O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE...

por Gunnar B. Kvaran*


Yoko Ono é uma artista experimental vanguardista de destaque. Ela está ligada à arte conceitual, à performance, ao grupo Fluxus e aos happenings da década de 1960 (é uma das poucas mulheres a ter participado desses movimentos) mas, acima de tudo, ela foi a pioneira que questionou o conceitode arte e o objeto de arte e rompeu as barreiras tradicionais entre os campos da arte. Por meio de seu trabalho ela criou um novo tipo de relação com os espectadores, convidando-os a exercer um papel ativo na realização da obra. Ela também aproximou dois mundos – o Oriente e a cultura Ocidental – que se estendem e se fortalecem um ao outro em contínua inovação.

A exposição O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE... quer revelar os elementos básicos que definem a extensa e variada carreira artística de Ono – é uma viagem através da própria noção de arte, com forte engajamento político e social. De um lado, temos as obras-instruções, que fazem perguntas sobre os princípios conceituais por trás de uma obra de arte, destacando sua efemeridade enquanto dessacralizam o objeto, assim como demandando a participação dos espectadores na realização material da obra. De outro lado, temos as narrativas que expressam a visão poética e crítica de Ono.

Yoko Ono nasceu em Tóquio em 18 de fevereiro de 1933, em uma família de classe alta. Sua mãe, Isoko Yasuda, vinha de uma das famílias mais ricas do Japão, com longa tradição no setor bancário. Seu pai, Yeisuke Ono, tinha entre seus ancestrais samurais, nobres e sacerdotes. Apesar de ter-se formado pianista, ele decidiu seguir a carreira bancária. Durante a infância, Yoko mudou-se com a família, vivendo em momentos diferentes em São Francisco, Nova York e Tóquio. Ela cresceu falando inglês e japonês, e desde pequena teve formação musical, principalmente em piano e voz. Em 1937, ela ingressou na escola de elite Gakushūin. Durante a Segunda Guerra Mundial, sobreviveu a devastadores bombardeios a Tóquio no abrigo antibombas de sua família. Após a reabertura de sua escola, ela voltou a estudar e se formou em 1951. Naquele mesmo ano, Ono foi aceita na Universidade Gakushūin, estabelecida em 1949, como a primeira aluna mulher do curso de filosofia. Ali, ela foi apresentada ao Existencialismo, ao Marxismo e outras correntes filosóficas, e se familiarizou com as ideias pacifistas propagadas pelos círculos intelectuais do Japão pós- guerra. Ainda que ela tenha deixado a universidade após dois semestres para seguir com sua família para Nova York, as inclinações filosóficas da artista e sua crença primordial no pacifismo continuaram a influenciá-la em sua vida e obra. Em Nova York, ela se matriculou no Sarah Lawrence College, comformação em poesia contemporânea e composição. 

Em 1956, Ono casou-se com o já famoso compositor japonês de vanguarda Toshi Ichiyanagi, e por alguns anos os dois viveram juntos em Nova York. Por intermédio de Ichiyanagi e de Stefan Wolpe, um compositor que lecionava no Black Mountain College, Ono desenvolveu uma proximidade com John Cage, a quem ela já havia conhecido em uma palestra sobre o Zen na Columbia University. Foi durante esse período que Ono tornou-se reconhecida como artista independente. 

Ono faz parte da primeira geraçãode artistas do pós-guerra, que incluiShozo Shimamoto, JiroYoshihara e o grupo Gutai; Gendai Bijutsu Kondan Kai (grupo de discussão de arte contemporânea), conhecido como “Genbi”; Saburo Murakami eYayoi Kusama. Esses artistas rejeitaram a hegemonia da cultura americana, mas também lutavam contra suas próprias relações problemáticas com suas tradições artísticas e seu passado político e cultural, que havia trazido desastre e sofrimento ao seu país. Nos desejos ambiciosos de criar formas de arte novas, independentes e originais – tanto física como conceitualmente – eles foram lançados dentro de um campo experimental que levou à fusão entre pintura, música e poesia, escultura, arquitetura, teatro, happenings e performance. 

No outono de 1955, Ono compôs sua primeira Instrução, intitulada Peça de Acender: “Risque um fósforo e observe-o até que se apague” (Lighting Piece: “Light a match and watch till it goes out”). Foi apenas em 16 de julho de 1961 que ela realizou uma exposição de suas pinturas- instruções e desenhos na galeria de George Maciunas, AG Gallery, em Nova York. Ela expôs uma série de caligrafias, mas o foco principal da mostra estava nas telas, penduradas na parede ou apoiadas no chão, com as quais os visitantes interagiam de acordo com as instruções, fosse pisando nelas ou queimando-as, apenas para citar alguns exemplos das ações possíveis por meio das quais ela convidou os espectadores a realizarem o processo criativo do trabalho. Presente na galeria, Ono recebeu os visitantes, levou-os pelo espaço expositivo e explicou a natureza de seus trabalhos e o papel do público.

Menos de um ano depois, em 24 de maio de 1962, Ono realizou um concerto e uma exposição de arte no Sogetsu Art Center, em Tóquio, onde ela mostrou apenas as “Instruções para Pinturas” que ela havia pedido a Ichiyanagi que escrevesse sobre folhas de papel em branco. Em grande parte, esses eram os mesmos trabalhos já mostrados na AG Gallery, mas agora os espectadores eram convidados a participar do processo criativo conceitualmente e não fisicamente. Com essa simplificação – um exemplo incipiente da arte conceitual – Ono questionava a singularidade e santidade do objeto de arte. Em vez de trabalhar com a interação visual entre os materiais, suportes e métodos, como os artistas abstratos que dominavam o mundo da arte na época, Ono trabalhava desde a base do conceito, usando apenas palavras que são ao mesmo tempo descrição e definição da ação, e ainda assim, deixando uma margem considerável ao performer, material e/ou mentalmente.

O ponto de partida na palavra liga o trabalho de Ono à literatura, em particular, à poesia. Muitos críticos associaram corretamente suas Instruções a partituras musicais. Outros mencionaram os haicais, de métrica sem rima e sem ritmo, que se desenvolveram a partir da poesia japonesa clássica, conhecida como Tanka, no século XVI. Mas as Instruções de Ono não são poemas: são obras de arte visuais, um novo tipo de arte, o qual ela compartilhou com outros artistas contemporâneos como John Cage e George Brecht. A natureza de obra visual é destacada pelo fato de a própria artista ter usado o termo “pintura”, e pelo fato de que a obra lida com a pintura: Pintura para Ver os Céus (Painting to See the Skies, 1961);Pintura para oVento(Painting for the Wind, 1961); Pintura Fumaça (Smoke Painting, 1961); Pintura para Martelar um Prego (Painting to Hammer a Nail, 1961)e Pintura para Ser Construída na Sua Cabeça (Painting to be Constructed in Your Head, 1961)– todas envolvem uma discussão sobre arte. “Minhas pinturas, que são todas Pinturas - Instruções (e destinadas à realização dos outros)”, disse Ono, “vieram depois que a colagem e a assemblage (1915) e o happening (década de 1950) surgiram no mundo da arte. Considerando a natureza das minhas pinturas, qualquer uma das três palavras acima mencionadas, ou uma nova palavra, podem ser usadas no lugar da palavra pintura. Mas eu gosto da palavra pintura porque ela imediatamente se relaciona com ‘pintura de parede’, e isso é legal e engraçado”. No entanto, ela não intelectualiza seus próprios trabalhos. Ao contrário, ela deixa um “espaço de respiro” para o espectador/participante, no qual os trabalhos passam a  por meio de um diálogo lírico.

A originalidade dos trabalhos de Ono reside na sua efemeridade. Enquanto, por exemplo, a arte de Marcel Duchamp era essencialmente conceitual, ele mantinha a ideia de objeto de arte, assim como faziam muitos dos contemporâneos de Ono. Os trabalhos dela, entretanto, baseiam-se em um conceito desenhado de maneira neutra, sem dimensões psicológicas, associações pessoais ou subjetividade, e sua elaboração material é em grande parte determinada pelo espectador/participante, até admitindo a eventual dissolução/destruição da obra de arte. Assim, seu trabalho é um processo (vira ser–ser–foi) que tem um cronograma próprio. No contexto da história da arte, isso representou uma mudança radical. Anteriormente, a obra de arte era um objeto exaltado, atemporal (mesmo que sua criação pertença a um período histórico-artístico específico), preservado em instituições sociais especiais –museus de arte– e parte de um sistema comercial poderoso. Direta e indiretamente, Ono trata dessa natureza exaltada do objeto de arte de um ponto de vista artístico,mas também de um ponto de vista político e social. As Instruções, que são a antíteseda obra simbólica, escapam à possibilidade de se tornarem objetos vendáveis. Ao sublinhar e destacar a efemeridade do trabalho artístico, Ono o transforma em algo mundano, derruba a fronteira entre vida e arte. Ao invés de ser um objeto sublime e sagrado, a obra de arte se torna uma comunicação física e mental fugaz.

Embora possamos dizer que esse aspecto aproxima a obra de Ono à produção do Fluxus, que reduzia as elevadas qualidades materiais e estéticas e chamava a uma experiência estética mais ampla e tolerante, isso também vincula a artista à sua origem cultural no Zen Budismo, cuja essência reside na meditação que visa libertar a alma de seus grilhões terrenos. O Zen enfatiza o insight independente do pensamento lógico, e o caminho para alcançar esse estado é o koan, um enigma para o qual não há solução lógica. Da mesma maneira, Ono divorcia sua concepção artística da forma material e sublinha as qualidades subjetivas, meditativas–ou, usando suas palavras em relação aos seus happenings: “Não é uma ‘confraternização’ como a maioria dos happenings, e sim lidar consigo mesmo”.

Também rara na história da arte é a generosidade que Ono estende aos espectadores. Algumas das Instruções dão ao participante uma liberdade de expressão/expansão limitada, como em Pintura para Martelar um Prego (Painting to Hammer a Nail) e Pintura para ser Molhada (Painting to be Watered, 1962), nas quais a participação se dá na forma de uma repetição sutil. Em outros trabalhos como Pintura para Colorir(Add Colour Painting, 1960), Mamãe é Linda (Mummy is  Beautiful,  1997/2017) e Emergir (Arising, 2013/2017), no entanto, a artista outorga mais liberdade, convidando os espectadores a mudar ou acrescentar algo nos trabalhos, frequentemente de maneira muito pessoal. Assim, a obra torna-se um projeto físico ou mental compartilhado. O elemento participativo é um fator fundamental no processo de dissolução da singularidade da obra de arte – já que ele pode ser opera do simultaneamente por muitas pessoas e em lugares diferentes– assim como o é sua recusa do aspecto comercial. Uma consequência da participação de outras pessoas, e tal vez a mais sutil de todas, é que por meio da participação, o artista perde controle do processo e da evolução do trabalho, que ganha nova vida em versões realizadas com diferentes níveis de criatividade. Muitas das Instruções ancoradas em objetos, como Pintura para Martelar um Prego (Painting to Hammer a Nail), Árvore dos Pedidos (Wish Tree, 1981), Pintura deTeto, Pintura do Sim (Ceiling Painting, Yes Painting, 1966), instalação Mapa Imagine a Paz (Imagine Peace Map, 2003), Emergir (Arising) e Mamãe é Linda (Mummy is Beautiful) foram realizadas pelos funcionários do museu. Nenhuma obra veio ao museu em caixas de transporte com status tradicional de objetos artísticos únicos, originais.

Depois de reduzir a obra de arte à condição de ideia, Ono abandonou qualquer expressão artística e produção singulares; suas ideias e conceitos podem ser materializados de qualquer forma e por meio de todas as técnicas possíveis. Mas ainda que o ponto de partida não seja o material ou a técnica, certa abordagem estética é mantida. O uso de branco é um exemplo, refletindo tanto o fato de, no extremo Oriente, branco ser a cor da morte e do sofrimento, quanto no sentido mais modernista ocidental em que branco é neutro, não-cor, o que diminui qualquer expressão ou apego pessoal. Os materiais transparentes também são recorrentes em suas obras, assim como estruturas mentais primárias são outra característica de sua expressão artística.

Ao inventar novas formas de arte, Ono as carrega de narrativa e significado simbólico. Alguns trabalhos como Emergir (Arising) e Mamãe é Linda ( Mummy is Beautiful) são complexos e sutis em suas estruturas e narrativas, dependendo principalmente da contribuição dos participantes para criar potentes trabalhos coletivos e narrativas que expressem tanto as histórias individuais como a polifonia da voz coletiva da sociedade. Outros trabalhos são mais diretos, até violentos, como os relativos à destruição e reconstrução, catástrofes humanas ou naturais, como em Pessoas Invisíveis (Invisible People, 2011) e Peça Remendo (Mend Piece, 1966). A noção de uma ação destrutiva aparece em muitos dos trabalhos de Ono, especialmente depois dos anos 1980; na maioria das vezes, são seguidos de um senso de esperança ou uma ação de cura. Outros trabalhos são mais particularmente sociais e políticos, comoEmergir (Arising) e Memórias Horizontais (Horizontal Memories), que nos lembram que nossas sociedades ainda são governadas pela lei da selva, prejudicadas por uma enorme quantidade de sofrimento. O que todos esses trabalhos têm em comum é o fato de defenderem o feminismo, a paz e o ativismo coletivo, a conscientização sobre nossa própria existência e nossas relações uns comos outros. As obras se tornam um lembrete e um convite para tomar uma posição responsável, moral e crítica.

A arte de Ono é um desafio a todos os museus para reconsiderarem sua natureza e seus limites. Ela pressiona o museu a reinventar seu diálogo com os artistas e o público. O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE... apresenta uma seleção de Instruções de Ono das últimas décadas. Os objetos são mostrados no museu, emoldurados por sua arquitetura e seus mecanismos, enquanto outros trabalhos são comunicados nas redes sociais. Essa distribuição ao público das Instruções, fotos e filmes com a ajuda da internet e smart phones sublinha anatureza efêmera e desmistificada de suas obras. 

Ainda que a arte de Ono seja aberta e complexa, impulsionada pela necessidade de participação com outros, ela sempre mantém o cerne de seu significado, do qual é impossível fugir ou desviar. Em grande parte, sua arte lida com a própria natureza da arte, assim como com sua crença de que existe um futuro melhor, “se quisermos o suficiente”. 

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* originalmente publicado em 2017, na ocasião da mostra "YOKO ONO - O CÉU AINDA É AZUL, VOCÊ SABE…", apresentada no Instituto Tomie Ohtake. A versão agora apresentada no Blog da Curadoria traz o texto curatorial escrito por Gunnar B. Kvaran, curador e diretor do Museu Astrup Fearnley (Oslo, Noruega) proposto para o catálogo da exposição.

imagem: Yoko Ono com a instalação Skyladders (Escadas do céu), 2007. Foto: Stephan Crasneanscki ©Yoko Ono