Na iminência de seu centenário, Tomie Ohtake trabalha todas as semanas em novas pinturas, esculturas e gravuras, enquanto recebe serena visitas de interessados em perguntar ainda mais uma vez sobre sua trajetória e princípios. Para todo novo jornalista que lhe é apresentado, a família explica que é melhor não chegar com muitas expectativas, pois Tomie Ohtake fala pouco, quase nada – e não apenas por conta da idade. A força de sua produção deve-se, entre outras coisas, ao trato íntimo e espontâneo com um processo criativo liberado de qualquer compromisso com discursos explicativos. O quase silêncio da artista fala, portanto, de sua aposta em uma arte liberada dos princípios compositivos calculáveis e racionalizáveis que marcaram os discursos dos artistas concretistas em meados da década de 1950. Essa aposta abriu caminho para uma investigação contínua e coesa acerca da forma abstrata que extravasa os paradigmas geométrico-construtivos.
A seguir, propõe-se um percurso por entre alguns pequenos depoimentos apresentados por Tomie Ohtake em conversa com os autores em Agosto de 2013.
“Naquele tempo eu não sabia como preparar a tinta, mas também não gostava de perguntar para ninguém, então ficava tentando descobrir sozinha”
Incentivada por Keiya Sugano, reconhecido pintor japonês de passagem pelo Brasil, Tomie Ohtake passou uma semana experimentando a pintura a óleo em 1952. Então com 39 anos, dona de casa e mãe de dois filhos, ela nunca mais parou de pintar. Na biografia afetiva da artista, essa semana representa o momento de reencontro com um sonho nutrido no Japão e mantido em hibernação desde sua chegada ao Brasil, em 1936. Produzir arte, viver como artista – ambição que não tinha um direcionamento predeterminado e que começou alimentada pelos estudos mais tradicionais de temas figurativos: naturezas mortas, retratos, casas e paisagens urbanas. Apesar do convencional desses assuntos, Tomie Ohtake enfatiza a abordagem empírica que empregava por ver-se orgulhosa e ansiosa demais para ser introduzida aos princípios técnicos da pintura acadêmica ocidental que, assim como a aquarela que conhecera na escola que frequentou da juventude, no Japão, havia lhe parecido demasiadamente dada a virtuoses. A atenção para as qualidades intrínsecas dos materiais da pintura – textura, viscosidade, pigmentação, transparência, tempo de secagem etc. – começou, assim, como um quase acidente, tendo depois se tornado um dos traços distintivos de sua produção.
“Eu não dou título aos trabalhos para que a pessoa que os vê não fique com apenas um significado na cabeça. Não ter nome faz com que a pessoa use seu próprio pensamento”
Muito rapidamente, ainda antes do convívio mais continuado com artistas e críticos do Rio de Janeiro e de São Paulo, Tomie Ohtake desvencilhou-se da figuração explícita dos primeiros estudos e imergiu na exploração de abstrações feitas sem régua e sem compasso – formas livres não figurativas que não deixam de evocar superfícies aquáticas, luzes, estrelas, imagens do cosmo, a depender do imaginário do observador.
Para ela, essa escolha decorre menos de um desejo de associação direta com esta ou aquela vanguarda moderna e mais a ecos de sua filiação estética com formas e composições as mais coesas e condensadas. Abstração, portanto, para tornar mais direto e elementar o trato com a cor, o gesto e a materialidade da pintura. Abstração, também, para liberar a fruição das obras em um terreno aberto, sem roteiros e percursos predeterminados pela artista. Por fim, abstração pela predileção que Tomie Ohtake diz sempre ter tido dentre às coisas da casa, da cultura e dos rituais nipônicos – do teatro à religião, passando pela criação de adornos, ela diz sempre ter eleito os mais simples e condensados. Novamente, no universo afetivo mapeado pela artista, a simplicidade que encontra em sua casa, seu local de trabalho, confunde-se com aquilo que busca em sua pintura.
“Não tem conceito”
Quando questionada, Tomie Ohtake reitera – em uma atitude que mantem há décadas – que sua pintura não resulta da aplicação de conceitos, cálculos ou fórmulas previamente elaboradas. É tudo gesto, apenas gesto pictórico, ela garante. É impossível confiar totalmente nessa afirmação, pois da mesma forma como seria impossível expurgar por completo a gestualidade do processo pictórico, também é improvável que se elimine toda instância de pensamento e formulação lógica do processo criativo.
A verdade é que ao formular a “não-conceitualidade” de seu trabalho, Tomie Ohtake está prestando contas à história da arte e deixando clara sua diferença em relação às vanguardas concretas e neoconcretas brasileiras. Ao contrário dos programas, manifestos e princípios desses grupos, a prática da artistas funda-se na pesquisa do que pode seu gesto, quer dizer, dos encontros possíveis entre sua mão e os materiais que elege tanto em seus estudos quanto em suas obras. O conceito, assim, reside nas hipóteses de pesquisa de materiais, formas e cores que ela tem recombinado ao longo das seis décadas de sua produção. Nem um pouco aleatória em seus procedimentos, ela soube, em cada período, fixar algumas variáveis e manter outras em aberto, como um músico interessado em explorar aspectos alternados da escala musical.
“Depois da fase das ‘pinturas cegas’, enquanto não estava pintando, passava o tempo montando e combinando as formas, naqueles estudos com rasgos de papel e recortes”
O processo mais recorrente na elaboração das obras de Tomie Ohtake parte de colagens feitas com rasgos e recortes de revistas brasileiras e japonesas. Desde a primeira metade da década de 1960, empregou esse recurso para definir campos de cor próximos a formas geométricas, tornadas imprecisas pelo efeito dos rasgos feitos a mão no papel, ou seja, pelas texturas, ranhuras e rebarbas decorrentes dos desvios imprevisíveis que esse método impõe às formas. Nas décadas de 1970 e 1980, evidencia-se em seus estudos uma definição muito maior no contorno das formas. Isso decorre do uso da tesoura para fazer os recortes de papéis. Esses pequenos projetos reverberaram diretamente nas obras da artista, que muitas vezes segue em suas pinturas e gravuras tanto os contornos delicados das colagens quanto as texturas e tonalidades dos papéis que utilizou.
A existência desses estudos e a fidelidade de seus desdobramentos pictóricos não contradiz a aposta na gestualidade intuitiva defendida pela artista. Mas muda, sim, sua temporalidade. Ao contrário de um processo meditativo e longamente imerso em um estado de improviso e deriva das pinceladas, Tomie Ohtake apoia-se em instantes decisivos nos quais acaso, manualidade e intuição convergem intempestivamente. Para utilizar metáforas orientalizantes, seu pintar está mais próximo do golpe do samurai do que da meditação do monge. Esses gestos compactos ecoam, na continuidade do seu trabalho, em múltiplas reinterpretações e recombinações das formas, segundo um método empírico de exploração não-dogmática de possibilidades. As composições improvisadas nas colagens tornam-se então símbolos que a artista articula como pedaços de frases visuais, fragmentos de uma linguagem pessoal.
“Niemeyer disse uma vez que a linha feita com régua não é uma linha humana, que precisa ser feita a mão livre”
Quando Tomie Ohtake revisita essa fala de Niemeyer, a artista fala de si. Ainda que, em alguns momentos, tenha utilizado a tesoura para realizar seus estudos, ela nunca fez uso de materiais que conferissem precisão geométrica ao desenho e às formas, como a régua e o compasso. Assim, ela se manteve sempre aberta aos acasos e imprecisões da mão. Além disso, é possível pensar nas analogias constantes entre suas obras e a morfologia da arquitetura e da paisagem: a própria poética de Niemeyer funda-se na indistinção entre as curvas naturais e dos traços construídos pelo homem, fazendo o caminho inverso é possível apreender uma inteligência tectônica na produção de Tomie Ohtake, o que evidenciou-se a partir da década de 1980, quando começou a desenvolver esculturas e obras públicas concebidas como desdobramentos de suas formas e curvas pelo espaço físico tridimensional.
“Gosto de música, Beethoven e outras coisas de música clássica, mas para trabalhar preciso de silêncio”
Como esta conversa buscou esclarecer, a pintura de Tomie Ohtake visa a simplicidade do gesto e da forma. Talvez seja essa atitude objetiva e tão intensa que peça a quietude, fundamento para o exercício de observação e reformulação contínua de seu próprio alfabeto pictórico.
Paulo Miyada e Carolina De Angelis