penso que não deveria reunir concomitantemente todos os postulados e características acima referidos. Basta que um ou outro entre os mais relevantes (forma e tema) seja integrado com regularidade no conjunto da obra e que lhe confira uma verdadeira autenticidade. […] Excluir uma ou outra deste módulo, em nome de uma arte afro-brasileira autêntica que não seríamos capazes de delimitar nitidamente, uma obra que, além da origem étnica do artista, integraria no mesmo corpo todas as características acima evocadas, seria ignorar as ambiguidades da sociedade brasileira, sociedade na qual as cercas das identidades vacilam, os deuses se tocam, os sangues se misturam, na qual as identidades étnicas, embora defensáveis, nada têm a ver com as leis da “pureza”.37
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*ensaio publicado originalmente em virtude da exposição Histórias Afro- Atlânticas in PEDROSA, A.; CARNEIRO, A.; MESQUITA, A. Histórias Afro-Atlânticas. Volume 2. Antologia. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake; Masp, 2018. Com a colaboração de Artur Santoro, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz, Tomás Toledo.
Hélio Menezes é graduado em relações internacionais e ciências sociais pela universidade de São Paulo. Mestre e doutorando em antropologia social pela mesma universidade, atua como curador independente e pesquisador do Núcleo dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS-USP) e do Núcleo Etno-história (FFLCH-USP). Foi também um dos curadores da exposição Histórias Afro-Atlânticas (MASP e Instituto Tomie Ohtake, 2018).