Espaço para não esquecer

Por Jordana Braz 

[...] Não é tarefa fácil, visto que, em muitas situações, teremos de lutar contra a história oficial, os meios de comunicação, a educação familiar e religiosa. Precisamos estar bem atentos para não difundirmos visões estereotipadas e preconceituosas não só em relação ao grupo negro, mas também aos demais grupos socialmente discriminados. É imprescindível a realização de um trabalho preventivo e educativo. Um posicionamento claro diante dos desafios e vontade fazem a diferença.¹

 

Eliane Cavalleiro

 

 

Histórias Afro-Atlânticas foi considerada a melhor exposição de 2018, segundo o jornal The New York Times. Tal dado é importante como registro de significância para a crítica e o público. E para as pessoas que trabalharam na exposição, qual a importância desta mostra em suas vidas? Essa questão possui diversas respostas, afinal, uma exposição de arte mobiliza diferentes áreas de trabalho e centenas de profissionais. Da minha parte, atuando como educadora do Instituto Tomie Ohtake desde 2017, eu descreveria usando o chavão “foi um divisor de águas”, mas na realidade Histórias Afro-Atlânticas achegou águas em mim.

Enquanto educadora, conteúdos e obras são estudadas com antecedência às exposições. Pesquisas sobre história da arte e seus contextos históricos, artistas e leitura dos textos curatoriais são aspectos constantes no cotidiano da equipe educativa. No início de 2018, eu li o título da exposição pela primeira vez e logo percebi que os estudos agregariam referências históricas, antropológicas, sociais e pessoais.

Ao visualizar as camadas transdisciplinares pela lista de obras, propus uma formação com meus colegas de equipe sobre relações raciais nas Américas. A atividade consistiu na exibição do documentário dirigido pelo diretor haitiano Raoul Peck “Eu não sou seu Negro”, sobre a obra inacabada do escritor James Baldwin. E em seguida, realizei uma apresentação sobre os estereótipos racistas propagados por séculos pela mídia brasileira e norte-americana.² A formação coletiva foi importante, percebemos semelhanças e diferenças entre Brasil e E.U.A por meio das narrativas de intelectuais negros. A formação educativa como estudo para exposição teve o intuito de ampliar o diálogo pela mediação entre arte, público e sociedade, mas atuou como autoformação para os educadores em suas práticas pessoais.

Participar de uma exposição com a presença majoritária de artistas negros e com imagens referentes à diáspora africana trouxe-me uma sensação de pertencimento inédita! As narrativas apresentadas pela maioria dos artistas eram próximas das minhas experiências de vida. A ancestralidade como vivência atemporal e a presença da oralidade em linguagens artísticas como a costura são apenas exemplos emblemáticos, pois acolheram minhas memórias e práticas familiares. Ao mesmo tempo, para a maioria das pessoas que atuaram nessa exposição era nítida a sensação de desconforto por não estarem acostumados com a presença de uma história da arte afrodiaspórica e africana.

Durante as visitas mediadas na exposição, o desconforto também era perceptível por parte do público. Na sala expositiva do núcleo Ativismos e Resistências, estava a pintura a óleo intitulada Space to forget (Espaço para Esquecer) do artista norte-americano Titus Kaphar³ , que remete às relações raciais associadas ao trabalho doméstico. A obra permitia a reflexão de traços coloniais perpetuados no contemporâneo. As reações do público eram materializadas por lágrimas, às vezes por uma indignação visivelmente silenciosa ou por confissões pessoais curtas como “minha mãe era confundida em ser minha babá apenas por eu ter o tom de pele mais claro do que ela”.

Histórias Afro-Atlânticas achegou águas não apenas em minha história de vida, mas creio que para cada pessoa que esteve no Instituto Tomie Ohtake e no MASP neste período. O interesse pelo tema da exposição, assim como para a programação desenvolvida durante sua exibição, atraiu muitas pessoas que visitaram ambas as instituições pela primeira vez. As atividades que desenvolvi para a programação, a Visita no Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha e o curso As mulheres negras em imagens e narrativas afro-atlânticas acolheram participantes que não conheciam o Instituto Tomie Ohtake. As atividades mencionadas surgiram do meu anseio por mais visibilidade da cultura afrodiaspórica e africana, a exemplo do desconhecimento por parte da população brasileira sobre a importância do dia 25 de julho4Desde o fim da exposição até hoje, continuo com o mesmo anseio em desenvolver ações como o projeto Experiências Negras5 , criado em novembro de 2018 em parceria com a curadora e pesquisadora Luciara Ribeiro.

Como pessoa preta e educadora em uma instituição cultural, acredito que ações  antirracistas são necessárias, pois ampliam a diversidade de narrativas que a história oficial invisibiliza por séculos, permitindo que a sociedade, ao olhar para seu passado, reconstrua o futuro. O compromisso com a luta antirracista perpassa por decisões como, por exemplo, a escolha de referências bibliográficas decoloniais para pesquisas e desenvolvimento de atividades educativas, a inserção de artistas não brancos em exposições que não sejam sobre questões raciais e a promoção de vagas de trabalho que diversifique áreas historicamente ocupadas por pessoas brancas. Nas relações pessoais cada um de nós pode exercer este compromisso em ações cotidianas, como conversar sobre privilégios sociais e sua relação com violências raciais com amigos e familiares. Todos nós temos uma história afro-atlântica para contar, inseri-la em nossa vida contemporânea é acompanhar a linha contínua que esta narrativa traçou e como ela ainda nos atinge hoje em dia.



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1 CAVALLEIRO, Eliane. Educação antirracista: compromisso indispensável para um mundo melhor. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001.

2 Para saber sobre o tema, recomendo o artigo “Reconhecendo estereótipos racistas na mídia norte-americana” da historiadora Suzane Jardim. https://medium.com/@suzanejardim/alguns-estere%C3%B3tipos-racistas-internacionais-c7c7bfe3dbf6

3 Titus Kaphar (1974) é um artista norte-americano cuja obra examina a história da representação na arte por uma uma perspectiva afro-americanaEm 2014, sua obra Mais uma luta pela lembrança (Yet Another Fight for Remembrance) foi capa da Revista Time na edição sobre a Revolta de Ferguson. E em junho de 2020, a revista publicou outra obra intitulada Cores Análogas (Analogous Colors), uma imagem de uma mãe negra segurando a silhueta de uma criança. A edição homenageia George Floyd e a luta da população negra contra opressão. Acompanhando a imagem, Kaphar escreveu um poema intitulado " Não posso vender esta pintura para você ", no qual questiona: "O preto e a perda / cores análogas na América?". Para visualizar a imagem e obter mais informações, acesse:  https://time.com/5847487/george-floyd-time-cover-titus-kaphar/    

4 Para conhecer a data, recomendo o artigo de Fabiana Yuka “Hoje na História, 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha”: https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-25-de-julho-dia-internacional-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha/

5O projeto teve origem na mesa de debate O corpo negro na prática educativa de museus e instituições culturais como parte da programação do Mês da Consciência Negra, em novembro de 2018. Para conhecer todas as edições do projeto Experiências Negras, confira: https://www.institutotomieohtake.org.br/participe/interna/experiencias-negras