Tomie Ohtake

Esta exposição de pinturas recentes de Tomie Ohtake apresenta um enigma interessante para o crítico ou para o público em geral: como ler as obras sem julgamentos de valor preconcebidos? No caso de Tomie, esses prejulgamentos talvez sejam especialmente onerosos; afinal, ela é uma artista ativa em seus mais de 90 anos, com meio século de uma produção que, embora amplamente reconhecida no Brasil, é de certa forma marginal à história da arte oficial do país. É claro que a falha aqui provavelmente não é da artista, mas do modelo que defende uma história com limites e categorias inflexíveis, que inevitavelmente serão confundidas por uma artista como Tomie, cuja obra vive precisamente no espaço intermediário entre os binários absolutos com que a história da arte costuma trabalhar: abstração versus figuração, expressionismo versus formalismo, tinta versus conceito. O trabalho de Tomie surpreende exatamente por sua capacidade de ser as duas coisas ao mesmo tempo, portanto, um desafio a nossa tendência como historiadores a procurar posições absolutas que facilitem nossa tarefa, mesmo que não reflitam tão bem a realidade. 

Outro preconceito que velou a compreensão do trabalho de Tomie é sua origem japonesa, que, embora sem dúvida importante, talvez também tenha se tornado uma espécie de categoria absoluta, de modo que a discussão de sua obra com frequência descamba para o zen, o budismo ou a caligrafia, como uma forma de orientalismo contemporâneo. Embora esses elementos sem dúvida estejam em seu trabalho de inúmeras maneiras formais, e talvez até no impulso filosófico, eu afirmaria que estas são fundamentalmente pinturas contemporâneas, de seu tempo e sua cultura, e que seguir um caminho até o antigo Japão pode ser mais uma maneira de evitar um confronto honesto e direto com essas pinturas enquanto objetos e imagens.

O que há exatamente nesta série de pinturas recentes? Em primeiro lugar, é imperativo explicar o que não é visível neste catálogo. Como em qualquer reprodução, as qualidades físicas das obras não são bem representadas na imagem impressa e veiculada, mas neste caso especificamente o encontro com o objeto é de extrema importância. A escala de cada pintura é cuidadosamente escolhida para preencher o espaço óptico do espectador no ponto exato entre o sufocante e o confortável. Essa decisão aparentemente simples, de produzir 25 obras aproximadamente da mesma escala (entre 150 e 200cm em cada lado), cria o formato de uma série e variações, sem hierarquia, mas que preparam o espectador para um delicado percurso pelas ideias e decisões da artista. 

Por mais simples que possa parecer, essa “ambientação” para o encontro entre o olhar  e a tela é uma habilidade muitas vezes esquecida entre os artistas contemporâneos,  talvez como um legado de nosso reflexo modernista para acreditar que a arte encerra seu próprio significado, independentemente de sua apresentação, ou o lado reverso, em que o posicionamento minucioso da tela torna-se uma espécie de instalação a dialogar com o espaço. Isto é diferente; é um espaçamento respeitoso e humano de pinturas convencionais, de uma maneira que atrai o espectador e incentiva sua leitura. 

Reconhecendo, evidentemente, as importantes diferenças históricas e culturais, poderíamos pensar na estrutura de uma Via Crucis, em que o observador é levado  por uma sequência deliberada, mas na qual cada etapa tem seu significado e seu pathos particulares, ao acrescentar-se à obra anterior e preparar para a seguinte. Isto é fundamentalmente diferente do sequenciamento que surgiu na arte do pós-guerra, particularmente no minimalismo e na arte processual, em que a sequência é o conteúdo. Neste caso, a sequência existe, mas como uma forma de enriquecer a experiência das obras individuais, mais que submetê-las a um padrão geral.

O outro aspecto que não é visível na reprodução é a variação de texturas entre as  obras. Algumas são densas como borracha, enquanto outras são translúcidas como pergaminho. Em alguns casos, o pincel tem um gesto quase agressivo, enquanto em outros ele mal roça a superfície. Do mesmo modo, muitas obras apresentam variações sutis de cor que exigem um olhar demorado à tela para perceber as pequenas variações de tom conforme uma camada de tinta interage com a outra. Cada tela é um ensaio em duas cores, no máximo três, que definem o tom e estruturam a composição. A série inteira percorre todo o espectro cromático, do violeta ao vermelho-cádmio, passando por rosas-ciclame, verdes-musgo, amarelos-limão, o que por si só bastaria para classificar Tomie como uma das grandes coloristas de sua época. Tal é o êxito dessas obras que, ao vermos as combinações de forma e cor, é difícil imaginá-las de qualquer outro modo: a forma sugere  a cor e a cor faz a forma. 

As obras também flertam com a metáfora e o símbolo de maneira original. A maioria das telas emprega o círculo como forma central. O círculo é ao mesmo tempo a mais sugestiva  e lúcida das formas, carregado de camadas de significado metafórico, enquanto também é, paradoxalmente, tão polissêmico a ponto de beirar o insignificante. O círculo, é claro,  é um símbolo de vida, de plenitude, de comprometimento, e também do cósmico. A metáfora cósmica emerge diversas vezes nesta exposição, através da sugestão de planetas, luas e eclipses. O círculo também lembra a interpretação por Pascal do universo como uma esfera cujo centro não está em parte alguma e cuja circunferência está em toda parte, imagem que foi plenamente desenvolvida por Jorge Luis Borges. A forma esférica, pelo menos como representada por Tomie, tem a característica adicional de ser virtualmente impossível de se pôr em escala. Não sabemos se estamos vendo a representação de um corpo celeste enorme ou de um ser microscópico; toda a noção de representação é assim colocada em suspenso.

Essa representação, carregada de dúvidas, de nada e alguma coisa ao mesmo tempo é uma das grandes contribuições de Tomie para a história da pintura, seu desejo de evitar o jogo de soma zero da abstração versus representação, quando na verdade toda representação conta com o abstrato, assim como qualquer abstração deve, por sua própria natureza, também ser uma representação. Os círculos nessas pinturas também são notáveis por trazer à atenção outro trauma da arte do século XX: o relacionamento figura-campo.

Desde Branco sobre Branco, de Malevich, os artistas procuraram uma maneira de aplicar tinta à tela sem sugerir uma ilusão visual ou um espaço recessivo. Muita tinta foi aplicada à tela, e ainda mais tinta foi espalhada sobre papel na tentativa de se chegar à raiz da percepção visual e seu impacto para a compreensão. O Brasil, em particular, tem uma relação fascinante entre o gestaltismo e a abstração desde os anos 1950, exatamente a década em que Tomie começou a trabalhar como artista, e não devemos esquecer seu relacionamento com Mario Pedrosa, o inigualável defensor da arte e da teoria modernas brasileiras. Um único círculo desenhado sobre uma tela inevitavelmente criará um relacionamento figura-campo, mas fundamentalmente diferente das composições de retângulos e linhas que caracterizam a maior parte da abstração, de Kandinsky até hoje. 

O círculo ao mesmo tempo delimita e contém o espaço, enquanto evita a perspectiva convencional. Sem começo nem fim, sem em cima ou embaixo, é a forma não hierárquica definitiva, ao mesmo tempo modesta em simplicidade e ambiciosa em referência. Passando de uma tela para outra, os círculos alternam entre as energias centrífuga e centrípeta, movendo-se para dentro e para fora, enquanto alguns deles repousam em perfeito equilíbrio. Esse movimento implícito apresenta um desafio do ponto de vista perceptivo/conceitual, pois não é um relacionamento tradicional figura-campo, mas sobretudo algo orgânico, respirando e quase vivo, outra forma, talvez, de um quasi-corpus, para usar o termo de Pedrosa.

Assim, depois de absorver o virtuosismo dessas pinturas -- sua cor, a forma circular  e o equilíbrio --, ficamos com a pergunta mais importante: o que elas comunicam,  qual é sua intenção? Aqui, mais uma vez, devemos começar pelo que elas não são: não são programáticas no sentido de abstracionismo, expressionismo, surrealismo ou qualquer outro “ismo” do século XX. Tampouco são especulativas no sentido de grande parte da arte contemporânea, cuja operação principal é apresentar o tema acima da resolução formal, quase como uma competição com o fotojornalismo na busca desesperada por uma conexão com o “real”. Na história da arte moderna, há uma espécie de dicotomia entre a busca pela forma (abstração geométrica) e a técnica (expressionismo abstrato). Em outras palavras, na primeira, forma e composição são os veículos do conteúdo, enquanto na segunda a técnica e seu desdobrar no tempo criam o foco principal. As pinturas de Tomie estão no centro exato dessa divisão: superando a brecha entre composição icônica deliberada e execução vigorosa. Eu diria que essas telas são, acima de tudo, exercícios de geração de temperatura emocional através do ato de olhar. 

A obra de Tomie resgata de uma posição de grande risco o ato prazeroso de se olhar atentamente uma determinada imagem para gerar experiências que não podem ser substituídas por outros meios. Não há texto, descrição, manifesto ou descrição contextual que necessariamente fornecerá uma experiência mais rica com a obra do que apenas sentar-se à sua frente e passar algum tempo com ela. Em uma era em que a arte é muitas vezes, na melhor das hipóteses, um exercício contingente de posicionamento e estratégia diante das instituições e dos consumidores do discurso artístico, essa é uma posição corajosa, quase um último grito pela autonomia da experiência artística. 

Na última década houve uma explosão de arte contemporânea que lida criticamente com o legado do moderno e o fracasso da utopia. De modo geral, esses artistas se concentram no contexto institucional da arte: como os preceitos revolucionários originais da vanguarda foram neutralizados ou mercantilizados pelo sistema da arte em geral. Tomie assume quase a posição oposta: uma tentativa de recuperar o sonho de uma experiência pura, autônoma e preeminentemente visual, livre de narrativa, representação ou conteúdo literário.

Por isso, no fim das contas, a grande contribuição de Tomie neste corpo de obras é ao mesmo tempo simples e complexa. Ao devolver o visual para o centro da experiência artística, ela cria um desafio sutil e discreto para o espectador refocar sua visão, silenciar o discurso confuso que cerca a arte contemporânea e olhar, olhar de novo e continuar olhando.

Gabriel Pérez-Barreiro