luz,
câmera,
ação?
Reflexões sobre o Arte Atual Festival
A segunda edição do Arte Atual Festival, com o título Quadro, Desquadro, Requadro, teve como ponto de partida uma reflexão sobre as modalidades de construção do espaço e dos limites da representação. Uma proposição ousada e ambiciosa para um ciclo de mostras que se define como uma proposta mais experimental e com um compromisso menos rígido com pressupostos teóricos, visto a ambiguidade e complexidade do termo amplamente utilizado no discurso e teoria das artes.
Para citar um exemplo eminente entre muitos, Ernst Gombrich parte da definição de representação entendida como uma maneira de "invocar mediante descrição ou retrato ou imaginação, figurar, simular na mente ou pelos sentidos, servir de ou ser tido por aparência de, estar para, ser espécime de, ocupar o lugar de, ser substituto de"[1]. Essa imagem ou apresentação cênica torna visível e, portanto, presente, uma realidade, uma pessoa ou até mesmo uma ideia, que não estaria de fato diante dos nossos olhos. Mas essa presentificação não replica a coisa representada à maneira de um espelho, ela implica um processo de abstração, atribuição de significados a símbolos reconhecíveis, social e historicamente construídos com o intuito de serem lidos e apreendidos pelos espectadores.
Se considerarmos literalmente essa definição, a saber, na sua acepção de presentificação de uma ausência, de revelar algo que normalmente não se daria a ver, por um lado, mas também o caráter construído e convencional dessa aparência, a ideia de representação ecoa fortemente com os trabalhos presentes na exposição. De fato, as obras apresentadas parecem compartilhar uma vontade deevidenciar ou tornar mais palpáveis estruturas e dispositivos para a constituição de personagens e ficções, para a elaboração de uma ambientação ou a composição da imagem ou, de maneira mais indireta, descortinar memórias e histórias veladas sobre uma pessoa ou lugar.
Claudia Briza, , a alegria era sempre uma pressa. , 2016
Vídeo, cor com áudio, 9’14”
A alegria era sempre uma pressa, de Claudia Briza, parece já apontar para esse caminho na primeira sala da exposição. Nessa performance para vídeo, a artista imita de maneira exagerada e grotesca os gestos graciosos associados a Carmen Miranda, vestindo os badulaques e balangandãs característicos da cantora, assim como suas caras e bocas, máscaras de uma alegria ensaiada. Esse caráter excêntrico ainda é reforçado pelo cenário constituído pela imitação barata de um muro de castelo medieval que se abre para a vista paradisíaca das águas reluzentes de uma praia tropical. Tudo é escancaradamente cafona, postiço e falso. Uma maneira de apontar para a artificialidade da própria figura da "pequena notável", que se transformou em um ícone de um Brasil exótico para exportação, a ponto de sucumbir à sua própria personagem.
A ostentação dessa incongruência é mais acentuada por travellings de avanço e recuo da câmera. A artista travestida segue em primeiro plano enquanto a câmera se afasta do cenário antes de voltar ao enquadramento original. O distanciamento da câmera revela todo o aparatode iluminação e de som, os adereços cênicos e os bastidores que sustentam a ficção – seja ela da própria Carmen Miranda, ou, por extensão, a elaboração da ilusão de verossimilhança da imagem e da narrativa cinematográfica.
Márcia Beatriz Granero também recorre à sintaxe do cinema clássico em Lacuna. No entanto, para ela se trata menos de apontar para a falácia da construção da narrativa cinematográfica e seus fantasmas, que de revelar histórias por detrás de uma arquitetura e, particularmente, de um espaço expositivo. Com que intuito uma instituição ou espaço independente foi construído e em que condições? Em que local da cidade eles se encontram e que relação estabelece com o seu entorno? Como o local se modificou e quais as dinâmicas por detrás dele? Essas são algumas perguntas que motivam as investigações de JaqueJolene, personagem fictícia criada por Márcia Beatriz. A partir de repetidas visitas ao local e uma pesquisa minuciosa sobre suas histórias oficiais e oficiosas, uma ficção é elaborada em curtas narrativas, sempre permeadas de humor, mas cuja estrutura fragmentária e enigmática muitas vezes espelha os próprios relatos e memórias sobre esses locais de legitimação e exibição da produção artística.
Márcia Beatriz Granero, Lacuna, 2016
Vídeo,cor, estéreo, 9’
Assim, depois da Pinacoteca, do Centro Cultural São Paulo, do Phosphorus e do Paço das Artes, em Lacuna é a vez do Instituto Tomie Ohtake passar pela lupa de Jaque Jolene. O suspense atravessa toda a narrativa, entrecortada por cartelas e espaços sonoros distintos. Mas em meio à desconexão narrativa, espacial e sonora, a unidade do estilo da arquitetura que enquadra Jaque perdura: reconhecemos a sinuosidade e imprevisibilidade tanto da arquitetura de Ruy Ohtake, quanto das esculturas de Tomie Ohtake que figuram nesses espaços. Apesar de cada sequência ser filmada em locais distintos do Instituto Tomie Ohtake e da Aché Guarulhos, a impressão é que Jaque percorre um só edifício. Essa continuidade formal da arquitetura constitui um dos pontos nevrálgicos do trabalho que traz à tona a ligação do Instituto com a empresacomo parte do Complexo Cultural Aché.
Com sobriedade e austeridade que contrastam com a profusão de cores dos figurinos e poses exageradas tanto de Claudia Briza e Márcia Beatriz Granero, os trabalhos de Ana Mazzei e Renata De Bonis, com estratégias distintas, presentificam ou corporificam obras da história da pintura. Por um lado, Ana Mazzei apresenta Garabandal, Marat e Ascensão, uma série de peças de mobiliário que induzem o corpo a adotar a pose de personagens de célebres pinturas de Jacques-Louis David ou Giotto. Ao escorar seu corpo nessas peças, o espectador incorpora e reproduz esses gestos imortalizados nas pinturas. Materializando essas estruturas gestuais por meio dessas peças de mobiliário, Ana Mazzei aponta para a dimensão convencional e artificial da representação dos corpos na história da pintura.
Longe de ser uma experiência agradável, a manutenção da pose é desconfortável e difícil de sustentar. De fato, mais do que reproduzir posturas naturais de um corpo, essas atitudes respondem ao imperativo de serem vistas por um espectador, sujeitas assim a uma série de convenções de maneira a serem rapidamente reconhecidas como a posegenérica de um êxtase, uma ascensão ou ainda uma figura no seu leito de morte. Apesar das poses escolhidas se referirem a pinturas específicas, também poderiam ser de outros artistas. Assim, os corpos são sujeitos a uma série de regras e prerrogativas como a frontalidade ou ainda a necessidade de respeitar o equilíbrio do conjunto e se enquadrar na composição. Esses mobiliários podem então ser lidos como estruturas constrangedoras, instrumentos de suplício ou ainda de práticas sadomasoquistas a favor da idealização e da estetização das formulações gestuais.
Ana Mazzei, Marat, Ascensão e Garabandal,, 2015/2016
Madeira e feltro, dimensões variáveis
Em Anotações a partir de Caspar David Friedrich, Renata De Bonis também lida com a estetização de uma experiência no âmbito da pintura em contraposição à realidade concreta. A artista pesquisa as paisagens sublimes consagradas por esse pintor romântico alemão da primeira metade do século XIX. Conhecido por suas pinturas em que figuras se perdem em meio a horizontes grandiosos e ruínas medievais monumentais, a obra de Friedrich é representativa do mal-do-século, um sentimento de melancolia diante da futilidade da existência, grandeza da natureza e do passado. Durante uma residência que realizou na Alemanha, a artista mapeou, localizou e visitou diversos dos cenários em que ele tinha realizado as suas pinturas afim de se deparar com essas paisagens e todo o imaginário que foi construído em torno delas.
Renata De Bonis, Anotações a partir de Caspar David Friedrich, 2015/2016
Instalação sonora, dimensões variáveis
Renata De Bonis capturou, então, a sonoridade desses ambientes, justamente a sua dimensão mais impalpável e evanescente.O som gravado foi editado em faixasque correspondem às locações específicas das obras de Friedrich. Caixas de som espalhadas pelo espaço reproduziam uma faixa por vez, atualizando, com cerca de um século e meio de distância, a ambiência acústicadaquele lugar. A vista de um mar aparentemente tranquilo e sereno, assim como a composição sóbria de Der Mönch am Meer [Monge Diante do Mar], por exemplo, contrastam com a veemência e violência do som das ondas que quebram. Esses contrastes apontam mais uma vez para o caráter convencional da representação, que implica a composição e reagenciamento de elementos num campo imagético ou cênico.
Cada um desses diferentes trabalhos, à sua maneira, instaura, cita e subverte os limites dos espaços de representação, campos onde podem se delinear aparências, ilusões e ficções, sustentados por uma série de regras e códigos construídos cultural, social e historicamente, em uma fórmula que contém "mais do que o olho pode ver"[2]. Além de tornar essas regras e convenções palpáveis, eles também se estruturam em torno da materialização de uma ausência, seja ela uma ambiência, uma pose, uma personalidade ou uma história.
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Para além da problemática da representação levada a cabo pela curadoria, para muitos dos visitantes doFestival Arte Atual, um dadonão passou despercebido: o fato de ser uma exposição que contava unicamente com artistas mulheres. Apesar de não se propor adiscutir esse tema, essa circunstânciaacabou se consolidando como uma premissa para a leitura que muitos fizeram da mostra.O olhar atento à exclusividade de nomes femininos em uma exposição se insere em um contexto específico, no qual está muito em voga o debate sobre a baixa representatividade das mulheres nas diferentes áreas da vida social e profissional; um contexto que tem sinalizado uma urgência das discussões sobre as estruturas patriarcais enraizadas nos comportamentos e mentalidades. Como avaliar, retrospectivamente, e depois de tomar conhecimento da recorrência de tal leitura, uma exposição que apresente unicamente trabalhos de artistas do sexo feminino?
Se voltamos a pensar na ideia de representação em um sentido mais amplo, e integrando essa perspectiva do gênero, a ideia de materializar uma ausência pode ganhar um novo sentido, somando-se às reflexões das artistasa suposta visibilidade para um grupo de artistas mulheres. Parece-me que, de uma maneira análoga às obras citadas acima, a aposta em um elenco exclusivamente feminino só tornou mais palpávela sua ausência, ou pelo menos, sua presença ainda insuficiente nas exposições ou nas galerias. Se é fundamental destacar as disparidades para poder, em seguida, reverter ou paliar a situação, em que medida evidenciar essa baixa representatividade na sociedade e nas artes consiste em uma ação efetiva, principalmente quando se trata de uma exposição entendida como sendo "só de mulheres"? Em um raciocínio oposto, será que evidenciar o efetivo reduzido de mulheres também não seria uma maneira de ostentar essa falta de visibilidade? Como, então, deixar de presentificar a ausência das mulheres para assegurar um estar em cena constante, natural e desprendido de contingentes que mantenham e sustentem uma representação feminina?
Penso que qualquer resposta à prevalência dos homens não deveria passar por propostas que incluam só artistas do sexo feminino. De fato, mesmo se tratando de uma coincidência fortuita, estamos lidando com um dado que aparentemente modificou a leitura da mostra, o que em si é sintomático da discrepância de trato e entendimento de trabalhos conforme o gênero de seu autor. Essa exposição me persuadiu de que essa estratégia só espelha uma dinâmica de afirmação de um gênero e exclusão e desvalorização do outro, reproduzindo categorias idealizadas pela estrutura de poder patriarcal da qual justamente se busca desvincular e emancipar. Em um momento em que ainda não estamos totalmente desvinculados do machismo e dos condicionamentos que ele imprime em nossos comportamentos e capacidades cognitivas, me parece que essa iniciativa não necessariamente contribui para efetivamente outorgar mais validade à opinião e ao trabalho de mulheres. De fato, neste caso, "talvez a ideia de representação só venha a fazer sentido [...] quando o sujeito mulheres não for presumido em parte alguma"[3], quando, então, será possível trabalhar de maneira mais horizontal, em constante diálogo, troca, embate e negociação para tornar palpável, integrar e valorizar essas diferenças.
Olivia Ardui
Junho 2016
[1] Definição do Pocket Oxford Dictionary citada em Ernst H. Gombrich,"Meditação sobre um Cavalinho de Pau ou as Raízes da Forma Arística" em Meditações sobre um Cavalinho de Pau e outros Ensaios sobre a Teoria da Arte, São Paulo,1999, p. 1.
[2] Ibid, p. 1.
[3] J. Butler, Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade, Rio de Janeiro, 2015, p. 25.