O Edifício de Formas: Tomie Ohtake

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Diante da sua pintura, o crítico vive um permanente desafio: ou fala de pintura, ou deve recolher- se. Com efeito, em suas telas, Tomie Ohtake não descreve situações vividas ou sonhadas, não comenta nem recria a realidade à sua/nossa volta, não avança para análises sociais ou políticas, não é nem confessional nem autobiográfica. Assim, não há nada em que o crítico possa agarrar-se para escapar ao desafio de falar de pintura.

Mas falar da pintura de Tomie é falar, antes de tudo, da forma. É dela que nos recordamos quando pensamos em sua pintura. Em 1976, comentando uma exposição da artista, escrevi: “Guarda-se na memória, com absoluta nitidez, aquela precisa forma, ao mesmo tempo rigorosa e suave. Guarda-se na memória aquele gesto preciso, que faz caminhar a cor dentro da cor, em ondulações.
Guarda-se na memória aquela precisa forma/cápsula, como que suspensa no espaço, ao mesmo tempo tão solidamente presa à tela. Guarda-se na memória aquela precisa sucessão de formas-em-arco, ocupando a parte inferior da tela. Formas precisas e nítidas, que nos emocionam como certas manhãs de sol, muito claras, quando todas as coisas parecem adquirir o mais perfeito equilíbrio, como a luminosidade calma e macia de certas tardes outonais, como a inteireza da pedra, da onda, do silêncio”.

É como se Tomie Ohtake criasse as formas que precisamos ou desejamos. Formas nítidas e precisas, capazes de atender às nossas necessidades, que são profundas e permanentes, de ordem e de beleza, de claridade e de frescor, de transparência. Formas que funcionam como uma espécie de higiene do olhar, um contraponto necessário à fragmentação e dispersão do mundo atual, caótico e veloz, apegado à materialidade dos objetos e ao consumo. Um contraponto necessário ao excesso de realidade contingente, ao bombardeio de informações inúteis veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Por isso suas formas permanecem em nossa memória como modelos ou arquétipos de um mundo de luz limpa, saudável, digno de viver.


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Porém, forma não é invólucro, da mesma maneira como o conceito de precisão não se esgota no campo visual. É antes de tudo um princípio formador. Na perspectiva da teoria da gestalt, a forma é estrutura. Uma estrutura totalizadora. O mundo é regido por determinadas leis que não percebemos visualmente. É o artista, como afirmou Klee, que torna visível o invisível do mundo. Assim, temos o mundo como Forma, isto é, estrutura, e como formas, isto é, manifestações individualizadas, particulares. Entretanto, esta forma particularizada é simultaneamente cor, textura, matéria pictórica, um modo de pincelar e, no limite, um clima, uma atmosfera. Vale dizer: integram uma estrutura maior, mais complexa, um continuum espaço-temporal, que é a Forma. A pintura de Tomie Ohtake é Forma e formas.

O crítico e historiador Lionello Venturi escreveu, em 1969: “A perfeição da forma não existe, isto é, toda forma é perfeita quando criada. A perfeição da forma depende da personalidade do artista, e isto é tudo. Para ver se a forma é perfeita basta reconstruir a personalidade do artista e compreender se ela tem sido absorvida por sua imaginação criadora”. É verdade. As formas criadas por Tomie persistem em nossa memória, enriquecendo nossa existência, porque são consistentes, íntegras, inteiriças. E são convincentes porque se sustentam numa personalidade forte. Não importa se depois de concluídas, postas a viver na tela, no mundo da cultura, elas se tornem impessoais e anônimas, como tantas outras formas, que a cada momento estão confirmando a beleza do mundo.


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Num dos raros depoimentos de Tomie Ohtake sobre sua obra, publicado no catálogo do XV Salão de Campinas, 1975, ela afirma: “A minha obra é ocidental, porém, sofre grande influência japonesa, reflexo de minha formação. Essa influência se verifica na procura de síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa. Na poesia haikai, por exemplo, fala-se do mundo em 17 sílabas. Sendo poucos os elementos, eles devem ser muito precisos, tanto na forma quanto nas cores e nas relações”. A artista nasceu em Kyoto, uma cidade sagrada, onde os edifícios religiosos, construídos com madeira, são estruturalmente impecáveis. Os encaixes, os espaços internos, valorizando os vazios, os telhados e as varandas revelam uma extraordinária economia expressiva. Essa vivência do sagrado foi complementada com estudos da arte da caligrafia e do desenho, nos cursos primário e secundário. Mas Tomie, que se transferiu para o Brasil em 1936, só iria iniciar-se em pintura em 1952. Contudo, definiu seu próprio repertório de formas, impregnando-as com sua personalidade, somente nos anos 70, quando a artista, já perfeitamente integrada ao circuito brasileiro de arte, alcançou, no dizer de Mário Pedrosa, “os altos padrões espirituais colocados pela sua personalidade”, reencontrando, ao mesmo tempo, suas raízes japonesas. O que Noma Seroku definiu como a característica fundamental da arte japonesa – “a profundidade espiritual que se encontra na simplicidade de sua expressão” – aplica-se, também, à pintura de Tomie Ohtake.

Artista construtiva, Tomie não apóia seu trabalho criador em bases matemáticas ou no autoritarismo das linhas retas e planos ortogonais. Se, como vimos, raramente se dispõe a explicar seu trabalho, é porque ele não se prende a nenhum dogma estético, a nenhuma teoria prévia. É uma intuitiva, como tantos outros artistas construtivos brasileiros. Seu método de criação é empírico, o que não lhe retira o rigor nem nos impede de analisar sua pintura em termos intelectuais, levantando algumas constantes ou categorias formais, que são recorrentes nas diferentes etapas de sua obra e que, perfeitamente coerentes, resultam num “discurso de formas”, conformando um pensamento plástico.


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A fase figurativa de Tomie, muito curta, conta pouco no conjunto de suas obras, no entanto, destaca-se uma tela de 1952, na qual vemos uma seqüência de casas conjugadas cortando a tela em diagonal, que antecipa a composição em arcos amarelos, encadeados, produzida em 1974. O telhado que se impõe como uma grande faixa vermelha, à esquerda, na tela de 52, é como que deslocado para o chão, na obra de 74. A função de ambas as faixas é manter a composição na bidimensionalidade do plano. Outro ponto comum: a dominante amarelo- laranja. Segue-se um período de tateamentos, no qual a artista oscila entre uma figuração residual e uma vontade de abstração, entre a linha, ainda atada à figura, e a mancha que quer se impor, entre um grafismo persistente e a matéria que se insinua quase tátil.



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Porém, foi na virada da década, 1959-62, que Tomie surpreendeu com uma série de trabalhos impecáveis, que não reluto em apontar como um auge da abstração informal no Brasil. Na verdade, rotular esses trabalhos de informais é uma impropriedade, pois nada há neles que os aproxime da retórica gestualista do tachismo, da velocidade de execução como norma, da matéria ocasionalmente atraente, mas decorativa. Ao contrário, são trabalhos sofrida e demoradamente elaborados, camada sobre camada, um diálogo ininterrupto e persistente entre o por e o sobrepor, entre o des-fazer e o re-fazer, entre manchar e des-manchar, entre linhas, quase-sulcos, grafitadas diretamente na matéria e extensas áreas de não-cor, entre áreas sombreadas e áreas iluminadas, tudo isto para afirmar, ao mesmo tempo, a superfície porosa da tela (espaço) e as profundidades (tempo).

Estas telas representam o primeiro esforço consciente de Tomie no sentido de definir a pintura como forma. Forma viva, segundo a formulação de Susanne Langer, que fala não de formas precisas, mas sim daquelas em movimento, heraclitianas, puro devir. A forma nascente, que se realiza em movimentos contrapostos, divergentes ou convergentes, que ora se expandem até quase sangrar os bordos da tela, ora se concentram, como se buscassem a acalmia temporária de um centro para, novamente, de modo quase instantâneo, refluir em ondas, espirais, concavidades, quedas, mergulhos, abismos, vórtices. Entre os extremos do preto e do branco, múltiplas tonalidades cinzas, que se conjugam com azuis quase apagados, ocres, vermelhos ferruginosos. A linha se dissolve na mancha, o rastro do pincel e da trincha submerge na matéria pictórica. Súbito, um amarelo tenta vir à tona e açambarcar toda a superfície da tela, como se fora o que restou da onda que se esvai em espuma na praia, até ser tragada pela areia. Areia que guarda, por um momento, a memória da água – "aéreos jardins de espuma sitiando a forma viva".


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O que se segue, ao longo de toda a década de 60, é o esforço de Tomie para estancar a fluidez anterior, o refluir constante da forma, como se, num assomo de “consciência clássica”, buscasse substituir o precário, o instável, o impermanente e o incontornável da forma viva por algo sólido, consistente, perene. Porém, não o classicismo que remonta à sua origem grega ou ao
minimalismo contemporâneo, mas uma espécie de brutalismo vivificador, nem a forma limpa, o contorno preciso, a matéria lisa, mas sim a forma quase rude, a matéria corrugada, o contorno irregular. O grafismo cede, a mancha se consolida em áreas/massas compactas, quase planos, a diagonalidade cromática dos cinzas, intervalada por tonalidades frias, é substituída por amarelos sonantes, vermelhos intensos, azuis ou verdes introvertidos, em confronto amigável com negros ou brancos opacos. É um período de intensa experimentação e, por isso mesmo, desigual como resultado. Porém, entre avanços e recuos, Tomie começa a definir um repertório de formas, algumas das quais, continuamente reformuladas, irão se tornar recorrentes em sua obra. A fenda abre uma fresta por onde passa uma nesga de luz ou divide o retângulo em dois e estes, ainda umbilicalmente presos, se flexionam, simetricamente. O semicírculo aparece ora sozinho, como se fora um braço de rio, ora em frente à sua contra-parte, ambos ligeiramente torcidos, criando entre eles espaços virtuais. O triângulo é como um bólido irrompendo bruscamente no espaço, precariamente equilibrado entre as quatro “paredes” da tela. Tomie joga continuamente com estas e outras formas, às vezes quase se tocando ou tendo a separá-las formas menores, negras, às vezes, ainda, superpostas, como puras camadas de cor. Monumentais, impactantes, potencialmente abstratas, estas formas-signos lembram menires, toscas arquiteturas de pedras, bípedes. A meio caminho entre figura e abstração, repousam, ascendem ou flutuam no espaço da tela, deixando, assim, sem solução a relação, sempre problemática, entre fundo e superfície, recriando, assim, contraditoriamente, o espaço representativo. Numa pintura de 1963, obra tipicamente de transição, mas plenamente realizada, a cor ocupa integralmente o espaço da tela, que está dividida em dois planos, cromaticamente diferenciados. O inferior, retangular, ocupa um terço da tela e o superior, formando um quadrado, os dois terços restantes. O peso maior do vermelho inferior é compensando pela quantidade maior de branco, que abriga uma área central, azulada, dividindo virtualmente o plano superior em dois retângulos. A oposição fundo e superfície persiste minimamente, sutilmente, na margem estreitíssima a separar a área pintada do bordo rígido da tela. Em duas outras telas, que estão entre as mais significativas do período, o modo como as formas-signos foram implantadas no espaço da tela é tão poderoso e perturbador que elas acabam por contaminar, com sua pulsação, o próprio fundo, que, ativado, passa a integrar, gestalticamente, a espacialidade da obra.


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No período que se inicia em 1973, é a preponderante curva, em suas diferentes configurações e desdobramentos: arcos (1973-1982); formas ovaladas ou capsulares (1976-1979); formas tubulares (1978-1982); formas orgânicas (1979- 1982). Curvas que eventualmente se compõem com retas: quadrados, retângulos, triângulos, trapézios. Uma seqüência de fotos, reproduzidas no livro de Casimiro Xavier de Mendonça, sobre Tomie Ohtake, de 1983, ilustra os mecanismos de criação da artista. Ela aparece sucessivamente lançando linhas com um bastão de carvão, com o pincel largo, molhado de tinta, correndo sobre o tecido, de tesoura na mão, recortando, no cartão, as formas que, depois de muito analisadas e confrontadas, serão implantadas na tela. A produção dos anos 70 tem origem, quase sempre, nessas formas recortadas. É com essas formas –nítidas, precisas, claras – que a artista irá construir sua arquitetura pictórica. O edifício Tomie Ohtake.

Se a arquitetura se organiza a partir de uma relação entre peso e suporte, isto é, entre entablamento e coluna, é o arco que irá determinar os diferentes estilos arquitetônicos. Se, nos anos 60, foi possível relacionar, aqui e ali, em certas formas de Tomie, o menir e o dólmem, nos anos 70, a presença do arco é avassaladora. Assim temos o arco pleno, o arco polilobado, o arco abaulado, o arco abatido, o arco-cruzeiro e, avançando no sentido da apropriação de sistemas construtivos mais complexos, arcadas, arcarias, arcaduras, arcobotantes, arco-montantes, etc.

Não se trata, porém, de repertoriar, na tela, os diferentes tipos ou famílias de arcos, alguns inventados ou recriados pela artista, mas sim de definir a forma pictoricamente, estabelecendo novas relações estruturais entre linha, cor, mancha, espaço, tempo. Relações que determinarão o aparecimento de ritmos puramente visuais: encadeamentos, repetições, deslocamentos, superposições, rebatimentos, etc. Se, na configuração dos arcos, a ênfase é posta na linha, a forma arqueada se destaca nitidamente no espaço da tela. Como conseqüência, o edifício Tomie se enriquece com um novo vocabulário arquitetônico: janelas, portas, colunas, óculos, aberturas ou vãos que se organizam aos pares, trincas, seqüências, em arranjos simétricos ou assimétricos, em seguida, ou simultaneamente, compondo-se com outras figuras geométricas, formando conjuntos híbridos, nos quais o próprio arco se inclina, alteia, pende ou se deforma em irrupções sinuosas, como que figurando sua própria sombra. Entretanto, esta enumeração quase abusiva de formas arquitetônicas funcionais indica apenas um primeiro momento perceptivo. A Forma, como estrutura totalizadora, não se esgota no desenho do arco e por mais atraente ou impactante que seja, ela inclui, também, os vazios ou intervalos que surgem entre as formas, e estas se modificam continuamente com a intervenção da cor.

Esta dinâmica espacial é mais rica ainda quando, na configuração do arco, a ênfase é posta na cor. Tomemos como exemplo uma pintura de 1973, na qual um grande arco pleno, róseo e ricamente texturado destaca-se sobre um fundo vermelho, liso. A base do arco é uma linha que se quebra num certo ponto e sobre a qual irrompe o branco, como se a artista quisesse fundir, numa única
imagem, recriando-os, dois ícones da cultura japonesa, o grande círculo vermelho da bandeira e o monte Fuji sempre coberto de neve. Da relação entre esses vários componentes nasce uma espacialidade ambígua, pois o grande arco parece tanto emergir quanto submergir, estando, ao mesmo tempo, dentro e fora do vermelho, dinamicamente.

Porém, a obra-prima da série de arcos criados por Tomie é uma pintura, de 1974, na qual a forma arqueada se desfaz, em ondas sucessivas de cor vermelha no próprio vermelho do espaço. A cor dentro da cor, como arcos dentro do arco. Os pórticos das igrejas medievais têm várias arcaduras em recuo, no gótico, decoradas com estátuas superpostas. Esta tela que estamos comentando seria, então, a transposição para o plano da cor abstrata, de um pórtico que se organiza em arcaduras. Mas esta pintura é, simultaneamente, um extraordinário exercício cromático: a cor trabalhada na cor, na materialidade da qual está carregada. É um ofertório gozoso da cor. A cada nova pincelada a cor se transforma, renovando e enriquecendo a matéria. O que era, de início, quantidade pura, pela intervenção do artista, passa a ser qualidade diferenciada. Cor pigmentária. Corespaço, gerando planos que intermediam fundo e superfície. Cor-tempo.

Por volta de 1976, Tomie introduz em sua pintura a forma capsular, cuja origem pode estar, mais uma vez, na arquitetura. Refiro-me ao “oculus”, cuja função é arejar e clarear o interior do edifício. Com seu contorno impecável, ela se apresenta inicialmente na vertical, ocupando o centro da tela, de um vermelho gradualmente escurecido, e a seguir na horizontal, como se fosse uma nave azulada a se deslocar, silenciosamente, no azul do espaço. Como um planeta azul perdido no cosmos. Mais uma vez, cor sobre cor. Por um momento a cápsula descansa sobre um “pedestal”, para novamente ascender, imobilizando- se sobre a linha do horizonte, ou metamorfosear-se em fava gigantesca, qual Ícaro aproximando-se do sol. Se antes (1959-1962) a mancha era expandida, como que buscando o ilimite da tela, nas cápsulas, as manchas estão aprisionadas num espaço hermeticamente fechado, mas transparente, como se fosse a memória de alguma coisa que vem de longe – no tempo e no espaço. Sua pintura adquire, então, uma dimensão temporal. Não o tempo como movimento (cinetismo), mas como projeção anímica. De longe e de dentro. Profundidades e interioridades.

Entretanto, a máxima realização da curva na pintura de Tomie Ohtake, seu momento de maior vigor, é a série de pinturas datadas de 1978 a 1982, organizada a partir de uma forma tubular. Esta é, na verdade, a recriação do arcobotante, que se apresenta, na maioria das vezes, invertido. No edifício religioso, o arcobotante é o arco que, do lado de fora, apoiado nos botaréus, sustenta o empuxo das abóbadas. É um dos muitos componentes arquitetônicos que atendem à vontade irresistível de elevar cada vez mais o edifício religioso na Idade Média. Willelm Worringer lembra que a expressão da arquitetura gótica não se sustenta sobre a matéria, mas procede de sua negação. Desmaterializar a pedra significa, pois, espiritualizá-la. Em outras palavras, se a essência da pedra é o peso, que se sustenta na horizontal, o arquiteto gótico busca o seu contrário, o espírito, que se realiza na vertical. Tomie transplanta o arcobotante para dentro da tela, cuja função, entretanto, não é verticalizar o suporte, mas, ao contrário, reforçar seu formato original, que é invariavelmente o quadrado. Se, por um lado, a poderosa estrutura tubular parece avançar, virtualmente, para além da tela, por outro, a curva nunca chega, de fato, a ameaçar a estabilidade do quadrado. Ao contrário. Assim, a primeira impressão que temos é de peso e imobilidade. Estas pinturas, fortes e impressivas, afirmam uma clara vontade de forma. Esta impressão persiste mesmo quando, ousadamente, Tomie constrói a forma tubular apenas com o branco da tela, isto é, com o vazio. Ausência que se faz presença. O vazio pleno.

Se, nas configurações anteriores da forma arqueada ou capsular, a sensação visual que experimentamos é de leveza e elevação – “Eu habito nas alturas e meu trono está numa coluna de nuvens” –, na série que estamos comentando, a sensação é diametralmente oposta – densidade, materialidade, espessura. Neste sentido, Tomie estaria mais para o românico que para o gótico, mais para o mosteiro que para a catedral. Recordemos que a artista, naquele raro depoimento de 1975, afirmou que sua pintura é ocidental, mas sofre grande influência japonesa. Ora, o românico, estilo essencialmente massivo e cerrado, tem origem na igreja cristã primitiva, mas tomou de empréstimo da arte oriental várias das soluções que viria empregar. O românico, mais ainda que o gótico, está no centro do embate Norte/Sul, embate que, projetado nos dias de hoje, se dá entre Oriente e Ocidente. “O românico” – diz ainda Worringer – “tem essa gravidade grandiosa, colmada de caráter, essa magnificência algo pesada que se produz quando dois mundos artísticos não logram compenetrar-se e permanecem, honrada e rudemente, contíguos”.



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A poética de Tomie Ohtake tem como base o binômio linha/mancha. A linha é espaço, a mancha é tempo. A linha define o território a ser ocupado, concentra, delimita, é arcabouço, ossatura. A mancha expande, dispersa, introduz o vago e o impreciso. Linha e mancha são, no entanto, reversíveis. De ascética e sólida que era, a linha se faz sensual e fluídica, enquanto a mancha, antes aberta e expansiva, recua, se fecha, se imobiliza. Há momentos em que a mancha, encarada como cor, concentra, incorpora, adensa, cria planos, é puro espaço. E a linha balança, distende, se faz trêmula, amacia ou amortece a rigidez da reta, da curva, como se, míope, a artista visse não uma, mas um tumulto de linhas que se des-mancham em “curvas vertiginosas, sombreadas”.

Tomie nunca chegou à secura minimalista, da mesma maneira como apenas tangenciou o informalismo de seus conterrâneos japoneses no Brasil, sem resvalar para o vale-tudo tachista. Não sendo uma artista fria ou cerebral, mas tampouco emotiva, nunca desejou a geometria pura, o
 hard-edge, a pintura rigorosamente plana. Se, em algum momento, uma ordem excessiva e autoritária ameaçou se impor, a artista de imediato contrapôs, no mesmo plano, o impreciso, a mancha, um feixe de linhas sinuosas e ondulantes que, ao mesmo tempo, pressionam o arcobotante e suportam a pressão que este exerce sobre um dos cantos da tela. Ou, mais discretamente, uma linha ou traço que passa verticalmente pelo centro do arco abaulado, ou, longitudinalmente, sobre uma área de cor que, vindo do fundo da tela, se impõe na superfície, como um plano, a curva menor que se afasta um pouco da curva maior, abrindo uma fresta por
onde passa uma nesga de luz.


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Uma pintura abstrata de Tomie Ohtake, dos anos 60, discretíssima na forma e na cor, ocupa toda a extensão da capa do livro de poemas de Olga Savary,
 Magma, de 1982. Difícil antever, na obra reproduzida, a poesia ostensivamente erótica da autora, que diz: “Não acredito em empertigadas metafísicas/mas numa alta sensualidade posta em uso:/ que o meu homem sempre esteja em riste/ e eu sempre úmida para meu homem”. Talvez tenha sido apenas um desses acasos reveladores, mas ele trouxe à tona um aspecto ainda não estudado da pintura de Tomie – a forma sensual.

A arte está ligada ao sexo no seu próprio funcionamento e não somente através de suas representações, vale dizer: o erotismo tanto pode estar no tema e na forma quanto na pulsão criativa, na energia libidinal que o artista põe na realização da obra. Assim, toda obra de arte contém, em maior ou menor grau, doses de erotismo e sensualidade, mesmo aquelas abstratas e, entre as obras figurativas, as de caráter religioso. Vários autores já relacionaram os excessos místicos aos excessos eróticos. O baldaquino de Bernini, na Igreja de São Pedro, em Roma, comentou Georges Bataille, foi considerado obsceno e inconveniente. A torsão arrogante e entumescida dos volumes, sua ereção formal, foi vista como incongruência no coração de um espaço de meditação. O mesmo Bernini, ao figurar o êxtase místico de Santa Teresa, deixa o prazer se expandir pelo panejamento, em ondulações gozosas irreprimíveis. Auge da forma erótica no Barroco, esta escultura é, na verdade, uma representação do orgasmo. O erotismo fica a meio-caminho entre a sensualidade e o obsceno. A sensualidade é uma proposta sutil: sugere, insinua, alude mais que descreve ou revela. Ao contrário, o obsceno, no dizer de Baudrillard, torna hipervisível a cena erótica, sendo, pois, a ausência total de sensualidade ou prazer.

A pintura de Tomie é sensual e, como tal, apenas episodicamente erótica. Entre as formas criadas pela artista, nas diversas etapas de sua obra, algumas podem ser vistas como eventualmente eróticas, permitindo analogias fálicas, vaginais, uterinas: fendas, furnas, grutas, pregas, púbis, ancas, línguas, formas rombudas, formas roliças que se acasalam, formas penetrantes que buscam se aproximar do clitóris ou da glote, mas, ainda assim, mais alusivas que intencionalmente figuradas. Em apenas um curto período, estas formas parecem indicar uma vontade consciente de erotismo. Refiro-me à série de pinturas realizadas em 1987, invariavelmente, e não por acaso, de um vermelho afogueado, cor de carne, na qual vemos ancas e nádegas, a “bunda de mil versões, pluribunda”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade num dos seus poemas eróticos. Esta série tem dois antecedentes magníficos, datados de 1981 e 1982, nos quais vemos dois arcos, fortemente rebaixados, rotúndicos e pesados, a parte inferior, fendida, bem rente ao chão da tela, a lembrar a forma da coivara, em cujo interior a brasa se transforma em carvão.

Porém, o que predomina ao longo da pintura de Tomie não é o erotismo como tema, mas a forma sensual, que se manifesta sobretudo na matéria e na cor, vale dizer, na pele da pintura, no corpo da cor. Matérias quase táteis em suas formas- signos, manchas no interior de arcos achatados ou cápsulas, intensidades amarelas, azuis e verdes vibrantes, alaranjados calientes emoldurando contornos bulbosos, linhas que se desmancham em ondas sucessivas, sensualidade que aflora até mesmo nas telas em que emprega apenas o preto, ou quando, ousadamente, redesenha a bandeira brasileira, contrapondo ao autoritarismo do triângulo amarelo uma extensa área verde, como se quisesse cobrir amplitudes amazônicas ou apenas recriar na tela, abstratamente, aquelas imagens, comoventes e sensuais, do anônimo torcedor ou ativista que se deixa vestir, gostosamente, pela bandeira, como se viu tantas vezes na história recente do país.


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Ao longo de meio século de uma criatividade ininterrupta, Tomie Ohtake criou um riquíssimo vocabulário de formas, as quais, continuamente re-elaboradas e ressignificadas, a partir de um núcleo básico, constituem o fascínio permanente de sua obra. A cada nova etapa, a artista recorre às mesmas formas e/ou estruturas formais, cuja semântica, entretanto, se modifica graças às novas relações cromáticas, matéricas e espaciais que ela busca estabelecer. Este caráter circular e auto-referente da sua obra é reiterado na série de pinturas de grande porte que vem realizando desde 1991. A grande espiral vermelha de 1992 e as espirais verde-amarela e vermelha de 1993 já estavam anunciadas nas telas de 1962 e 1961; o arco rosa, sensualíssimo de 1973, ressurge arroxeado em 1991; a forma erótica de 1987, de um vermelho compacto e pesado, reaparece em 1992, azulada, transparente, como espuma depois do incêndio; a forma capsular ou elíptica (1976) está de volta, negra sobre fundo negro.

Esta circularidade mostra-se também quando relacionamos diferentes etapas ou ciclos de sua pintura. A fase atual, cósmica, é um reencontro com as obras realizadas entre 1959 e 1962, nas quais as manchas esbranquiçadas e difusas já prenunciam as grandes nebulosas de hoje. Nestes dois extremos da produção pictórica de Tomie temos a realização do conceito langeriano de forma viva, a forma como gênese permanente. Se é possível apontar uma metáfora para os trabalhos de 59-62 esta é a água: neblina, ondas, espuma. Para os anos 90 a metáfora é o gás: nuvens, vapores, nebulosidades, massa estelar, galáxias, corpos celestes, Via Láctea, o universo em formação. Em suas obras atuais, a curva segue preponderante: círculo galáctico, anéis e bolas de fogo, rosáceas, elipses, espirais parabólicas. Mas, enquanto nas telas de 59-62 é a mancha que comanda a estrutura, adensando a superfície em áreas, quase planos, de tonalidades que intercalam os extremos do branco e do negro, com resíduos gráficos indicando o curso do pincel e da trincha, nas telas dos anos 90, a pincelada vibrátil, mais toque que extensão, anula ou mesmo destrói a precisão da linha curva, resultando em formas que se dissipam, envoltas que estão numa matéria gasosa, nublada, nuviosa. E não por acaso, a artista substitui a opacidade corpórea do óleo pelo acrílico que favorece as transparências e veladuras.

Entre esses dois extremos, Tomie construiu seu edifício de formas. Nos anos 60, (1963-1970), o que temos são unidades ou fragmentos de formas, blocos isolados que se combinam ou se confrontam em equilíbrio precário, como se buscassem ainda uma estrutura. Nos anos 70, (1973-1982), Tomie consolida seu vocabulário de formas e, simultaneamente, uma gramática e uma linguagem. A forma, antes isolada, se integra em sistemas mais complexos; em outras palavras, é uma ordem. É o momento de plenitude da forma. Repito: clara, nítida, precisa. A mancha encapsulada. A curva irretocável. O encadeamento rítmico dos arcos. A superfície lisa e uniforme. O preto como cor. O branco como espaço. Diálogo fluente entre a forma curva e o suporte ortogonal. A artista poderia encerrar aí sua obra. Sua estrela ainda estaria brilhando intensamente no céu da arte brasileira.


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Mas Tomie não cruzou os braços, satisfeita. Continuou ativa e criativa e, mais uma vez, nos surpreende, abandonando o edifício de formas solidamente construído para aventurar-se no espaço cósmico. Na verdade, um indício de que isto poderia acontecer já podia ser notado num pequeno conjunto de trabalhos, predominantemente negros, de 1987, na qual a forma volta a ascender, estimulada pelo arco ogival. Arco em ponta, que, por vezes, atravessa longitudinalmente a tela, como um bólido ou foguete. Sua pintura atual começa aí, onde o arco se dissolve ou o foguete se desintegra. É um mergulho no abismo exterior, no dentro do imenso fora, na estridência silenciosa do cosmos.
A gigantesca rosácea, massa ígnea, está prestes a explodir diante de nossos olhos, bolha pirotécnica implodindo o espaço da tela. À desmaterialização do pétreo corresponde a desgeometrização da linha. Não há fundo, não há superfície. Apenas gás, vapor, éter.

Frederico Morais