VER DO MEIO - COMO O MATO CRESCE ENTRE AS PEDRAS
Por Nelson Brissac

Por Nelson Brissac

Uma das características mais marcantes da metrópole contemporânea é ela não se dar a ver. A morfologia da paisagem, o desenho urbano, o esquema das principais artérias e mesmo a localização dos diferentes bairros escapam à experiência dos indivíduos, não se deixam apreender pela observação ocular. Olhamos para essa massa compacta de edificações e não conseguimos discernir a colina, o vale ou mesmo o 1 por ela encobertos. Tampouco somos capazes de intuir, ao andar pelas ruas, por onde passam as avenidas e as linhas de trem que articulam os pontos mais distantes da cidade.

Como cartografar a geometria variável das megacidades? O espaço demarcado por monumentos, radiais ou fronteiras implica visão de longe, distâncias fixas, perspectiva central. Nestes novos territórios, porém, não há mais referências.

Apenas uma variação contínua de orientações, ligadas à observação em movimento. O espaço não é visual: não há horizonte, nem perspectiva, nem limite, contorno ou centro. Estamos sempre no seu interior, no meio. 

Não se vai mais de ponto a outro, mas se toma todo o espaço de um ponto qualquer. Não se trata mais da travessia, mas de um deslocamento sem destinação no espaço e no tempo. Ocupar um espaço aberto, com um movimento turbilhonário cujo efeito pode surgir de qualquer ponto. Perde importância a localização geográfica: trata-se de se espalhar por turbulência no espaço, ocupando-o em todos os pontos.

Outro tipo de percepção afirma-se aqui. O observador está sempre em deslocamento, sem referências estáveis. Ocorre uma perda das escalas fixas. Não se tem mais como medir os elementos a partir de uma dimensão qualquer. As referências não têm um modelo visual, que possa servir a um observador imóvel externo. Temos percursos contínuos e sem destinação em espaços não demarcados: tudo o que resta são diferenciais de velocidade, retardamentos e acelerações. Difícil mapear esse espaço fluido e dinâmico. Os limites administrativos não servem para contornar esses fluxos imperceptíveis, essas relações não localizáveis. O território passa a ser a distância crítica entre diferentes situações. 

Os aparelhos óticos alteraram radicalmente nossa percepção geográfica. Eles projetam a imagem de um mundo que, embora desconectado de nossa experiência individual, parece ser imediatamente acessível. As perspectivas aéreas – como o Google Earth – redefiniram a cultura visual, com sua ambição a uma retórica universal, a ilusão do acesso absoluto ao mundo. A aproximação do próximo e do longínquo abole nosso conhecimento das distâncias e das dimensões. A apreensão do território só pode se fazer por meio de instrumentos. Ocorre uma passagem da visão à visualização. A memória topográfica dá lugar a uma ótica geométrica. 

O que está em jogo aqui são os limites da figuração, a incapacidade da mente humana para representar as enormes forças da natureza e da metrópole. Não temos ainda o equipamento perceptivo necessário para enfrentar essas novas dimensões espaciais. Estes espaços desconcertantes tornam impossível o uso da antiga linguagem dos volumes, já que não podem ser apreendidos. Esta mutação do espaço ultrapassou a capacidade do corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição no mundo exterior. 

Trata-se de uma nova experiência da tecnologia da cidade, que transcende todos os velhos hábitos de percepção corporal. Uma disjunção entre o corpo e o ambiente urbano que indica nossa incapacidade de compreender os processos complexos de reestruturação da metrópole contemporânea, de mapear a enorme rede global de produção e comunicação descentradas em que estamos presos como indivíduos. 

Todas as tentativas de retratar a cidade por meio da experiência da rua – a deriva benjaminiana, os planos afetivos dos situacionistas ou a street photography – implicavam a expectativa de uma renovação da percepção. Mas, no universo totalmente construído e elaborado do capitalismo tardio, não há lugar para essa renovação.2 Se na cidade tradicional a experiência limitada e imediata dos indivíduos era ainda capaz de sustentar uma apreensão abrangente de sua forma e dinâmicas sociais, hoje isso não ocorre mais.


Arnaldo Pappalardo
Centro, 2015
Impressão jato de tinta

A legibilidade da paisagem das cidades era relacionada à imaginabilidade, à capacidade de evocar uma imagem forte no observador. Pressupunha referências visuais, um domínio sensorial do espaço, mediante experiência e observação ocular. Mas a configuração atual impede o mapeamento mental das paisagens urbanas. As cidades não permitem mais que as pessoas tenham, em sua imaginação, uma localização, correta e contínua com relação ao resto do tecido urbano. A experiência fenomenológica do sujeito individual não coincide mais com o lugar onde ela se dá. Essas coordenadas estruturais não são mais acessíveis à experiência imediata do vivido e, em geral, nem conceituadas pelas pessoas. Dá-se um colapso da experiência, pressuposto de todo empreendimento de retratar a cidade.

O espaço urbano perdeu situabilidade – uma inscrição precisa em dimensões geográficas, acessíveis à experiência individual. Instaura-se um problema de incomensurabilidade entre o construído e o projeto, o edificado e o entorno, os diferentes espaços da cidade. Torna-se impossível representar. O espaço hoje é sobrecarregado por dimensões mais abstratas, que a imagem fotográfica, por mais abrangente que seja, não dá conta. 


Os reordenamentos intensivos da paisagem colocam novos problemas de percepção e representação. Aqui, simplesmente observar não é solução. Estamos defrontados com um espaço não visual. O engajamento com as grandes escalas leva à substituição da paisagem imediata por uma nova paisagem: abstrata, dotada de escalas de tempo-espaço que escapam à experiência individual. Introduz a ideia de uma ‘visão’ que abrange o que nenhum ponto de vista pode abarcar. Vemos cada vez mais imagens de paisagens que não podem ser apreendidas diretamente pelo olho. Um modo de percepção não ocular.

O controle da visibilidade, pelas instituições culturais e pelos meios de difusão da informação, visa determinar a imagem da cidade e dos seus habitantes. Delibera sobre o que é visível e o que está condenado à invisibilidade. Uma repartição do sensível, fixando o que é partilhado, comum a todos, e o que é excluído. Os enunciados definem regimes de intensidade sensível, traçam mapas do visível, relações entre modos de fazer e modos de ver.

O terror da invisibilidade, da obscuridade do anonimato, está presente desde o advento da multidão, produto das grandes cidades. Baudelaire descreve um homem que ao caminhar pela rua percebe, vindo em sua direção, uma mulher. Uma iluminação lhe diz o quanto essa desconhecida poderá significar para ele. Mas, enquanto ainda se dá conta disso, a mulher passa por ele e desaparece no torvelinho urbano. Não por acaso o flâneur, aquele que desvela nos passantes a fisionomia da cidade, abre caminho como um esgrimista por entre a multidão.

A metrópole contemporânea, ao intensificar ao máximo os dispositivos de exposição, exacerba essa condição. A questão hoje é: como se fazer ver na cidade? A proliferação dos selfies é uma manifestação da vontade dos indivíduos de atestar sua presença no epicentro dos eventos. Apropriar-se do espaço público pela imagem, inscrevendo o próprio retrato na paisagem urbana. Como já se vinha fazendo com os grafites e as tatuagens: inscrições de indícios, marcas de identidade e rastros de presença, no corpo e na paisagem. 

Hoje a cidade se fotografa, ininterruptamente, de todos os ângulos possíveis. O retrato e a pintura de paisagens foram, desde o Renascimento, uma prerrogativa do poder e do dinheiro. Agora, ao mesmo tempo em que se vive sob a sensação de anonimato e obscuridade, o Instagram produz um fluxo contínuo e avassalador de imagens de rostos e paisagens. A cidade se fotografa sem parar. 

Ocorre uma dispersão do ponto de vista, não mais centralizado no indivíduo, paradigma da perspectiva, instrumento da homogeneização do espaço. O resultado é a multiplicação dos pontos de vista. A cidade surge como um caleidoscópio, uma conjunção de modos de ver, em que não existe mais um referencial dominante. Não existe mais uma maneira instituída de ver a cidade, prescrita pela pintura e pela fotografia. Nesse novo contexto da produção contínua de imagens, qual o significado da fotografia? Qual é o papel, hoje, do fotógrafo?

Por que, então, fotografar? Como abordar, fotograficamente, São Paulo? O trabalho proposto aos três fotógrafos – Arnaldo Pappalardo, Mauro Restiffe e Pio Figueiroa – foi apreender a cidade desde suas ruas e veículos. Imersos nas situações que experimentam cotidianamente seus habitantes. Sem recorrer a nenhum ponto de vista privilegiado, nenhum recurso técnico que permita uma visão abrangente, de longe. Em vez de fotos aéreas, um olhar da superfície, do plano da vida urbana. Travar um corpo a corpo com a metrópole, de dentro dela. 

A fotografia que se engaja num embate com a matéria, como uma operação física sobre os elementos, aproxima-se da gravura. Aqui o olhar fotográfico tem o ímpeto do gesto que vai cortar a superfície, conquistar o relevo. A vista voltada para a linha do horizonte, mas os pés lastreados no chão. O fotógrafo atua sobre um mundo sólido e resistente. Ele parece empunhar um buril.5  

O fotógrafo encontra-se inapelavelmente mergulhado na cidade, de modo que olhar é também andar, visualizar é tatear por entre muros. Como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um objeto erguido diante dele e que fosse preciso contornar. Há um encavalamento entre o visível e o tangível. Esse campo denso entre aquele que vê e a coisa que é vista é constitutivo de sua visibilidade. O olhar apalpa as coisas: estamos no meio do mundo. O tecido do mundo é cerrado como uma vegetação espessa. Enlace de cor, volume, rugosidade ou lisura, dureza ou moleza. Laço que nos ata a tudo ao redor: a visão se faz do meio das coisas. 

Ver, então, não é ver desde um ponto de vista, mas de todos. Olhar um objeto é mergulhar nele. Os objetos circundantes tornam-se horizonte, a visão é um ato dos dois lados. Ver um objeto é ir habitá-lo e dali observar todas as coisas.  Mas como também nelas estou virtualmente situado, tomo de diferentes ângulos o objeto de minha observação. A visão é localizada, uma relação entre objetos situados no mundo.6

Essa condição se define assim: estar no meio, como o mato que cresce entre as pedras. Mover-se entre as coisas e instaurar uma conexão entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer. Sem começo nem fim, mas entre. Uma zona de indiscernibilidade, em que se apagam todos os limites, todas as fronteiras. O meio é o lugar onde as coisas adquirem velocidade.

Ver do meio da cidade, por entre as coisas. Ocupar o território pelo meio, transbordar, como um rio sem margens. Os fotógrafos fizeram expedições que partiram em todas as direções, ramificando, espraiando-se pela cidade como uma inundação. Uma trama de percursos que se cruzavam sem parar. Na metrópole, estamos sempre no meio. 

Não podendo ver de longe, a que distância observar a paisagem? Como medir essa distância? Como o fotógrafo estabelece a distância para ver a paisagem, quando na metrópole se está sempre no meio, sem parâmetros de escala para avaliar as dimensões? A questão do perto e do longe, da vizinhança e da distância, da latitude e da longitude, se coloca em toda operação contemporânea de retratar a cidade. 

Como ver do interior de espaços muito amplos e fragmentados, cujo desenho não podemos intuir de nenhum de seus pontos? Uma das estratégias adotadas pelos fotógrafos foi aproximar-se e retratar os habitantes. Observar esses personagens bem de perto, praticamente extraídos do entorno urbano em que foram capturados. Como se aqueles corpos, vestimentas e atitudes traduzissem, neles mesmos, todo um mundo. A cidade refletida num rosto. 

Pois sabemos que o rosto pode ser retratado ou como um contorno ou por traços dispersos, linhas fragmentárias que escapam ao contorno e configuram toda uma paisagem. O close-up não é um recorte, ele arranca o rosto de suas coordenadas espaço-temporais para constituir um território. Ele traz consigo um fragmento de céu, de paisagem, com o qual o rosto se compõe. É como um curto-circuito do próximo e do longínquo. 8 

Se o rosto pode ser apreendido na paisagem, a paisagem também pode ser captada no rosto humano. Pois não há fisionomia que não acolha uma paisagem desconhecida, não há paisagem que não desenvolva um rosto. A paisagem só se revela ao fotógrafo que sabe captá-la em sua manifestação anônima num rosto humano. Indivíduos que não pretendem chegar à posteridade pelas fotografias e, por isso mesmo, transportam para as imagens todo o seu mundo cotidiano. Trata-se de flagrar esse momento em que o sujeito se inteira da fisionomia da cidade e, ao mesmo tempo, de si mesmo. Seu rosto então assemelha-se mimeticamente à cidade que ele habita.9 

O rosto impõe uma distância ao fotógrafo, um recuo específico que se deve ter para retratar suas feições. Na falta de parâmetros de localização na cidade, o rosto estabelece uma relação entre o observador e aquilo que ele vê: a distância mais curta. Aquele que fotografa indivíduos na multidão desloca-se de perto em perto, de um rosto a outro, imediatamente ao lado.




Mauro Restiffe
Planos de fuga, 2014
Fotografia em emulsão de prata

Outra abordagem consiste em enfocar paisagens urbanas e seus eventos. Aqui é o horizonte construído, bloqueando toda perspectiva, que determina a distância da observação. Nos planos abertos, as tomadas feitas mais de longe, ergue-se o paredão de concreto da área central e o muro de blocos nas periferias. A paisagem sem reboco que absorve tudo na sua textura matérica. Os contornos são mais uma vez transbordados, as imagens são campos granulados de cinza ou cor. O construído estabelece de onde ele deve ser visto, quando é que ele se deixa ver. Ver de longe é como ver de perto. A panorâmica é como o close.

É a tentativa de duas pessoas, andando em direções opostas, de manter-se mutuamente no campo de visão, apesar da curvatura do terreno, que permite uma definição topológica do espaço. Trata-se de um esquema de paralaxe. Paralaxe é a alteração da posição angular de dois pontos estacionários relativos um ao outro como vistos por um observador em movimento. É a alteração aparente de um objeto contra um fundo devido ao movimento daquele que vê. A visão é determinada pela posição do observador em movimento em relação a outro, que também está se deslocando. 

Trata-se de entender como o mundo se mostra aos indivíduos que se movem uns com relação aos outros. Os limites são determinados pela distância máxima que duas pessoas podem ocupar no terreno, sem perderem-se de vista. A possibilidade de duas pessoas observarem-se reciprocamente estabelece um quadro de referência, é um modo de determinar as distâncias, os limites do espaço. O problema da paisagem, que parece indiferenciada, é encontrar um modo de abarcar o seu volume. 

O resultado é um modo de medir, de se posicionar, dada a indeterminação do território. Estabelecer distâncias numa área não delimitada. O horizonte é dado pela possibilidade de manter esse ponto de vista recíproco. Essa noção de horizonte interno, criado pela trama de perspectivas, determina relações transitórias, dependentes da posição relativa ao outro. O observador não é nunca suposto estacionário, mas em movimento, em posições que mudam continuamente em relação ao horizonte.12 

Estar no meio, entre as coisas, sem um ponto de vista privilegiado. Não se começa por um plano, um desenho de uma figura geométrica que seria depois apreendida por uma vista aérea, do alto. Partir não do plano, mas da elevação. O que se ergue diante dos nossos olhos, o que obstrui a visão. Essa distinção de plano e elevação corresponde à diferença entre o jardim francês e o jardim inglês. O paisagismo francês, geométrico, permite que de qualquer ponto se apreenda o todo. Já o jardim inglês, cortado por aleias em curvas, é dominado por árvores que impedem que um único ponto de vista abarque todo o terreno. Há sempre um obstáculo diante do observador, obrigando-o a se deslocar para ver. Em vez de um olhar estático, tem-se uma visão peripatética, em que a percepção que se terá do jardim não provém de uma única imagem, mas será a soma, na mente do observador, de vários pontos de vista. A observação se faz em movimento. Essa paisagem é para ser “vista com os pés”.13 

O traçado é desenhado a partir do terreno, por alguém que caminha por ele. Nos mapeamentos de territórios com grandes curvaturas, trabalha-se com medidas feitas nas próprias superfícies, sem considerar nada fora delas. A distância entre dois pontos é definida por relações de equidistância: ou é igual à distância entre outro par de pontos, ou a primeira distância é maior ou menor que a outra.14 

É um procedimento de avaliação das distâncias por medidas transitivas, próprias de uma topologia de curvatura variável. Ao caminhar por entre as coisas, percebemos o seu ordenamento, podemos avaliar qual está mais próxima e qual a mais distante, independentemente de uma grandeza exata. Uma espacialidade baseada em relações de contiguidade, que permitem estabelecer rigorosamente que um ponto está próximo a outro, mas não exatamente por quanto, visto que essa separação pode ser ampliada ou reduzida. Uma operação própria a superfícies em variação contínua.

Relações de intervalo, em vez de distância. Porém não há um intervalo definido entre eventos distantes, só entre eventos muito próximos um do outro. O caminho vai de um ponto a outro vizinho. Os pontos, independentemente do intervalo, têm uma ordem. Num caminho, um ponto pode estar entre dois outros que estejam perto dele. O intervalo é uma relação entre dois eventos vizinhos, mas não é dado de antemão que sabemos como medi-lo. Contudo, supomos que os eventos têm uma ordem. Podemos dizer que certo evento está mais perto de outro que um terceiro, de modo que, antes de fazer medidas precisas, pode-se falar da vizinhança de um evento.15 

A noção de distância, que exige mensuração, se opõe à de vizinhança, puramente topológica. O espaço topológico é aquele que se ocupa sem medir. Esse espaço só possui homogeneidade entre pontos infinitamente próximos, e a conexão das vizinhanças se faz independentemente de qualquer via determinada. É um espaço de pequenas ações de contato, que só se pode explorar avançando progressivamente, de perto em perto.16 

O território é tomado a partir do nível local dos habitantes da superfície e de seus processos de medida. O espaço possui localmente uma geometria que é variável de ponto a ponto. Essa abordagem contrasta com o ponto de vista extrínseco, a visão de fora, onde a curvatura significa a maneira como o espaço se curva num espaço maior. Estamos sempre no seu interior, no meio, com visão apenas local. 

A noção de vizinhança implica outro modo de avaliar as distâncias. Trata-se de determinar a vizinhança sem precisar da distância e da quantidade para medi-la. A topologia usa o dentro, o fora e o entre, a orientação e a direção (para, antes, depois), a vizinhança (perto, sobre, a seguir), o prolongamento, a dimensão: realidades sem medida. Relações de proximidade, de afastamento, de acumulação: posições. A geometria métrica instaura as distâncias apreendidas pela visão, ao passo que a topologia, baseada no tato, revela as vizinhanças.17 

O fotógrafo da metrópole procede, ainda que possa parecer paradoxal, topologicamente. Como um topógrafo, ele cria um campo, dentro da cidade, onde consegue ver. Estabelecendo relações de proximidade, de vizinhança, com as coisas. Rostos e paisagens imediatamente próximos, em relação aos quais ele pode determinar um recuo adequado para capturar seus traços. Ele avança de perto em perto, como que tateando. Uma proximidade que lhe permite medir a distância que o separa das coisas. 

Como ver a metrópole? Como abarcar esse território que resiste à observação? Apreender o que, em razão da grande escala, não pode ser medido. Vastas distâncias não se medem diretamente. Não se pode abarcá-las pelo olhar, não podem ser percorridas: elas escapam à experiência. 

Apreender grandes dimensões, espaços tão extensos que escapam à percepção visual, é uma questão reiteradamente colocada pela ciência. A Terra se move? Não podemos nos afastar da Terra para vê-la girando, essa constatação tem de ser feita da Terra. Não é possível, para um observador situado no planeta, perceber o movimento de rotação da própria Terra. Qualquer movimento que seja atribuído à Terra, por seus habitantes, logo participantes do mesmo movimento, é para nós totalmente imperceptível, como se não existisse.18 Trata-se de apreender o que não se pode observar diretamente. 

Por experiências realizadas na própria Terra não se poderia descobrir se ela está em repouso ou em movimento constante. O observador, num navio ou numa nave espacial, não sabe se está caindo ou em movimento acelerado. Não há como distinguir entre aceleração e um campo gravitacional.19 Essa questão diz respeito à necessidade do observador em se localizar (determinar seu movimento) sem remeter a uma dimensão maior, sem ver de fora. 

Como, então, apreender o formato de grandes extensões de terreno, a forma da Terra? Como determiná-lo desde o seu interior, do solo, da superfície do planeta? Gauss estabelece os procedimentos para o levantamento topográfico de grandes territórios, para desenhar o relevo terrestre. A área deve ser coberta por uma trama de triângulos cujos vértices são conectados visualmente. O trabalho consiste em estabelecer a trama e determinar os ângulos com precisão. Cada ponto de triangulação tem de ser visível desde ao menos duas direções. O levantamento topográfico, então, seria baseado em distâncias determinadas visualmente.20 

Mas a operação se defronta com muitas dificuldades: as áreas costeiras são planas e cobertas por florestas, impedindo a visão a grande distância. A fixação de marcos trigonométricos não pode ser equacionada por meio de um dispositivo de visualização direta. Para visualizar um território muito extenso deve-se explorar a geometria do terreno desde dentro, considerando como as coisas apareceriam a alguém vivendo num espaço bidimensional. 

Na metrópole somos como os seres bidimensionais de Flatland (Planolândia, na edição brasileira), a famosa novela inglesa do século XIX que retrata um mundo plano.21 Um mundo em que as criaturas se movem livremente na superfície, mas sem poder se elevar acima ou mergulhar abaixo dela. Na condição de habitante desse mundo plano, tudo o que se pode ver são perfis, pontos e linhas retas. Não existe acima ou abaixo, dentro e fora. Para serem apreendidos, os sólidos precisariam ser vistos de fora. Sem poder (a princípio), na vida cotidiana, observar a cidade de fora, do alto, seus habitantes se localizam olhando por entre os prédios, pelas frestas das ruelas da periferia. Pelas poucas perspectivas abertas por avenidas, marginais de rios e ferrovias. 

O espaço em grande escala é plano? O que ocorre no espaço físico muito além da experiência? A curvatura de uma superfície não é aparente para quem está nela. É preciso determinar as propriedades de uma superfície curva a partir de medições feitas inteiramente na própria superfície, sem remeter a uma terceira dimensão. Os seres achatados determinam a geometria do seu universo sem sair do espaço de duas dimensões, sem olhar para o céu, pois eles não conhecem a altura. No seu universo, a distância mais curta não é uma reta, de que não têm nenhuma experiência, mas uma linha curva, uma geodésica. 

Ver do chão, da superfície. A abordagem corresponde à percepção que tem o habitante da cidade. Não é possível ver de outra dimensão, de fora. É a questão que sempre se colocou quando se trata de medir a distância entre as coisas, de apreender as dimensões do espaço, as grandes escalas, as ilimitadas extensões metropolitanas e da paisagem. 

Essa é a proposta deste projeto. O desafio colocado aos fotógrafos, os procedimentos que tiveram (naturalmente) de adotar para enfrentar a topografia aplainada da metrópole. Em vez de relações com elementos externos, de uma terceira dimensão, analisar apenas interações planas. Um mundo bidimensional, feito só de linhas. Uma topologia alternativa: conexões contínuas que permitem a interação local, de perto em perto, com outros lugares. 

Manter a paisagem plana e obrigar o observador a ficar junto ao sítio local, em vez de saltar por cima dele. Trata-se de uma nova relação topográfica entre o pequeno e o grande, perto e longe. Uma mudança de topografia, conformando sítios visíveis e rastreáveis. Não há nada que seja não local. A topografia consiste em considerar como locais os elementos e conectá-los: aplainar. Estabelecer conexões. A paisagem se achata, obrigando o observador a seguir sem saltos nem quebras, como num espaço bidimensional. Aprender a navegar nesse espaço aplainado, a ver de dentro.22 

Mapear em grandes escalas exige apreender o que não pode ser medido diretamente. Não há como visualizar intuitivamente a forma do espaço em que estamos mergulhados. A curvatura da superfície não é perceptível para quem está nela. Para saber se ela é plana ou curva, é preciso fazer medições na própria superfície. Ver do meio, de perto em perto. Explorar a paisagem plana. 

O fotógrafo percorre a cidade obedecendo a essa geometria, seguindo suas linhas geodésicas, acompanhando a curvatura do terreno. Ele avança pela metrópole como o artesão segue a matéria, atento aos veios de minério na montanha, ao talhe variável na pedra e ao comportamento do metal conforme a temperatura. O fotógrafo segue a cidade.

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Imagem: Pio Figueiroa -  Sem título, 2014 - Impressão em jato de tinta sobre Hahnemhle Rice 100gr

NOTAS
1 Virilio, P. L’espace critique. Paris: Christian Bourgois éd., 1984.

2 Jameson, F. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. New York: Duke University Press, 1991.

3 Rancière, J. A partilha do sensível. São Paulo: EXO Experimental; Ed. 34, 2005.

4 Benjamin, W. Paris, capital do século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.

5 Bachelard, G. Introdução à dinâmica da paisagem. In: _______. O direito de sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

6 Merleau-Ponty, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1980.

7 Deleuze, G.; Guattari, F. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.

8 Deleuze, G. L’image-mouvement. Paris: Minuit, 1983.

9 Deleuze, G.; Guattari, F. Mille Plateaux, op. cit.

10  Didi-Huberman, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

11 Serra, R. Sculpture: Forty Years (McShine, K.; Cooke, L., ed.). New York:

The Museum of Modern Art, 2007.

12 Krauss, R. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge (MA): MIT Press, 1986.

13 Bois, Y.-A. A Pitoresque Stroll around Clara-Clara. In: Richard Serra (Foster, H., ed.). Cambridge, MA: MIT Press, 2000.

14 Serra, R. Writings, Interviews. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.  15 Russell, B. Análise da matéria. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

16 Deleuze, G.; Guattari, F. Mille Plateaux, op. cit.

17 Serres, M. Atlas. Paris: Flammarion, 1996.

18 Rossi, P. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru, SP: Edusc, 2001.

19 Einstein, A. A teoria da relatividade. Porto Alegre: L&PM, 2013.

20 Buhler, W. Gauss: A Biographical Study. Berlin: Springer-Verlag, 1981.

21 Abbott, E. A. Flatland (1884). London: Dover Publications, 2013.

22 Latour, B. Reassembling the Social. Oxford: Oxford University Press, 2005.