NELSON LEIRNER ou AS REGRAS DOS JOGOS

Por Agnaldo Farias*

Esta exposição de trabalhos recentes produzidos por Nelson Leirner nasceu do desejo do Setor Educativo do Instituto Tomie Ohtake de apresentar ao público pouco afeito a produção artística contemporânea, com especial atenção aos professores da rede municipal de ensino, responsável pela formação de nossas crianças, a vasta gama de suportes da qual ela se serve: do desenho, cuja origem remonta à alvorada da raça humana e que, no entanto, ainda hoje se revela não apenas vivo, como verdadeiramente insubstituível, presente que está na gênese das nossas ações mais variadas, até a instalação, termo criado ao longo dos anos 60 na esteira dos movimentos ligados ao Minimalismo e que serve para designar obras que, ao contrário de desenhos, pinturas e esculturas tradicionais, não se pode simplesmente arranjar num espaço dado sem que sua presença física o altere significativamente. Modalidade de expressão das mais utilizadas pelos artistas contemporâneos, as instalações, como é o caso da obra “O dia em que o Corinthians foi campeão”, que protagoniza a primeira sala da exposição de Nelson Leirner, frequentemente são modificadas, quando não projetadas, em função do espaço destinado a recebê-las.

A ideia de se realizar uma grande mostra individual de Nelson Leirner ao invés de uma mostra constituída por vários artistas, tem a dupla finalidade de, em primeiro lugar, trazer ao conhecimento do público uma das obras mais densamente críticas dentre as que compõem o nosso panorama, obra que se alimenta de aspectos da vida cotidiana, das relações interpessoais mais intimistas até as que envolvem questões de ordem geopolítica, para revelá-las, sem nunca abrir mão do humor, como parte de um mesmo jogo. Em segundo lugar, porque o caráter polimórfico da obra de Nelson Leirner - desenhos, objetos, múltiplos, carimbos, outdoors, performances, happennings, instalações... – demonstra-nos que a variação quanto às formas expressivas, ao passo em que nos revela diversos ângulos de um mesmo problema, serve-nos para lembrar que em arte, como em tudo, a livre experimentação confina com a ideia de liberdade.

A estrutura adotada por este texto também merece uma explicação. Antes de apresentar a exposição propriamente dita, optou-se por comentar a carreira de Nelson Leirner, das dificuldades do nosso meio artístico em assimilar uma obra fundada na crítica e na iconoclastia, até o momento em que, depois da sua retrospectiva de 1994, a qual igualmente tive a honra de ser o curador, a sua recepção muda radicalmente, passando o artista a gozar de um merecido reconhecimento. Longe de ser uma narrativa acessória, o exame da trajetória de Nelson Leirner, com destaque às suas relações com o meio – instituições, mercado e agentes (campo em que eu, na qualidade de curador e interlocutor contumaz, me incluo) -, dará ao leitor uma notícia da real complexidade do campo da arte; aspectos que o senso comum, por especado que está numa noção anacrônica da arte, imagina como questões totalmente exteriores. Pois ao contrário, tal como nos revela Nelson com sua verve peculiar e através de sua própria produção, a arte, como o conjunto das atividades humanas, não pode ser pensada fora dos quadros da história.

  

NELSON LEIRNER ou AS REGRAS DOS JOGOS

PRIMEIRO TEMPO

Dez anos se passaram desde a realização da primeira retrospectiva dedicada à obra de Nelson Leirner. Um projeto acalentado por mim durante alguns anos e que terminou acontecendo no Paço das Artes, graças ao apoio de Ricardo Ohtake, então Secretário de Estado da Cultura, que acreditou no projeto a ponto de programá-lo como mostra de inauguração da sede do Paço das Artes na Cidade Universitária, onde a instituição funciona até hoje, além de haver se empenhado para que as obras fossem concluídas e que a exposição acontecesse paralelamente à 22a Bienal de São Paulo, aproveitando o grande público que previsivelmente acorreu à cidade. A exposição foi, ouso dizer, um sucesso. Amigos, colegas artistas, especialmente os mais jovens, aqueles que na Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, haviam passado pelo exigente e instigante crivo do professor Nelson Leirner, procuravam-me para comentar a importância daquele acontecimento para o reconhecimento de uma obra que todos julgavam da maior importância, para falar da importância de Nelson para suas próprias vidas.

Não é que eu não imaginasse que isso fosse acontecer. Sempre tive consciência da importância e da qualidade da obra de Nelson Leirner. Mas o fato de haver cabido logo a mim, que havia mergulhado em práticas curatoriais pouco tempo antes (menos de quatro anos), a oportunidade de haver realizado sua retrospectiva, fez com que pensasse porque o seu reconhecimento, porque era disso que se tratava, havia tardado tanto.

Iniciada na passagem dos anos 50 para os 60, a trajetória de Nelson Leirner ganhou notoriedade já em meados daquela década, a partir de suas ações junto à Rex Gallery, da série “Homenagem a Fontana” com que foi premiado na Bienal de Tóquio, do famoso lance do porco empalhado enviado ao júri do IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal e que hoje repousa no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.1 Nelson, não se deve esquecer, após haver recusado o convite para participar da X Bienal de São Paulo, em 1969, alinhado que estava com o boicote nacional e internacional que então se fazia a instituição graças ao seu vínculo com o governo dos militares, mereceu de Pietro Maria Bardi a honra de realizar no vão livre do prédio MASP, a exposição Playground, uma das que compunham o programa de inauguração do museu.

Como então um artista do calibre de Nelson Leirner, cuja obra, como ele demonstraria pelos anos seguintes, manteve seu compromisso com a crítica, seu pouco caso e desconfiança para os ditames do mercado e do circuito artístico, podia estar como que colocado à margem, mesmo com a significativa ampliação que o meio vinha tendo desde a entrada em cena da Geração 80? Como se justificava que um artista de sua importância, responsável por uma surpreendente gama de experimentações, variando do desenho intimista feito sobre uma pequena folha de papel ou sobre uma fotografia até atingir o extremo de uma instalação, capaz, como é o caso desta exposição de agora, de desafiar o espaço arquitetônico, fosse reduzido a poucas e discretas exposições, ainda que altamente significativas do ponto de vista de sua pesquisa, tratado como um artista histórico, lembrado, no geral, pelas realizações dos anos sessenta?Onde estavam os críticos e seus outros interlocutores – se é que os havia, as instituições que o deviam prezar, o mercado que deveria cuidar de sua obra exatamente por sabê-la original e potente? Que a realização de sua retrospectiva coubesse logo a mim é algo que eu, mesmo sob algum imprevisto ataque de imodéstia, não podia deixar de acusar como uma impropriedade.

É claro que o aparente descaso de Nelson para com essas questões ligadas ao reconhecimento de sua obra, facilitavam sua aproximação de um jovem e interessado crítico que, por sua vez, tinha razões de sobra para dele se aproximar. Mas não demorou muito para que eu descobrisse que o descaso era um fenômeno de superfície, quase um mecanismo de defesa por parte de quem encarava o meio com bastante desalento. Em depoimento recente, o artista afirmaria que a partir de meados dos setenta ele efetivamente reduziu a produção, optando, talvez em função das dificuldades enfrentadas ou simplesmente por cansaço de uma situação que não se alterava, à prática do ensino de arte: “daquele momento [1975, ano que ingressou na FAAP] até 1994 foram praticamente vinte anos de isolamento”.3 Assim, por detrás de uma atitude calculadamente “blasé”, o que havia era um rigor absoluto quanto ao andamento do trabalho e uma indisposição completa contra qualquer coisa que revelasse uma concessão sua quanto à apresentação de seus trabalhos junto ao público.

 O fato de que essa extensa e complexa obra, no adiantado ano de 1994, ainda não houvesse sofrido um estudo mais aprofundado, mesmo que sob a forma de uma simples sistematização dos dados, uma cronologia de obras e exposições, era, afinal, um claro sintoma de que no Brasil, o campo de arte, acompanhando a argumentação de Pierre Bourdieu4 , ainda não havia se constituído. Não é que não contássemos com todos os elementos necessários para sua configuração, numa rápida passada de olhos, desde os anos 60, todos estavam presentes: críticos, historiadores da arte, editores, diretores de galerias, marchands, conservadores de museu, academias, salões, júris etc. Passados em revista, cumprimos todos os itens. O problema, contudo, é que eles ou bem não funcionavam, ou funcionavam mal. E para quem acha que finalmente a situação foi superada, mesmo hoje em que se comemora mais de dez anos de um extraordinário fluxo de receita no setor cultural proveniente das leis de incentivo, convém ao menos considerar, para não nos estendermos muito no assunto, a penúria dos nossos museus mais importantes.

Seja como for, no Brasil de 1994, muito mais do que no Brasil de 2004 (justiça seja feita), continuava valendo a sentença certeira com que Paulo Venâncio fechou seu sintético texto “Situações Limites”, [no Brasil] “O tema local propriamente dito é a luta pela possibilidade da arte”. 5 Prosseguindo na inesperada possibilidade de organizar uma mostra da envergadura da retrospectiva Nelson Leirner, há que se salientar que, se por um lado havia um circuito de arte destrambelhado, cheio de altos e baixos, com notórias dificuldades em se firmar e definir uma dinâmica coerente, que flutuava ao sabor de uma maré instável, expressa, por exemplo, na súbita valorização dos artistas surgidos nos anos 80 em detrimento daqueles que tinham uma trajetória mais sólida e longeva, de outro lado, dizia, havia por parte do artista um eventual interesse em manter diálogo com alguém de uma geração mais nova, a busca de uma interlocução mais fértil do que a que ele vinha tendo – ou por outra, não vinha tendo – com seus colegas de geração.

A relação do crítico/curador com o artista, dentro do quadro geral das interdependências características do campo, é capítulo dos mais interessantes e dele não pode ser descartado, sob pena de se incorrer em uma visão despropositadamente ingênua, o papel que este cumpre na atribuição de valor de um trabalho dado, valor que começa na apreciação e defesa dos predicados estéticos para ricochetear no âmbito da comercialização do trabalho. Prosseguindo no exame dessa via dupla, percebe-se que o primeiro resultado colhido pelo crítico/curador – como do marchand, do historiador de arte etc - em fazer valer seu ponto de vista acerca de um artista determinado, é o reconhecimento do campo pela qualidade de seu próprio trabalho.

O leitor deve ter em mente que o que justifica essa introdução acerca das vicissitudes enfrentadas pelo artista ao longo de sua carreira é menos o interesse por uma crônica que de resto é monotonamente comum na história da nossa arte, cuja precariedade do campo onde ela se dá, como já foi parcialmente ilustrado, é pródiga em fomentar o esquecimento e a desaparição de alguns dos nossos mais importantes patrimônios culturais. Sua razão de ser escora-se no fato de que o fenômeno relatado adquire um contorno muito especial quando acontece com um artista como Nelson Leirner, cuja singularidade da contribuição consiste, em outros aspectos dignos de nota, no modo como ele, armado de ironia, sarcasmo, iconoclastia e muito bom humor, vem, senão desde o seu início, quase, atacando intermitentemente o meio artístico e a própria posição do Brasil dentro do capitalismo, entendendo-os como aspectos distintos de um mesmo jogo.

Se ontem o artista discutiu e denunciou o servilismo e a violência da ditadura militar, as formas elaboradas quando não ostensivamente truculentas de censura e amordaçamento impostas à população, as relações orgânicas e viciadas das instituições culturais ao sistema, hoje ele continua pensando a nova ordem mundial no período pós-queda do muro, as sofisticadas estratégias de controle e infiltração das nações centrais, o fenômeno da globalização sobreposto a sobrevivência de processos produtivos arcaicos e, como não poderia deixar de ser, como se dá a inscrição da arte dentro desse processo.

A arte, assim como a vida social, lembra-nos o artista a cada momento, a cada obra sua, é um sistema que nada tem de natural, antes o contrário, que se pauta por princípios abstratos, leis tão invisíveis quanto poderosas. Mesmo que se insista em escamotear essa condição, propagando a arte como reduto da pura expressão do indivíduo, o resultado de uma inspiração cuja fonte nós, o grande público, esse imenso contingente de não-artistas, não alcançamos compreender; uma expressão do que há de mais puro no espírito humano, o reduto onde a ação humana se refugia de quaisquer obrigações utilitárias e, acima de tudo, longe do canto de sereia do mercado, entre outras banalidades pedestres que gostamos de acreditar.

Filho de artista, a escultora Felicia Leirner, a quem Nelson, na altura do centenário de seu nascimento, dedica essa exposição, com o empresário Isaí Leirner, mecenas e colecionador de artes, membro ativo do grupo que nos anos 50 e na entrada dos anos 60 conduziu o Museu de Arte Moderna de São Paulo e sua filha dileta, a Bienal Internacional de São Paulo, Nelson, como ele mesmo diz, foi empurrado para a arte, ainda que de saída não se interessasse por ela. Blague? Conversa fiada? Contrariando o senso comum que sempre espera do artista a confissão de sua genialidade, de uma vocação incontrolável, um ego exacerbado a serviço de uma inteligência idem, Nelson nunca se furtou a manifestar suas conclusões de tom pragmático acerca do meio artístico, cujos princípios ele sentiu na pele graças à “força” paterna que, a sua revelia, conseguiu-lhe, sem que a proprietária conhecesse suas pinturas, uma exposição na prestigiosa Galeria São Luiz, acompanhada por um catálogo assinado pelo importante crítico polonês, Ryzard Stanislawsky, que mais tarde assumiria a presidência da Associação Internacional de Críticos de Arte – AICA:

“A qualidade do meu trabalho não possuía a importância que lhe foi dada. Era uma pura questão de prestígio social. Tenho visão do que fazia então e sei que era realmente ruim. [...] Com a consciência do que estava acontecendo, surgiram perguntas sobre critérios de julgamento e a própria obra de arte. Tudo isso punha em xeque e em dúvida o valor das coisas. Compreendi que se pode construir um cara qualquer até sem ver seu trabalho. Era natural que começasse a soltar tudo que estava dentro de mim, logicamente num sentido de contestação. Esse foi meu começo” [...].6

Não será o caso de se inventariar aqui mais uma vez o resultado concreto dessa disposição de espírito, o que dela reverteu em termos de uma operação de desmistificação dos meios. “A partir de um determinado momento, lá por volta de 1964, eu passei a notar que as minhas experiências em pintura, até então exclusivamente guiadas por motivações estéticas, passaram a irritar as pessoas. Isso me animou e eu terminei por trocar o alvo”.7

A extensa fortuna jornalística e crítica sobre a obra de Nelson Leirner, tanto aquela produzida dentro do período encerrado na metade da década de 70, quanto as várias revisões sobre este mesmo período realizada nos últimos anos, analisa tópica ou em extensão a sucessão de polêmicas, a repercussão frequentemente escandalosa das ações e obras de Nelson, a incompreensão de um meio tão pouco afeito a provocações, que apesar de mal conseguir sustentar-se em suas próprias pernas já enfrentava uma saraivada implacável de questionamentos. É fato que Nelson não estava sozinho nessa ocupação, mas, cotejado com seus companheiros, é ele quem leva a palma na estratégia de avacalhação do meio de arte (o que sempre fez com seriedade e método), no exame de seus limites, na sua dessacralização começando pela dessacralização do próprio artista, enfim, em se tratando do nosso meio cuja diluição do debate contrastava com atitude poseur de seus mecenas, no desnudamento de um rei tardio, um rei brasileiro, portanto deslocado, bem próprio da nossa aristocracia nouveau-riche e suas pretensões de arremedar o velho mundo.

A descoberta, ao final dos 50, de que pinturas realizadas em tinta automotiva e posteriormente queimadas produziam resultados excelentes e rápidos, valeu-lhe a ruptura com seu professor espanhol Juan Ponç. A tradução em “pinturas” com zíperes (1967) dos cortes executados por Lucio Fontana sobre superfícies de telas, um dos momentos cruciais da arte moderna; o envio do porco empalhado ao Salão de Brasília e a interpelação feita ao júri acerca de qual havia sido o critério para a seleção daquilo; a exposição de bandeiras realizada em praça pública com Flavio Motta, em 1967, material apreendido pelos fiscais da prefeitura que os entenderam como camelôs; a proposição feita ao público leitor do Jornal da Tarde – “Teste seu talento” - para que fizessem seus próprios múltiplos, isto é, suas obras de arte; a destruição pelos alunos e funcionários da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP de sua instalação composta por 5000 metros de plástico preto, em 1970; os acontecimentos se sucedem e mesmo agora, no momento em que finalizo este texto, o jornal Folha de São Paulo, em sua edição de 12 de junho de 2004, abre sua terceira página de seu caderno de cultura – Folha Ilustrada, para nos dizer que a comunidade judaica tem se queixado do teor de um dos trabalhos expostos. Como se vê, o artista não se cansa de jogar e, jogando, de burlar as regras que pretendem definir a arte como um espaço onde se pode tratar, através de uns tantos meios, somente um elenco finito de questões.

 

 
Série “ASSIM É... SE LHE PARECE”, 2003 | fotografia | 180 x 120 cm | Coleção Lou de Oliveira

OS PARCEIROS DO JOGO

Como sempre advertiu a maioria daqueles que se puseram a discutir a obra de Nelson Leirner, há uma evidente relação entre ela e a obra de Marcel Duchamp8, especialmente com a família de ready-mades, inaugurada em 1913 com a “Roda de bicicleta”, trabalho revisitado nesta exposição, assim como a “A fonte”, 1917, um urinol de banheiro masculino, virado de cabeça para baixo e com a assinatura de R. Mutt (o nome do fabricante), e que Duchamp enviou ao Salão dos Artistas Independentes, em Nova Iorque, de cujo júri participava e que, por isso mesmo, porque todos seus colegas sabiam que se tratava de coisa dele, não ousaram recusar embora na prática o tenham feito uma vez que o deixaram escondido por detrás de um divisória, durante todo o período da exposição.9  A lição de Duchamp tem início na sua recusa a uma pintura retiniana (feita para os olhos) e olfativa (exalando terebentina) em favor da ideia. Arte como algo que leva a pensar. Nesse caminho, por em crise a noção de obra de arte, era uma condição necessária para o desarranjo do jogo, o que ele fez apropriando-se de objetos e, a maneira dos trocadilhos que tanto apreciava, deslocando-o de seu contexto para o campo da arte.

“A fonte” é de fato uma das referências essenciais de Nelson Leirner, como ele deixa ver ao menos em três trabalhos apresentados nesta exposição, logo à entrada da segunda sala, num segmento exatamente voltado a Duchamp. Claro está que muito embora Duchamp lhe seja seu parceiro mais próximo, isto não diminui a importância de outros com quem Nelson se “une” para pensar as estratégias de transgressão das normas vigentes do jogo artístico: existe também Andy Warhol, Joseph Beuys e, mais recentemente, Ilya Kabakov. O norte-americano Warhol, pela maneira como lida com as enxurradas de imagens que atravessam o nosso cotidiano, o alemão Beuys, pela compreensão do papel político do artista e pela atividade pedagógica como indissociável de sua prática, o russo Kabakov pela lição de que, mesmo sob o peso dos mais cruéis dos regimes, o artista não pode transigir do seu poder de fabulação.

 Um último fato digno de ser assinalado é que do início de sua carreira até meados dos anos 70, isto é, durante todo o período em que se notabilizou como artista pautado na iconoclastia, Nelson ignorava por completo a obra de Duchamp. Essa curiosidade, ao passo em que serve para demonstrar a dinâmica cruzada e reverberante das informações, que no seu trânsito pelas diversas nações vão sendo transformadas e adaptadas a ponto das fontes originais se tornarem difusas, funciona também para demonstrar que a prática artística levada num país como o Brasil, em particular na babélica São Paulo, cuja ausência de tradição sobreposta a uma espantosa efervescência cultural derivada das inúmeras raças e culturas que nela se fixaram, terminava por agir como catalisador de experiências as mais variadas. Como diria um apreciador de futebol, categoria na qual Nelson, corintiano roxo, orgulhosamente se enquadra, a tradição frequentemente age como uma camisa difícil de se carregar. Sob esse ponto de vista mais vale a falta de tradição pelo que ela permite a reinvenção ou pelo menos o desenredamento do jogo.

SEGUNDO TEMPO – VIRANDO O JOGO

Feitas as contas, a retrospectiva de 1994 terminou por ser mesmo um divisor de águas dentro da trajetória de Nelson Leirner. Sua obra, para surpresa crescente do artista, particularmente depois de seu desligamento do quadro de professores da FAAP e sua mudança para o Rio de Janeiro, passou a ser vista por um público muito maior, através de individuais importantes, nacionais e internacionais, foi objeto, entre diversos ensaios acadêmicos e textos jornalísticos, de um livro que a examina em detalhe, e, por último, teve seu aspecto comercial finalmente contemplado através de um trabalho competente levado por uma das mais importantes galerias paulistanas.10

O artista não só passou a existir como se tornou ponto de referência alternativo à decantada vertente construtiva que desembocou no Neoconcretismo - Lygia Clark e Helio Oiticica à frente -, trilha que nos últimos anos passou como sendo a única, sobretudo para os estrangeiros, ávidos em confirmar sua suposição de que no Brasil a sensualidade faz margem com uma arte de matriz interativa, a quem toda nossa arte contemporânea rende tributo. Na qualidade de curador da representação brasileira da 48a Bienal de Veneza, Ivo Mesquita vale-se da importância dessa arena para apresentar Nelson Leirner e seu antigo discípulo, Iran do Espírito Santo, com o intuito de reparar essa leitura redutora e equivocada, mas que até hoje se prolonga: “... aproveitando-se da visibilidade que lhe assegura o caráter internacional dos Giardini [a Bienal de Veneza acontece nos Jardins da cidade], a participação brasileira quer, sobretudo, oferecer alternativas à visão, por vezes acomodada e monolítica, de que toda arte contemporânea brasileira seria caudatária do poderoso legado de Lygia Clark e Helio Oiticica. Trata-se de uma visão simplista, uma chave de compreensão sedutora especialmente aos estrangeiros que se apoiam nas produções desses artistas para aproximar-se da produção brasileira hoje.”11

Como se viu, os últimos dez anos, que coincidem com sua mudança para o Rio de Janeiro, foram pródigos para a carreira de Nelson Leirner. Embora no começo sua obra e sua pessoa tivessem merecido uma receptividade retumbante, com gente fazendo fila para freqüentar suas aulas na Escola de Artes Visuais do Parque Laje - EAV, essa “fase carioca”, principalmente após seu desligamento da EAV por volta de 1999, é marcada pelo isolamento, uma situação muito favorável para o desenvolvimento de novos projetos, estimulados pelos convites para realizar exposições, com grande destaque àqueles ligados ao mercado de arte. Com efeito, junte-se o reconhecimento da crítica, patente em convites para figurar em importantes instituições internacionais, com o estabelecimento de relações mais efetivas com uma galeria paulistana das mais atuantes (Galeria Brito Cimino), cujo profissionalismo inclui o planejamento e a inserção no mercado de arte internacional através da participação nas mais importantes feiras internacionais de arte contemporânea, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, e se chegará a conclusão que Nelson Leirner, a despeito do caráter crítico de sua poética, está finalmente fazendo sucesso.

Sim, sucesso. Não o sucesso de Paul McCarthy, Richard Serra, mega stars e seus vizinhos de sala especial na edição de 2003, da Feira de Basel, na Suíça, a Meca do mercado de arte contemporânea. Mas ainda assim, sucesso. E o que fazer com isso, ele, que praticamente nunca pensara nessa possibilidade, que não se preparara para ela, que quase nunca vendera uma obra? Como continuar pensando e burlando o jogo agora que não se está mais à sua margem? A resposta a isso, tal como essa exposição nos demonstra, é que, em primeiro lugar, nunca se está de fora do jogo, o problema apenas é de grau. E uma vez tendo acesso aos extratos mais altos do jogo da arte, entrevê-se meandros e aspectos que o nosso meio, graças a sua insuficiência crônica, ao seu amadorismo imanente, não deixava ver. Na iminência de transpor o umbral do sucesso, a arte de Nelson Leirner, com a ambigüidade típica de seus objetos prosaicos e mesmo infantis, revela-se como um território fértil para a especulação dos variados jogos em que estamos enredados. 

 


BANANA RACK, 2003
metal, tecido e fibra de vidro | 60 x 60 cm | Coleção Galeria Brito Cimino

 

LA GIOCONDA [detalhe], 1997 / 2000
técnica mista | dimensões variáveis | Coleção Particular

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* originalmente publicado em 2004, na ocasião da mostra "Nelson Leirner 1994+10", apresentada no Instituto Tomie Ohtake. A versão do texto agora apresentada no Blog da Curadoria traz um excerto do texto curatorial proposto para o catálogo da exposição.

IMAGEM DE CAPA: SALA DE ESPERA, 2004 | instalação com 10 máscaras de macaco

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NOTAS

[1] Composto por Nelson Leirner, Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, Thomas Souto Correia, Carlos Fajardo, José Resende, o Grupo Rex, que também compreendia um espaço expositivo e um jornal – “Rex Time” –, era um time de artistas que se insurgia contra a modorra do meio cultural paulistano e sua ignorância quanto aos rumos da experimentação plástica, criado em junho de 1966 para durar quase um ano, realizando quatro mostras coletivas e uma única, última e fulgurante individual, justamente de Nelson Leirner, intitulada “Exposição não exposição”, uma exposição/happening previamente anunciada pelo jornal, que avisava o público de que se tratava do fechamento da galeria e que ele poderia visitá-la para dela levar a obra que quisesse. O evento revelou-se fulminante, com os trabalhos - alguns deles integrantes da série premiada na IX Bienal de Tóquio, ocorrida algum tempo antes - arrancados das paredes por uma horda de visitantes. Quanto a “Homenagem a Fontana”, uma série de múltiplos feitos com zíperes e tecidos sobre chassis de madeira, justamente aquela premiada em Tóquio, além de abolir o trabalho artesanal joga com a própria história da arte, no caso a obra de Lucio Fontana, notável pelo modo como ultrapassou a definição da noção de pintura através de cortes realizados nas superfícies das que ele fazia. Por último, o “lance do porco” consistiu no porco empalhado que Nelson mandou para o Salão de Brasília em 1967. No século em que Marcel Duchamp havia sido recusado numa iniciativa semelhante pelo envio de um urinol de cabeça para baixo (“Fonte”- 1917), os júris, notadamente os de arte contemporânea estavam habituados com proposições insólitas, ainda mais se devidamente subscritadas por um artista de linhagem experimental. Eles não contavam com o fato de que, ao aceitar o porco de Nelson, este os interpelaria publicamente acerca dos critérios estéticos utilizados. A reação foi imediata com o júri constituído por Clarival do Prado Valadares, Mario Pedrosa, Mario Barata, Walter Zanini e Frederico Moraes reagindo de maneira diferenciada, indo ao encontro daquilo que o artista de fato ansiava: a realização do “happening do júri”.

[2] Afora a presença em coletivas mais ou menos importantes e no geral com trabalhos históricos, ao longo da década de 80 até 1994, ano de sua retrospectiva, Nelson Leirner realizou apenas as seguintes individuais, quase todas elas na Galeria Luisa Strina, de São Paulo, que o representou até o começo dos anos 90, numa sequência curiosamente iniciada com o cancelamento da exposição “Pague para ver”, por iniciativa da própria dona da Galeria Múltipla, de São Paulo, que se sentiu afrontada com o impresso proposto por Nelson, no qual ele apresentava ao público sua “fórmula” para uma “arte comercial pura”. A partir daí temos “Xeque-Mate”, (1983 – Galeria Luisa Strina), “O grande combate” (1985 – Galeria Luisa Strina), “O grande enterro” (1986 – Pinacoteca do Estado de São Paulo), “Exposição para ser...lida” (1987 – Galeria Luisa Strina), “Projeto aula” (1989 – Galeria Luisa Strina), “A última ceia” (1990 – Galeria Luisa Strina), “Jardim das delícias” (1993 – Capela do Morumbi), Homenagem a Fontana – apresentação da série completa, projetada em 1967 (1994 – Galeria São Paulo).

[3] Conversa telefônica ocorrida em 03 de junho de 2004.

[4] Falando sobre os vários campos existentes (religioso, artístico, científico, econômico etc.), o pensador francês detalha o problema do valor da obra de arte defendendo-o como algo que não é definido pelo artista: “Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estética necessária para conhecer e reconhecer como tal... [o estudo das obras de arte] deve levar em conta, portanto, não apenas os produtores diretos da obra em sua materialidade (artista, escritor etc.), mas também o conjunto dos agentes e das instituições que participam da produção do valor da obra... críticos, historiadores da arte, editores, diretores de galerias, marchands, conservadores de museu, academias, salões, júris etc...” Pierre Bourdieu. As regras da arte. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 259.

[5] Paulo Venâncio Filho – “Situações limites”, In: Cathy de Zegher (org.). Tunga – Lezarts / Cildo Meireles – Through. Catálogo de exposição. Kortrijk (Bélgica): Kanaal Art Foundation, 1989, s/n.

[6] Entrevista a Mario Wilches, apud Tadeu Chiarelli. “Nelson Leirner – Arte e não arte”. São Paulo: Takano, 2002. p. 32.

[7] Conversa telefônica em 03 de junho de 2004.

[8] A começar por Mario Pedrosa, membro do júri do Salão de Brasília, como tal interpelado por Nelson acerca de quais os critérios que o havia levado a incluir o porco empalhado na mostra: “Mas se ele apenas comprou o porco empalhado engradado e mandou a Brasília, a obra cai na categoria dos ready-made à la Duchamp” (Mario Pedrosa, Do porco empalhado ou os critérios da crítica, In: Aracy Amaral (org.) – “Mundo, homem, arte em crise”. São Paulo: Perspectiva, 1975, p. 235. O arco de leituras acerca dessa genealogia entre Duchamp e Nelson Leirner chega até os ensaios recentes de Lisette Lagnado  (comentando o paralelismo, “exatos 50 anos depois”, entre a recusa da “Fonte”, de Duchamp, com o episódio do aceite do porco empalhado que, segundo ela, juntamente com “Exposição-não-exposição” e “Homenagem a Fontana”, consagra três acontecimentos iconoclastas na arte brasileira ocorridos na década de 60 (Lisette Lagnado, O combate entre a natureza fetichista da história da arte e sua historização, In: Ivo Mesquita (curador) – “Nelson Leirner e [and] Iran do Espírito Santo. 48. Biennale di Venezia – Padiglione Brasile” (catálogo de exposição). São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1999, pp. 41/43.), e Moacir dos Anjos, que além de concordar com a homologia da atitude dos dois artistas, lança luz sobre o processo de formalização de uma obra recente de Nelson que faz uso da “Fonte” de Duchamp – Paramut, 2001 -, obra presente nesta exposição de agora, demonstrando-a como “metáfora visual dos fluxos criativos fundados na obra de Marcel Duchamp e de seus múltiplos entrelaçamentos na contemporaneidade...” (Moacir dos Anjos – “Adoração” (catálogo de exposição). Recife/Brasília: MAMAM/ECCO, 2003, p. 15)

[9] De fato, se há uma história quanto a essa relação tensa entre o artista e o mundo, o artista e o meio de arte, essa história começa com Duchamp, com o artista desconfiado contra toda a sistematização - “Nunca consegui me conter o bastante, para aceitar fórmulas estabelecidas, copiar, ou ser influenciado...” -, a começar pelo Cubismo que tanto o marcou pelo rigor, até o sistema de arte que embaralhava a obra de arte com a grife do artista, do mercado, da notoriedade desse ou daquele museu ou galeria.

[10] Deixando de lado as inúmeras e importantes coletivas, realizadas nacional e internacionalmente, em que figurou no mais das vezes com trabalhos recentes quando não inéditos, destacam-se, entre as mais importantes individuais e outros acontecimentos concernentes ao seu reconhecimento pelo público, “Nelson Leirner... uma viagem” (1997 – Centro Cultural Light, Rio de Janeiro) uma versão menor da retrospectiva de 1994; o II Prêmio Johnnie Walker de Artes Plásticas (1998); o convite feito pelo crítico e curador Ivo Mesquita a representar o Brasil na 48a Bienal de Veneza (1999); a publicação do livro de Tadeu Chiarelli, “Nelson Leirner – Arte e não arte”. São Paulo: Takano, 2002, ano em que também participou, com sala especial, a meu convite, da 25a. Bienal de São Paulo, seguida de uma importante mostra antológica organizada pelo curador Moacir dos Anjos realizada no Museu de Arte Moderna Aluisio Magalhães, de Recife, e posteriormente levada para o Espaço Ecco, de Brasília. Por fim, ressalte-se um grande número de exposições realizadas na Galeria Brito Cimino, que passou a representá-lo, também responsável por levá-lo para algumas das mais importantes feiras de arte internacionais, como a Arco (Espanha), FIAC (França) e Basel (Suíça).

[11] Ivo Mesquita, op. cit., p. 34