Sociabilidades urbanas e populares na obra de Nelson Leirner

Por Theo Monteiro
     


             Recém-falecido, Nelson Leirner foi um dos mais relevantes artistas contemporâneos brasileiros, sendo inclusive pioneiro naquilo que se convencionou chamar de “arte contemporânea”: dinamitando toda e qualquer limite, ritual e regra impostos pelo sistema da arte. Nascido naquilo que seria o coração do establishment da arte brasileira, era filho do industrial Isay Leirner, que foi diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, colecionador e galerista, sendo bastante próximo de artistas, críticos e figuras-chave da cena artística brasileira daquele momento, e de Felícia Leirner, célebre escultora. Como alguém oriundo das entranhas deste meio, o artista percebeu desde cedo as contradições e questões ali existentes. 

             No momento em que inicia sua produção, na primeira metade dos anos 1960, havia um progressivo retorno a arte figurativa, mas com um olhar um tanto quanto diferente do de décadas anteriores, simplesmente porque não apenas o mundo, mas o Brasil em especial, se transformava de maneira nunca antes vista. Importante salientar que, entre as décadas de 1950 e 1980, o país viveu um processo de êxodo rural e adensamento sem paralelo na humanidade: no início de nosso processo de industrialização, na década de 1950, cerca de 80% da população vivia no campo. No apagar das luzes do regime militar, no início dos anos 1980, essa proporção se inverteu, com a maioria esmagadora vivendo agora em nossas cidades e capitais. 

           Essa nova sociabilidade urbana, bem como as imagens gerada por ela, provocaram enorme interesse por parte dos jovens artistas daquele momento. Alguns não tão jovens assim, como era o caso de Waldemar Cordeiro, que já era consolidado, e mesmo de Leirner, que já adentrava os 30 anos, mas ainda assim se voltaram para algo dessa temática.

             Quando falamos do processo de industrialização das potências centrais do sistema mundo, como Europa e Estados Unidos, falamos de um processo que se desenrolou séculos ou muitas décadas antes do brasileiro e que, ainda sem precedentes, foi sendo posto à prova e questionado, e assim pensando novos rumos, possibilidades e mesmo utopias para a sociedade. No caso brasileiro, quando nossa industrialização mal engatinhava, já eram gestadas inúmeras utopias e projetos tendo como modelo uma realidade diametralmente oposta da nossa e que, por não levarem em conta nossa especificidade, fracassaram ou não saíram como o esperado. Basta ver que hoje, quase seis décadas depois, nos desindustrializamos a passos galopantes. 

         Vários artistas que surgiam ou se repensavam nesse início de década de 1960 olharam com um pouco mais de atenção para essa realidade e especificidade da cidade brasileira e sua sociabilidade. Waldemar Cordeiro, a partir de seu trabalho “Liberdade”, de 1964, construiu sob um plano, com materiais como sucata, restos de papel e outros objetos descartados alguns jogos geométricos, criando formas geométricas côncavas e convexas que faziam citação a recém-criada capital Brasília, menina dos olhos do Modernismo. Os materiais descartados, enferrujados e com aparência de detrito presentes na composição, todavia, pareciam apontar para a impossibilidade ou fracasso daquele projeto de país. Enquanto artistas da pop-art norte-americana, como Andy Warhol, Roy Lichtenstein e James Rosenquist criavam imagens seriadas de produtos do melhor da cultura de massa industrial dos Estados Unidos, reproduzindo em pinturas a aparência de grandes objetos da tecnologia militar de ponta daquele país, como aviões de guerra e reproduziam ou imitando retratos de super-celebridades em revistas de grande circulação, por aqui, com uma cultura de massa mais incipiente, a abordagem foi diferente: Raymundo Collares pintava carrocerias de ônibus, Rubens Gerchmann reproduzia, muitas vezes a partir de colagens feitas com objetos toscos coletados, lares da classe média/baixa carioca, muito diferentes daqueles “sonhos de consumo” vendidos pela cultura norte-americana que a pop se apropriou. Carlos Zillio criou múltiplos inspirados nas marmitas de operários, dentro dos quais estavam inseridas mensagens de cunho político, com objetivo de lutar contra o regime militar vigente do momento.

            Em resumo, essa sociabilidade urbana “real” do Brasil interessava a muitos artistas daquele momento, e Nelson Leirner foi um deles. No entanto, ao contrário de muitos outros, esse interesse acaba por ser recorrente na obra do artista. Embora em alguns momentos tenha desaparecido, ele de alguma maneira sempre ressurgiu, atualizado, inteligente e profundamente avesso ao cerimonial que pautava não apenas o circuito da arte, mas também o sistema em que vivemos.

           Nesse sentido, o primeiro passo que faz em sua obra, o de trazer o “objeto ordinário” para o espaço do museu, um pouco a maneira de Duchamp, ajudaria talvez a uma aproximação com o público comum, a princípio alheio ou ignorante acerca do funcionamento do sistema da arte e também da vida. Um exemplo é o trabalho “Acontecimento”, de 1965, no qual três sequências horizontais de quatro ratoeiras formam um plano: todas idênticas, em cor de ferrugem e vermelho. A serialidade da composição, vista de longe, poderia remeter a uma pintura abstrata geométrica, a um jogo visual, o que acaba sendo quebrado pela presença de um rato empalhado “pego” por uma das ratoeiras. A própria armadilha para o roedor, em que pese ser um objeto industrial, aqui tem aparência enferrujada. A presença do rato, que longe de ser graciosa, desperta certa repulsa, provoca o espectador, o desafia, mas também o faz de alguma maneira se reconhecer naquele sistema, dado a banalidade da cena, que poderia se dar no interior de qualquer lar.

           Em toda a sua carreira, Leirner prestou “homenagens” a grandes nomes da História da Arte. A primeira foi ao argentino-italiano Lucio Fontana, que rasgava suas telas em um gesto quase romântico. Leirner reproduz a tela de Fontana, mas ao invés de tinta, o fez com tecidos, e o ato de rasgar, antes exclusivo ao genial artista, agora podia ser feito por qualquer um, desde que abrisse o zíper que reproduzia o “rasgo”. Assim, um gesto antes único, agora, por meio de objetos industriais e populares (tecidos e zíper) poderia ser feito por qualquer um, e quantas vezes a pessoa quisesse, dado que o zíper pode ser sempre aberto, mas também fechado.

           Não foi apenas com objetos dessa sociabilidade urbana que Nelson Leirner questionou o sistema da arte. Em 1969, na recém-inaugurada sede do MASP, o artista trouxe para o vão do museu, até hoje uma referência no quesito espaço público para a capital, nada menos que um playground: espaço bastante comum nas cidades onde crianças e caminhantes podem se divertir e passear. Dentre os “brinquedos”, incluiu um tanque de areia, as homenagens a Fontana e um altar no qual o santo venerado era ninguém menos que o célebre cantor Roberto Carlos. Totalmente integrada ao urbano, tal como o vão do museu, a ideia da instalação era ser de fato utilizada como um espaço da cidade, sendo, portanto, qualquer forma de intervenção ali parte do jogo. E ela ocorreu. Por conta do posicionamento do artista contrário ao regime militar vigente no país, que naquele momento entrava em seu momento mais repressivo, o comando de caça aos comunistas, grupo paralelo que agredia e constrangia militantes de esquerda, atacou o playground e destruiu parte das obras, que lá permaneceram destruídas. Ao mesmo tempo em que atraiu pessoas, Leirner também trouxe para seu trabalho, ainda que nesse caso talvez sem querer, a tensão ideológica vivida pelo país naqueles anos.

          Com o passar dos anos, o artista continuou fazendo da cultura popular, cada vez mais massificada (embora nem sempre) um elemento de subversão a um sistema da arte cada vez mais enriquecido e mercadológico. Com a sua mudança para o Rio de Janeiro, na década de 1990, se tornou frequentador assíduo da Saara, região da capital fluminense que abriga um conjunto de lojas especializadas em toda a sorte de produto popular, kitsch, em geral “Made in China”, como brinquedos e adesivos. Mickeys, Hello Kittys, Garfields, adesivos de bichinhos, brinquedos de plástico, imagens de santa, bandeirinhas, adesivos de caveira, miniaturas de jogadores de futebol, tabuleiros emulando campos de futebol. Toda essa vasta diversidade de produtos kitsch, alguns mais característicos da cultura popular brasileira, ao passo que outros já são claros exemplos de uma cultura de massa global, invadem e profanam reproduções de obras grandiosas da História da Arte, que Leirner muitas vezes povoou com esses peculiares personagens, em seus “tributos” aos grandes mestres da arte ocidental.

            Um exemplo divertido de releitura feito pelo artista é a série “Construtivismo Rural”, do final dos anos 90. Símbolo de um mundo cada vez mais industrializado, a arte construtiva fez parte da utopia modernista brasileira, sonhando um Brasil moderno, plenamente integrado à indústria, à lógica e à clareza visual, tudo isso num vocabulário universal e livre de qualquer traço de subdesenvolvimento. Leirner faz paródia dessa utopia, confeccionando obras concretas com tapetes de couro animal, estes por sua vez bastante comuns e parte de uma cultura popular do interior do Brasil. Enquanto o concretismo paulista originalmente buscou fugir de qualquer traço mais popular ou arcaizante do Brasil, Leirner aproximou e ssa criação popular, com suas geometrias, da ideia concreta.

            Conforme Lilia Schwarcz aponta em texto dedicado ao artista, a partir do ano 2000, Leirner vinha percebendo o acelerado processo de globalização vivido pelo mundo e passou a vender tudo o que produzia, se “rendendo” assim ao mercado. Entre aspas. Continuou o parodiando, cada vez mais. Se para ele talvez isso pudesse ser lido como uma espécie de “queda” (era notável, nos últimos anos, a completa descrença de Leirner com relação a arte), então sem sombra de dúvida “caiu atirando”. A sua série de trabalhos sobre catálogos de leilão da Sotheby’s, dos quais povoava com seus stickers e figurinhas populares dos mais diversos tipos, fazia um jogo duplo. Ao mesmo tempo em que tirava o caráter aurático e elitizado de um catálogo que era nada menos que um porta-voz de uma cultura de luxo, transformava o catálogo também em obra e o integrava nesse mesmo circuito do luxo. Um paradoxo, desses tantos que se queixava. 

         Os jogos de futebol que o artista reproduzia em suas esculturas, no qual em torno de um tabuleiro representando o gramado se apinhavam toda a sorte de bonecos, desde imagens da Nossa Senhora até jacarés de plástico, bem como símbolos ligados à ideia de Brasil e de país tropical, como palmeiras, bananas, macacos e bandeiras nacionais, são uma interessante e divertida paródia de como essa crescente globalização nos enxerga: como algo exótico,  selvagem e parte de um imaginário tropical. Ao mesmo tempo em que a globalização pasteuriza, ela também constrói estereótipos. Não deixa de ser curioso, no entanto, dado que, em função da cada vez maior quantidade de dinheiro que circula no mundo do futebol, os estádios estejam cada vez mais pasteurizados, gentrificados e inacessíveis para o povo. 

             Por fim, em um trabalho de 2014, realizado na Fundação Eva Klabin, Leirner concebeu uma instalação na refinada sala inglesa do local, que batizou de “Nossa casa, minha vida”, fazendo referência ao programa de moradias populares “Minha casa minha vida” criado pelos governos petistas. Nessa instalação, Leirner transformou o luxuoso aposento da fundação em um apartamento de classe média baixa característico desse programa habitacional, contendo móveis, eletrodomésticos, objetos decorativos e afins. Tudo isso dentro de uma opulenta residência.

          E foi com muita inteligência, humor e um tanto de sarcasmo que Leirner se tornou um dos artistas mais observadores dessa sociabilidade popular urbana e de massa originada no Brasil pré-industrial e continuou acompanhando-a muito atentamente ao longo de décadas, incorporando elementos novos e típicos, e através dela demoliu, provocou e transgrediu convenções, lugares e limites, colocando em pé de igualdade essa sociabilidade da chamada baixa com a alta cultura, mostrando que essa distinção, no final das contas, não fazia o menor sentido. 

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Imagem: Obra de Nelson Leirner da Série “Assim é ... Se lhe parece”, 2003, Adesivo sobre plástico - Coleção Galeria Brito Cimino