Por Hélio Menezes*
Essas conceituações de arte afro-brasileira pareciam propor um balanço entre estética afro-religiosa, releitura de faturas africanas (forma), motivos da cultura e sociabilidade afro-brasileiras (tema) e a produção de uma “cultura material dos segmentos negros” (autoria) como pedaços de um amplo mosaico. Um programa que buscava deslocar o peso da autoria como critério de definição, acusando-lhe de um “purismo” pouco afeito à realidade miscigenada do Brasil. O foco da exposição, de todo modo, não era mesmo a biografia. E, nesse sentido, o módulo Arte afro-brasileira se distanciava de modo deliberado dos termos que tornaram conhecida a trajetória curatorial de Emanoel Araujo. A ambição era demarcar a diferença entre “os politicamente ‘negros’ e historicamente ‘afro-brasileiros’”, como escreveu Munanga
Mas, afinal, a realização de duas exposições paralelas no interior do mesmo projeto, com temas e peças afins, seria mera circunstância ou decorrência de conceituações antagônicas? Que motivos justificariam a presença de dois módulos abordando arte e raça na Mostra? “A exposição pronta, os períodos determinados e vem Emanoel Araujo propor uma visão a contrapelo da História: Negro de Corpo e Alma”, escreveu Nelson Aguilar39 na introdução ao catálogo da mostra.
O texto continua, indicando que o desdobramento de um primeiro módulo (Arte afro-brasileira) numa segunda exposição teria se dado menos em função de conceituações antagônicas propriamente ditas do que por disputas políticas no interior do circuito das artes afro-brasileiras:
no coro universal, surgem desarmonias, dissonâncias. Muda-se o sistema tonal, ignora-se o ruído ou expulsam-se os desafinados? Alguns artistas participantes de outros módulos por motivos estéticos aqui comparecem com função nova, para assinalar as brigas, os pactos, as reconciliações entre o corpo e a alma dos descendentes dos africanos
Brigas e dissonâncias que animariam as distintas perguntas que deram origem às duas propostas curatoriais. A pergunta, porém, persiste: que “função nova” Negro de corpo e alma pretendia extrair pela repetição de artistas presentes “por motivos estéticos” em Arte afro-brasileira? Indo além: numa área disputada e de conceituação pouco precisa, é viável separar motivações estéticas, como se fossem neutras, de suas funções políticas, novas ou velhas? Que histórias a prática curatorial pode contar por meio da seleção (e seu correlato ocultamento) de obras então consideradas afro-brasileiras? De que maneira essas escolhas incidiriam na consolidação de nomes e artistas como representantes dessa área, em detrimento de outras possibilidades?
O questionamento e desafio que deram origem a Negro de corpo e alma pareciam, entretanto, dizer menos respeito a uma desavença conceitual com o módulo correlato do que buscar, no interior da Mostra do redescobrimento, um espaço voltado à discussão sobre o racismo que subjaz o desconhecimento, do público em geral e do circuito artístico brasileiro em particular, das contribuições do negro na conformação das artes nacionais.
Nesse sentido, é bastante sintomático que o Museu Afro Brasil, idealizado por Araujo e inaugurado quatro anos depois da Mostra do redescobrimento (e dois após deixar a diretoria da Pinacoteca de São Paulo), tenha sido erigido no interior do mesmo pavilhão de Negro de corpo e alma, e com uma coleção inaugural composta por um número expressivo de obras nela expostas. Mesmo o argumento central da mostra, buscando sintetizar visualmente um discurso tanto de valorização da contribuição do negro nas artes quanto de denúncia do racismo das instituições de arte e da sociedade brasileira, de certo modo antecipava o plano do museu, construído em bases conceituais semelhantes.
Localizado no parque Ibirapuera, em São Paulo, no pavilhão Manuel da Nóbrega, o MAB foi oficialmente instituído pelo Decreto Municipal nº 44.816/2004, durante gestão da prefeita Marta Suplicy, e concebido por uma equipe multidisciplinar de profissionais afins à área, entre artistas, antropólogos, museólogos, pedagogos e historiadores. O espaço do museu é dividido em dois andares, sendo o primeiro dedicado às exposições temporárias (mais de 180 foram organizadas entre 2004 e 2015) e o segundo, à exposição de longa duração, abrigando um acervo de cerca de sete mil obras. Esta última é dividida em seis núcleos temáticos, organizados de modo contíguo no espaço expositivo e delimitados por cores em vez de por salas: África: diversidade e permanência; Trabalho e escravidão; Religiosidade afro-brasileira; Sagrado e profano; História e memória; e Artes plásticas: a mão afro-brasileira (englobando os setores de arte contemporânea, arte do século 19, arte do século 18 e arte “popular”).
Ao articular diferente objetivos — de valorização, denúncia e reparação — o MAB se configura como um museu histórico, etnográfico e de arte. Pretende, segundo o documento Museu Afro Brasil: um conceito em perspectiva, espécie de manifesto fundador da instituição,
unir História, Memória, Cultura e Contemporaneidade, entrelaçando essas vertentes num só discurso, para narrar uma heroica saga africana, desde antes da trágica epopeia da escravidão até os nossos dias, incluindo todas as contribuições possíveis, os legados, participações, revoltas, gritos e sussurros que tiveram lugar no Brasil e no circuito das sociedades afro-atlânticas”
A visão e o acervo de Araujo, ao ganhar corpo e forma institucional com o Museu Afro Brasil, se constituíram assim em referenciais decisivos do que se entende hoje pelo conceito. Mais que isso: como um pêndulo que oscila entre considerações ora mais devotadas à autoria, ora à forma e ao tema, a exposição de longa duração do MAB transplanta e condensa, no plano expositivo, muitas das discussões acumuladas em livros e artigos sobre arte afro-brasileira ao longo do último século. Se apresentando como uma síntese aberta, direciona-se o acúmulo dessas interpretações para um discurso mais abertamente político, de reivindicação de um espaço museológico de grande porte para as artes e expressões culturais afro-brasileiras.
Há, contudo, contradições nesse processo. O caráter enciclopédico do museu é uma delas, talvez a mais flagrante: “Esse é um museu muito difícil” é uma avaliação recorrente entre os visitantes. “Um museu que integre os anseios do negro jovem e pobre ao seu programa museológico, contribuindo para sua formação educacional e artística”, afirma Araujo42 a respeito dos objetivos do MAB. Mas os poucos textos de parede e a falta de sinalização de núcleos e obras colaboram para a dificuldade de leitura e entendimento da lógica expositiva. Um certo excesso de subjetividade curatorial que torna o museu pouco didático e, por consequência, menos acessível àqueles que a instituição pretende justamente atingir.
De todo modo, ao trazer à discussão o papel dos africanos e seus descendentes na formação do país, o MAB encaminha para uma reflexão necessária e muitas vezes silenciada sobre os processos de mestiçagem, de absorção e rejeição dos aportes africanos pela sociedade brasileira na constituição das artes, culturas e identidade nacionais. Reafirma, assim, e por meio de recursos visuais, a tese de que falar do Brasil implica, necessária e inescapavelmente, em falar de um afro-Brasil, dada a participação decisiva do “africano como colonizador” do país, para abusarmos dos termos de Querino.43 Nesse sentido, acredito que mais vale pensar o Museu Afro Brasil como um poderoso discurso sobre arte afro-brasileira e das relações entre Arte, África e Brasil, consolidado ao longo de quatorze anos de existência; mas não o único. O relativo boom de exposições realizadas no país sobre a temática afro-brasileira nesse mesmo período vem fomentando a ampliação dos debates sobre o tema, dando visibilidade a outros artistas afro-brasileiros, para além daqueles do repertório do MAB e, nesse processo, também gerando novas reflexões e dissidências.
Novas exposições, velhos dilemas: um olhar sobre a polifonia contemporânea
O conjunto recente de exposições de arte e artistas afro-brasileiros reúne entendimentos nem sempre afinados sobre o que, afinal, definiria esse campo. Dilemas entre forma, tema e autoria como critérios definidores continuam a orientar as perspectivas de curadores e analistas. Comum a todos, entretanto, é a dívida para com os diferentes argumentos e linguagens mobilizados pelas exposições sobre o tema que lhes antecederam e, em certo sentido, pavimentaram caminho.
Tomemos os diferentes argumentos de três mostras recentes como exemplo dessa polifonia: as exposições Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo (de 12 de dezembro de 2015 a 27 de junho de 2016, com curadoria de Tadeu Chiarelli); A cor do Brasil, montada no Museu de Arte do Rio (de 2 de agosto de 2016 a 15 de janeiro de 2017; curadoria de Paulo Herkenhoff e Marcelo Campos); e Diálogos ausentes, organizada no Itaú Cultural de São Paulo (de 10 de dezembro de 2016 e 29 de janeiro de 2017, com curadoria de Rosana Paulino e Diane Lima). Contemporâneas, as três mostras buscavam, a seus modos e com suas diferenças, tematizar a arte afro-brasileira como uma área particular de produção artística.
A exposição Diálogos ausentes, idealizada com base numa série de encontros mensais ocorridos ao longo do ano de 2016 para debater a presença afro-brasileira nas artes, se baseou fortemente na produção de artistas contemporâneos e no argumento de revisão crítica. Seu texto de apresentação assim a definia, expondo sua agenda artística e política:
Curada por Rosana Paulino e Diane Lima — duas mulheres negras, uma conjunção rara num meio conhecido pelo predomínio masculino e branco —, a mostra “convida(va) o público para um mergulho na rica e pujante produção artística de afrodescendentes, trazendo manifestações que podem ser lidas como um resumo dessa arte que transforma diálogos ausentes em diálogos presentes”.45 Com obras de Aline Motta, Dalton Paula, Eneida Sanches, Renata Felinto, Sérgio Adriano H. e Sidney Amaral, para citarmos apenas os artistas plásticos,46 a mostra foi organizada de modo a responder a uma série de inquietações e dilemas do presente, “operando como uma contranarrativa às representações estereotipadas da população negra”.47 Na primeira de suas salas expositivas, o critério de raça aparecia friccionado ao recorte de gênero, reunindo obras apenas de artistas negras. Embebido das discussões sobre interseccionalidade que o feminismo negro tem suscitado nos últimos anos, esse primeiro núcleo, espécie de sala de boas vindas da mostra aos visitantes, buscava dar visibilidade a uma produção que, mesmo no interior de debates e exposições sobre o tema, são usualmente secundarizadas.
A dimensão militante da mostra também se deixava notar nos núcleos subsequentes. Neles, os visitantes se deparavam com um conjunto de obras evocadoras de outros debates caros às discussões contemporâneas sobre raça e efeitos do racismo no Brasil. Da intolerância e perseguição religiosas, tematizadas no registro audiovisual da performance Unguento (2015), do goiano Dalton Paula, na qual variados elementos relativos ao orixá Exu são mobilizados — como cachaça, ervas e a própria rua — à aquarela Gargalheira (Quem falará por nós?), de Sidney Amaral, autorretrato que tematiza continuidades de marcas e instrumentos de tortura física do período da escravidão em configurações contemporâneas de violências sofridas pela população negra. Todas as obras do conjunto expositivo, ainda que diversas, figuravam motivos relacionados à cultura e/ou experiências sociais afro-brasileiras, fazendo incidir na autoria, mas também na temática, seus critérios curatoriais. Uma conceituação de arte afro-brasileira, portanto, pautada na produção artística de afrodescendentes que figurem motivos também afro-brasileiros.
Já A cor do Brasil, uma megaexposição montada no Museu de Arte do Rio durante os Jogos Olímpicos na cidade, teve inspiração distinta. Sem tomar o mote afro-brasileiro como eixo ou discussão central, essa exposição buscava “apresenta[r] percursos, inflexões e transformações da cor na história da arte brasileira”. Com um amplo espectro temporal, partindo das paisagens de Frans Post realizadas em Pernambuco no século 17 — as primeiras telas a retratar personagens negros no Brasil — até a cena contemporânea, “A cor do Brasil retoma[va] as implicações e projetos políticos da cor na atualidade, indaga[ndo] se existiria uma cor afro-brasileira na arte”.48
A resposta encontrada pelos curadores Paulo Herkenhoff e Marcelo Campos veio em duas direções: pela inclusão de obras de “artistas da cor” (nos seus termos) ao longo dos núcleos temáticos (A invenção do Rio, Bandeira do Brasil etc.), ao lado de artistas e obras de outras procedências. Antônio Bandeira (1922-1967), Arjan Martins, Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), Arthur Timótheo da Costa (1882-1922), Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Estêvão Silva, Heitor dos Prazeres, Jaime Lauriano e Leandro Joaquim (1738-1798) figuram entre estes artistas distribuídos pelo circuito expositivo, com obras que não necessariamente tematizavam questões afro-brasileiras. Outro caminho adotado pelos curadores foi a criação de um núcleo próprio, denominado especificamente de Arte afro-brasileira, dentro da exposição.
Esse núcleo apresentava uma configuração mais modesta. Localizado numa sala — ou, mais propriamente, num corredor de passagem, conectando duas salas expositivas à escadaria do prédio — o núcleo de Arte afro-brasileira trazia obras de artistas negros e brancos: três fotografias de Walter Firmo (retratando personalidades negras da música carioca: Pixinguinha [1897-1973], Cartola [1908-1980] e Clementina de Jesus [1901-1987]); quatro telas de Rubem Valentim; sete colares de conta estilizados de Júnior de Odé, cada um dedicado a um orixá; uma tela de Emanoel Araujo e outra de Carybé. O candomblé e o samba tematizavam quase a totalidade das obras reunidas — aliás, o único elo entre trabalhos de suportes e faturas variados, além de realizados num amplo espaço temporal (da década de 1940 a 1990). A temática aparecia como critério isolado, e a ideia da “cor” como fio condutor da exposição encontrava, naquele arranjo, uma solução de difícil alcance.
A exposição Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca, por sua vez, tomou o critério racial como guia na seleção dos artistas, apresentando enfoque e argumento expositivo distintos daqueles mobilizados em Diálogos ausentes. A começar pelos termos em uso: se em Diálogos as expressões afro-brasileira e afrodescendente apareciam como adjetivos sinônimos para designar um mesmo tipo de produção artística, expressando significados coincidentes, em Territórios o conceito de arte afro-brasileira cedeu lugar à categoria afrodescendente. A substituição, pouco usual em mostras de temática similar, buscava lidar com a dificuldade de reunir artistas e obras de estilos, faturas, temas e épocas díspares num rótulo de significado historicamente fugidio (e em disputa) como o de arte afro-brasileira. A mostra evitava, assim, a tendência unificadora do termo — no sentido da pretensão em circunscrever um movimento ou escola artístico de difícil demarcação, dada a multiplicidade de peças e atores que abarca — em prol do amplo “afrodescendente” — termo que, dada sua aplicabilidade a contextos também extra-brasileiros, acaba por tornar-se, em certo sentido, “desterritorializado”. Conforme explicava o texto de apresentação da mostra:
Curada por Tadeu Chiarelli, Territórios foi organizada em três núcleos, ou “ilhas” que “explicitam períodos dessa ‘não história’ da arte dos afrodescendentes no Brasil”. Sem a pretensão “de constituir qualquer narrativa que se estendesse coesa por todo o período aqui tratado”, a exposição contou com obras de artistas negros de variadas épocas,50 do século 18 ao contemporâneo, independentemente dos motivos de suas obras, ligados ou não ao universo afro-brasileiro.51 Nas palavras de seu curador: “Aqui não interessava discutir como o negro foi visto durante a história, mas como o artista afro em vários momentos da história do Brasil conseguiu, de alguma maneira, se tornar agente dessa produção, e não modelo, figuração”.52
A mostra também rendia uma homenagem à produção plástica e ao papel de Emanoel Araujo na aquisição para a Pinacoteca da maioria das obras expostas. Único diretor negro da história da instituição (de 1992 a 2002), foi em sua gestão que o museu passou a incorporar obras de artistas negros em seu acervo de maneira deliberada e sistemática, “imprimi[ndo] à Pinacoteca um notável diferencial: hoje ela é o museu paulista com a maior presença de artistas brasileiros afrodescendentes, excetuando-se o Museu Afro Brasil, criado pelo próprio Araujo em 2004”.53
À guisa de conclusão: ser ou não ser, eis a questão
Como pudemos observar, a expressão “arte afro-brasileira”, de sentidos variados, tem sido historicamente utilizada por críticos, acadêmicos e curadores tanto numa acepção estrita, para circunscrever um conjunto exclusivo de artistas afro-brasileiros, quanto aberta, definida não pelo fenótipo dos produtores, mas pelo “conteúdo afro-brasileiro” dos produtos, de modo a incluir artistas de outras procedências raciais. Ao nos determos em algumas contribuições analíticas importantes na constituição do campo e nos argumentos de algumas exposições e museus edificados ao redor do termo, tornou-se evidente que a multiplicidade de definições, variantes de acordo com interesses do momento e do pesquisador, por mais isentas que se propusessem, ecoavam sussurros das discussões raciais de seus tempos.
Com essas informações à baila, a frase de Emanoel Araujo que enceta esse artigo — “arte afro-brasileira existe e não existe” — se torna um pouco menos enigmática. A resposta, embora resultante de caminhos tortuosos, é relativamente simples: porque o conjunto de exposições, museus e artistas reunidos sob a expressão “afro-brasileira” revela, de maneira inequívoca, que a multiplicidade de questões que o termo comporta é absolutamente irredutível a um só critério definidor. Circunscrever a inventividade de artistas negros, de modo a buscar uma linha que os unifique, com um afinamento temático ou iconográfico na feitura de seus trabalhos, é como querer massas e maçãs, pela similitude de seus nomes, tenham o mesmo gosto ou atendam aos mesmos propósitos. Como bem disse Franz Fanon (1925-1961): “Não há um preto, há pretos”. Nesse sentido, “arte afro-brasileira”, como uma categoria autônoma, de fato não poderia existir.
O certo é que, se não quisermos ecoar velhos essencialismos raciais, há de se reconhecer, de maneira definitiva, não haver qualquer índice intrínseco a uma obra de arte que a relacione, sem mediações, à cor de pele de seu autor. O mesmo, porém, dificilmente se estende ao seu destino: a sub-representatividade de artistas negros nos acervos e coleções de galerias e museus, não obstante a excelência e diversidade de suas obras, revela que a cor de pele do artista é, ainda, critério camuflado da entrada de obras nos espaços expositivos de prestígio. Nesse sentido, “arte afro-brasileira”, como uma categoria política de reivindicação de visibilidade e reconhecimento da arte feita por mãos negras, não só existe como adquire uma importância fundamental.
Numa sociedade estruturalmente racista como a brasileira, seguir ignorando ou relegando a um segundo plano a produção de artistas afro-brasileiros, com sua variabilidade de estilos, filiações e interesses, significa seguir ignorando a própria complexidade da história da arte feita no país. Implica, assim, em marginalizar parte significativa de sua constituição — marcada, desde a colônia, pela presença decisiva de negros entre os nomes de relevância. É tempo, portanto, de levar a sério o ensinamento de Cunha54 ao afirmar que “o negro contribuiu de modo definitivo na desvinculação das artes plásticas brasileiras de sua tutela metropolitana”. Enquanto esse cenário de desigualdade não for revertido, de modo a incluir em pé de igualdade nos estudos, críticas e exposições a contribuição de artistas afro-brasileiros à arte nacional, a ideia de uma arte brasileira — e, no limite, o conceito mesmo de democracia — seguirão incompletos e, em larga medida, também desconhecidos.
Clique AQUI para ver a primeira parte do ensaio
_______
*ensaio publicado originalmente em virtude da exposição Histórias Afro- Atlânticas in PEDROSA, A.; CARNEIRO, A.; MESQUITA, A. Histórias Afro-Atlânticas. Volume 2. Antologia. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake; Masp, 2018. Com a colaboração de Artur Santoro, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz, Tomás Toledo.