Fragmentos sobre Munari: Arte, Desenho, Design

Por Luis Pérez-Oramas

Personalidade multifacetada, na qual a arte do século XX se manifesta em todas as suas dimensões – mentais e teóricas, práticas e utilitárias, didáticas e sociais –, Bruno Munari surge diante de nós hoje como uma figura essencial para entender o sentido contemporâneo das fronteiras que se diluem permanentemente entre as disciplinas artísticas.

A obra de Munari, desde seu enraizamento original nas vanguardas modernas – no caso, o futurismo – até sua monumental contribuição no campo do design ou da educação, revela uma forte compreensão da porosidade que jaz nas potências artísticas – na potência do objeto para devir ideia e vice-versa – e, alternadamente, aparece como uma empresa de reinserção da arte em suas finalidades: em sua capacidade para funcionar como mediação simbólica no corpo coletivo, Munari contribuiu para reinventar uma finalidade para a arte.

Haveria então que começar recordando como, na idade moderna, a arte veio a ser um mito aéreo e sem substância, uma ideia pura, uma alucinação de obras-primas, metade sonho romântico, metade alienação especulativa: tendo-se libertado do servilismo de suas funções artesanais, tendo-se tornado forma nobre da inteligência durante o Renascimento até o século XVII, veio a transformar-se depois, à luz das especulações teóricas do período romântico, em uma simples categoria da inteligência. O resultado disso, analisado brilhantemente por muitos teóricos e recentemente por Hans Belting, foi ao mesmo tempo um impulso genial para a obra-prima (necessariamente inacabada ou ficcionalizada) e uma disjunção (da arte) com relação ao universo cotidiano das existências humanas, uma perda voluntária de finalidade (a finalidade sem fim “kantiana”, por exemplo): uma subordinação desincorporadora da arte com relação à filosofia, que veio a se tornar sua matriz teórica.

Uma boa parte, fundamental, do legado moderno, ao mesmo tempo herdeiro e crítico dessa situação de compromisso, consistiu em reinserir a arte, despojando-a de suas ficções burguesas e espirituais, no mundo da produção material de bens cotidianos. O exemplo mais eloquente desse processo foi, evidentemente, o construtivismo russo, mas em sua sombra também se identificam todas as formas de elaboração e desenvolvimento das linguagens concretas, da Bauhaus à Escola de Ulm, do Neoplasticismo à Arte Madí, sem esquecer o Politécnico de Milão, onde Bruno Munari lecionara...

Mas mesmo essas empresas que viram a arte adequar-se à ideologia produtiva correspondiam à subordinação (como categoria) aos postulados da filosofia – nesse caso, uma filosofia que anunciava apocalipticamente sua própria morte e sua transfiguração em pura força transformadora do mundo. Com isso, esse despojamento das ficções românticas da arte, ocorrido com relativo êxito durante a primeira metade do século XX, não estava isento das mesmas contradições que pretendia resolver graças a seu “produtivismo”, nem mesmo do não menos problemático impulso messiânico que marcou, mais exatamente de forma negativa, as vanguardas modernas.

A inteligência de Munari foi, por ser monumental, justamente antimessiânica: nela se sobressai a fidelidade a uma “modéstia artesanal” que não posso classificar senão como “medieval”, no melhor sentido do termo. Plenamente inscrito no repertório moderno, com suas “máquinas inúteis” (que nos recordam a finalidade sem fim da arte como realidade emancipada do servilismo utilitário) e suas tentativas de nos fazer “ver o ar”, Munari não cessou também de tratar e de pensar a potência factiva que jaz na atividade artística, isto é, a inteligência prática do fazer e do produzir, em termos funcionais: não só porque uma parte enorme de sua obra se traduz em uma incessante produção de design, mas também, mais específica e lucidamente, porque ele nunca esqueceu que a arte é, no fim das contas, um encontro e um objeto, e que somente adquire sentido quando se insere em uma relação de mediação transitiva entre as pessoas. Munari foi por isso o menos fantasmagórico dos gênios modernos, e, dedicado à inteligência produtiva, foi também o menos produtivista dos designers modernos.

Interessa-me, pois, sugerir que sua grandeza reside na capacidade de sua obra para nos recordar algo que havia sido esquecido: algo elementar, por assim dizer, ou fundador e organizador, de cuja memória depende a possibilidade de reencontrar o caminho perdido do sentido. Frederic Jameson, o grande filósofo marxista, ressaltou a recorrência surpreendente, nas empresas modernas, dessa lógica de recuperação mnemônica: desde o “esquecimento do ser” que determina todo o empenho heideggeriano até o “il y a” fenomenológico que, na bela prosa de Lévinas, vem nos recordar que, antes do nome do mundo, “há” mundo; desde o retorno da natureza puramente factiva da arte no construtivismo até a busca de uma “casa adâmica” pelos arquitetos modernos, desde a essencialidade primeira da palavra em Roman Jakobson ou Vicente Huidobro até a sobrevivência da agonia esquizofrênica do homem clássico no homem primitivo segundo Warburg, sem esquecer a contribuição fundamental de Freud para o entendimento do humano em termos de centralidade da memória, involuntária ou reprimida.

Qual seria então o esquecimento em torno do qual gira a obra de Munari? Talvez, dito sem meias palavras: que não são os objetos que determinam as funções, mas sim são as funções que determinam os objetos. A partir disso, sua obra não poderia senão se manifestar em um processo rigoroso, ao mesmo tempo de funcionalismo e de iconoclastia: descobrindo campos funcionais – mais do que campos objetais – e desmontando, incessantemente, a primazia iconográfica das formas ao diluí-las, felizmente, no descobrimento desses novos continentes funcionais. Isso, que pode ser dito rapidamente, é enormemente complexo: de Bruno Munari reivindicaremos a permanente lembrança de que os gêneros são instáveis, que as categorias são ficcionais, que o que define o mundo da arte – já totalmente despojado das ilusões românticas – é sua constante passagem, seu constante trânsito de um território funcional a outro.

A presença nesta mostra da escultura emblemática de Munari intitulada Côncavo-Convexo (1946) é, nesse sentido, um acontecimento feliz: não só porque essa peça é central na história moderna (história que, no Brasil, tem uma importância transcendental e cuja relevância quisemos destacar ao apresentar a obra de Munari junto à célebre Unidade tripartida, de Max Bill, e a um Trepante, de Lygia Clark) do problema topológico do espaço – da fita de Moebius, na qual se relativizam as fronteiras entre o interno e o externo, definindo-se o espaço mais exatamente como uma equação de transformações e não como um sistema de fechamentos –, mas também porque Côncavo-Convexo é a figura emblemática dessa dimensão de passagem que, para mim, faz da obra de Munari um legado capital para nossa contemporaneidade: assim se anuncia a diluição do objeto na fluidez de suas funções.

Fonte permanente de razão, sua obra – repleta de ludismo e bom humor, e humanista no sentido menos essencial do termo – confirma as palavras de Aristóteles, quando dizia, em sua Ética, que “aquele que usa é que tem a razão”. Em outras palavras: que nossos julgamentos não servirão se estiverem baseados em categorias a priori que monumentalizam ou sublimam o objeto; que só terão sentido se estiverem baseados, e fundamentados, na percepção de suas passagens pelos campos funcionais de nossa experiência.

Arte, desenho, design marca, então, uma narrativa. Assim como em plena ilusão humanística, quando a arte iniciava seu longo caminho de alienação ideológica, os artistas do Renascimento relacionaram as partes estruturais do discurso segundo a retórica antiga – idea, dispositio, elocutio –, transformando-as em desegno, compositio, colorito, igualmente Bruno Munari haverá se ocupado, no final dessa história, em retornar à Arte para desmontar sua pureza ideal, sua autonomia, ampliando o desenho à escala do mundo, para concluir, rodeado de crianças, e como quem retorna à douta ignorância da infância, no mistério das coisas constantemente desvelado e revelado pelo impulso criativo do design.

 

Tradução de Gênese Andrade